Instituições públicas não cumprem com as regras de inclusão da pessoa com deficiência no ingresso ao Aparelho do Estado

DESTAQUE SOCIEDADE
  • Em clara violação da Estratégia da Pessoa Portadora de Deficiência na Função Pública
  • Estratégia foi aprovada em 2009, mas nenhum ministério cumpre, havendo RHs que a desconhecem
  • Não foi actualizada até agora porque há um ping-pong entre MGCAS e MAEFP
  • Conheça o drama de quem já ouviu que só pode trabalhar na Associação dos Deficientes

“Em muitas vezes que concorri a vagas no Aparelho do Estado fui apurado e contactado para a entrevista, mas quando eu chegava lá e percebiam que se trata de uma pessoa com deficiência sempre procuravam uma forma de se desligar de mim. Já houve casos de instituições públicas que chegaram a dizer “vai lá à Associação dos Deficientes e veja se lá eles podem ter uma vaga para tu trabalhares”. Este é o drama de Garrido José Cuambe, de 43 anos de idade, residente na cidade de Maputo, com deficiência físico-motora, que faz parte de uma estatística de milhares de pessoas com deficiência que enfrentam dificuldades de aceder a vagas de emprego na função pública devido a sua condição física, o que mostra que apesar da Estratégia da Pessoa Portadora de Deficiência na Função Pública (EPPDFP) ter entrado em vigor em Fevereiro de 2009, grosso das instituições públicas moçambicanas não cumpre as regras de inclusão da pessoa com deficiência no processo de ingresso ao Aparelho do Estado. Uma análise a 12 concursos de três ministérios, no período entre 2011 e 2023, foi possível constatar que é sistematicamente violado o preceito de reserva de vagas para pessoas com deficiência, prescrito naquela política pública moçambicana.

Autor: Temóteo Cumbe*

No concernente à luta contra a exclusão das pessoas com qualquer forma de deficiência em diferentes esferas públicas da sociedade, verificada desde os tempos longínquos, Moçambique deu um passo muito positivo, em Fevereiro de 2009, ao introduzir a Estratégia da Pessoa Portadora de Deficiência na Função Pública, entretanto, o não cumprimento da política pública pelas instituições públicas moçambicanas constitui um enorme retrocesso nesta luta.

A EPPDFP arrola em quatro momentos (partes) acções específicas que as instituições públicas deveriam implementar para acabar com a exclusão da pessoa com deficiência na educação, formação profissional, ingresso ao Aparelho do Estado, acessibilidade às infraestruturas e progressão na carreira na Função Pública.

As diretrizes para a inclusão da pessoa com deficiência no ingresso ao Aparelho do Estado estão sequenciadas no designado primeiro momento, são elas:

  1. “A publicidade na Imprensa relativa aos concursos deverá incorporar uma declaração afirmando o empenho das instituições em garantir a igualdade de oportunidades entre todos os candidatos”;
  1. “O guia destinado aos candidatos, publicado no jornal de maior circulação com o aviso do concurso, conterá um parágrafo especificamente dirigido aos candidatos com deficiência”;
  1. “É fundamental que os editais indiquem claramente a necessidade de especificação do tipo de deficiência dos concorrentes em suas cartas de manifestação de interesse pela vaga, de modo que a instituição possa estar preparada para recebê-los no processo de selecção”;
  1. “Os formulários de candidatura solicitarão aos candidatos com deficiência que especifiquem as adaptações necessárias para poderem participar nas provas numa base de igualdade relativamente aos outros candidatos, e serão envidados esforços para satisfazer todos os pedidos”;
  1. “A formação ministrada aos membros do júri de selecção incluirá um módulo de sensibilização sobre deficiência e sobre o teor da Política da Pessoa Portadora de Deficiência”;
  1. “É imperioso que as instituições públicas desenvolvam critérios de admissão (editais que consignem reservas de vagas para Pessoas Portadoras de Deficiência) que possibilitem a candidatura deste grupo populacional”.

O princípio de reserva de vagas para pessoas com deficiência é desenvolvido no terceiro momento da Estratégia, onde se detalha que “as instituições públicas deverão calcular com base no número total de trabalhadores um mínimo de 1.5% de vagas reservadas a pessoas com deficiência para as instituições com 100 a 500 funcionários, 3% para instituições com 600 a 900 funcionários e, por fim, 5% de vagas para instituições com 1000 ou mais funcionários”.

Mais uma lei bonita que termina no papel: Nenhuma instituição do Estado cumpre a EPPDFP

Durante meses de investigação, analisamos, no total, 12 concursos de ingresso ao Aparelho do Estado a que tivemos acesso, dos quais nove são do Ministério da Saúde (MISAU), abertos no corrente ano; dois dos Ministério do Género, Criança e Acção Social (MGCAS), abertos, respectivamente, nos anos de 2012 e 2014; e um do Ministério do Trabalho e Segurança Social (MITSS), aberto em Fevereiro de 2011.

Dos 12 concursos analisados, nenhum dos anúncios feitos no jornal de maior circulação no país, o Notícias, possui alguma declaração afirmando o empenho das instituições em garantir a igualdade de oportunidades entre todos os candidatos, o que vai em contramão ao preceituado na estratégia.

Embora a estratégia especifique a obrigatoriedade de reserva de vagas para pessoas com deficiência, em nenhum dos 12 concursos foi cumprida, o que mostra que desde que a Lei entrou em vigor em 2009, não houve um grande esforço por parte do próprio Governo para se conformar com ela.

Ademais, dos 12 concursos, apenas um é que contém algum parágrafo especificamente dirigido aos candidatos com deficiência. Trata-se do aviso de concurso do MGCAS de 2014 que especifica numa das linhas que “Incentiva-se a candidatura de mulheres e de pessoas com deficiência”.

Como se tal não bastasse, apenas dois é que indicam a necessidade dos candidatos declararem nas cartas de manifestação de interesse pela vaga aspectos especiais que devem ser levados em consideração nos seus processos, mas essa nota não é específica para pessoas com deficiência, tal como ordena a Estratégia. Trata-se dos concursos do MGCAS de 2012 e 2014.

Enquanto lei é clara ao postular que “é fundamental que os editais indiquem claramente a necessidade de especificação do tipo de deficiência dos concorrentes em suas cartas de manifestação de interesse pela vaga, de modo que a instituição possa estar preparada para recebê-los no processo de selecção”, os concursos a que nos referimos, dizem apenas que “os candidatos poderão também declarar no requerimento quaisquer circunstâncias que considerem susceptíveis de influir na aplicação do seu mérito ou constituir motivo de preferência legal”.

De todos os concursos a que tivemos acesso, não foi possível aceder aos formulários de candidatura para verificar se solicitavam aos candidatos com deficiência que especificassem as adaptações necessárias para poderem participar das provas numa base de igualdade relativamente aos outros candidatos.

A estratégia recomenda que “a formação ministrada aos membros do júri de selecção incluirá um módulo de sensibilização sobre deficiência e sobre o teor da Política da Pessoa Portadora de Deficiência”, no entanto, não foi possível avaliar esta categoria, porque não nos foi permitido realizar entrevista com um dos membros do júri de modo a avaliarmos o seu nível de conhecimento ou sensibilidade à matérias sobre a pessoa com deficiência.

O drama de quem já ouviu que na sua condição só pode trabalhar na Associação dos Deficientes

Quem já sentiu na pele o sabor amargo da discriminação é Garrido José Cuambe, de 43 anos de idade, residente na cidade de Maputo, com deficiência físico-motora, que viu o curso da sua vida a mudar com 11 anos de idade, ano em que adquiriu a deficiência, em circunstâncias em que apelou à nossa compreensão para não detalhar.

Garrido foi obrigado a se adaptar à nova realidade e como qualquer adolescente que era na altura, independentemente da condição física, tinha o sonho de estudar, para depois trabalhar, conquistar a independência financeira e ajudar a sua família.

Dentro da nova condição que lhe foi imposta pelo destino, Cuambe sempre correu atrás do emprego, tendo tentado por várias vezes ingressar na Função Pública, mas, tristemente, as tentativas de Garrido na Função Pública terminaram em tentativas, até à sua idade actual de 43 anos. Em nenhuma delas obteve êxito e para ele não há dúvidas de que tal deveu-se à sua deficiência física.

“Em muitas vezes que concorri a vagas no Aparelho do Estado fui apurado e contactado para a entrevista, mas quando eu chegava lá e percebiam que se trata de uma pessoa com deficiência sempre procuravam uma forma de se desligar de mim. Houve uma vez que terminei na sala de espera para a entrevista, pois quando viram a minha condição, disseram que a chamada era apenas para me felicitar pelo currículo bonito, mas que já tinham encontrado alguém com qualificações mais apuradas que as minhas”, destacou Cuambe.

Mas a coisa mais cruel que ouviu foi da voz de uma responsável dos recursos humanos de uma instituição do Estado, que teve a indelicadeza de sugeri-lo que fosse tentar a sorte na Associação dos Deficientes.

“Muitas vezes, as instituições públicas chegam a dizer ‘vai lá à Associação dos Deficientes e veja se lá eles podem ter uma vaga’ para tu trabalhares”, desabafou.

Garrido explicou, igualmente, que muitas vezes já foi dito que ainda que o quisessem recrutar para o Aparelho do Estado, as instituições públicas têm problemas de acessibilidade e o pessoal já recrutado não está preparado para trabalhar com uma pessoa com deficiência.

“E acrescentavam que ainda vão inserir nos seus programas, a necessidade ou a importância de incluir a pessoa com deficiência. No último local onde concorri, há 3 anos, no final da entrevista foi-me dito que me enviariam a resposta por e-mail 15 dias depois, mas para o meu espanto, quando cheguei à casa e liguei os meus dados, recebi um e-mail deles onde me diziam que ficaram felizes com a minha participação, mas lamentavam porque eu não tinha as qualificações que eles estavam à procura, logo que ficou claro que se surpreenderam em ver uma pessoa com deficiência, por isso, nem precisaram de aguardar por 15 dias”, detalhou.

Garrido Cuambe vive maritalmente e para a sua sobrevivência depende de trabalhos ocasionais e de curta duração de Organizações de pessoas com deficiência.

Porém, se em todos concursos de ingresso em que Garrido já participou tivesse sido observada a regra de reserva de vagas para pessoas com deficiência, sem dúvidas, ou ele ou uma outra pessoa com deficiência teria sido admitida em cada um deles. Mas a não reserva de vagas e de outros elementos que garantem a inclusão da pessoa com deficiência constituem um cenário muito triste porque a Função Pública é ou deveria ser de todos os grupos da sociedade.

“Deve ter sido um lapso” – justifica Ministério do Género, Criança e Acção Social

Diante do incumprimento do postulado na Estratégia da Pessoa Portadora de Deficiência na Função Pública nos concursos de ingresso, solicitamos entrevista aos Ministérios visados de modo a obter o contraditório.

Em entrevista presencial, a chefe de Repartição de Administração e Gestão de Pessoal do Ministério do Género, Criança e Acção Social, Laura Timana disse à nossa equipa que deve ter sido um lapso o facto dos dois concursos não possuírem uma declaração que afirma o empenho das instituições em garantir a igualdade de oportunidades entre todos os candidatos, bem como o facto do concurso de 2012 não possuir algum parágrafo dirigido especificamente a candidatos com deficiência, entre outras declarações supracitadas.

“Isso deve ter sido um lapso da pessoa que publicou”, respondeu Laura Timana.

Em relação ao facto de não se ter reservado alguma vaga sequer para pessoas com deficiência, nos dois concursos, Laura declarou que “só não estão explícitas, nos avisos dos concursos, as vagas reservadas para pessoas com deficiência, mas nós sempre tivemos reserva de vagas para pessoas com deficiência, mesmo antes da introdução dessa Estratégia, por isso é que no Ministério temos funcionários com deficiência com mais de 20 anos de trabalho”.

O MGCAS possui um total de 119 funcionários, dos quais seis com deficiência. E a resposta da Laura Timana dá-nos a entender que quase todos senão todos ingressaram no MGCAS antes da implementação da EPPDFP.

Enquadrando o MGCAS no plasmado na Estratégia no concernente à reserva de vagas, o MGCAS deveria reservar 1.5% de vagas nos seus concursos porque possui um número de funcionários que se enquadra no intervalo de 100 a 500. Pelo facto da Laura Timana ter dito que a consignação de vagas para pessoas com deficiência é uma realidade nos concursos do Ministério, apesar de não estar explícito nos avisos de concursos, fizemos a seguinte questão: qual é o critério que vocês têm seguido para reservarem vagas para pessoas com deficiência?

E em resposta, Timana parafraseou: ” Temos utilizado essa regra mesmo de 1%”.

No tocante ao MITSS, até ao fecho desta edição, ainda não nos havia concedido a entrevista. A mesma situação deu-se com o MISAU.

MGCAS reconhece demora na actualização e diz haver ping pong com o MAEFP sobre quem deve materializar

O incumprimento da EPPDFP constitui um retrocesso no avanço que Moçambique tinha dado na luta contra a exclusão da pessoa com deficiência, ao introduzir a Estratégia, mas esse retrocesso é agravado pelo facto da EPPDFP ainda não ter sido actualizada até aos dias que correm, desde que venceram em 2013 os primeiros cinco anos de duração, ou seja, já há mais de 10 anos que a mesma não é actualizada.

Por conta disso, questionamos ao MGCAS, indicado na EPPDFP como o responsável pela sua materialização, a razão da estratégia não ter sido actualizada passados mais de 10 anos. Para responder a esta pergunta, foi-nos disponibilizado o chefe do Departamento de Assuntos da Deficiência, António Muchave.

Muchave respondeu que a Estratégia ainda não foi actualizada desde 2013 porque o Ministério do Género, Criança e Acção Social não quer voltar a ser o responsável pela sua materialização, pois a implementação da EPPDFP foi marcada por várias dificuldades, principalmente porque não é o MGCAS que tutela e tem um poder de dar ordens em todo o processo de ingresso ao Aparelho do Estado.

No seu entender, tal missão é do ministério que tutela a Função Pública, por isso, assume que todo o trabalho de fiscalização e de querer fazer cumprir a Estratégia junto de todos os Ministérios redundou no fracasso porque estes simplesmente ignoravam o MGCAS que, aliás, não teve nenhum espaço para alguma acção coerciva, pois não possui nenhum poder imperativo para com os Departamentos dos Recursos Humanos dos outros Ministérios.

“Por isso, desde 2013, o MGCAS está a trabalhar para fazer entender ao MAEFP que ele é quem deve encabeçar a materialização da Estratégia de modo a ter os resultados esperados devido ao seu carácter imperativo para com todas as direcções dos recursos humanos na Função Pública em Moçambique”, detalhou.

Igualmente, destacou que, neste momento, os dois Ministérios aguardam a aprovação da Lei dos Direitos da Pessoa com Deficiência para seguir com a actualização da EPPDFP.

De referir que de acordo com a Estratégia de Educação Inclusiva e Desenvolvimento da Criança com Deficiência 2020-2029, existem no país 39.770 crianças com deficiência, com idades compreendidas entre 0 e 4 anos e 215.710 pessoas com deficiência, com idades entre 5 e 24 anos. Das 215.710, apenas 76.843, cerca de 35,6%, estão abrangidas pelo Sistema Nacional de Educação, o que demonstra os elevadíssimos e preocupantes índices de exclusão da pessoa com deficiência em todas as esferas.

*Colaboração

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