Autoritarismo descentralizado: rumo a um novo sistema feudal?

OPINIÃO

Luca Bussotti

Durante muito tempo, em Moçambique assim como em muitos outros países africanos, a descentralização foi um projecto a que cidadãos, forças de oposição, sociedade civil olharam com uma certa expectativa. A esperança estava embasada na ideia de que, apesar de o governo central reunir elementos tipicamente autoritários, a nível descentralizado as coisas podiam funcionar de forma diferente. Foi assim que foram instituídas, em vários países africanos, municipalidades, províncias e outras formas do poder descentralizado de tipo eletivo. Este processo fazia parte do mais geral esforço para promover a democracia; um processo que foi impulsionado no continente africano a partir dos anos Noventa do século passado, e que deu resultados diferenciados.

Em Moçambique, o cidadão-eleitor é hoje chamado para decidir mediante o seu voto o futuro de municípios, províncias, parlamento e presidência da república. Em outros países isso não acontece: em Angola, por exemplo, nunca houve eleições autárquicas, que deviam ser fixadas primeira para 2015, depois para 2020, e agora ninguém sabe quando é que as tanto desejadas eleições locais irão acontecer. A nível das 18 províncias, seus dirigentes máximos são ainda nomeados pelo presidente da república…Em suma, em Angola o MPLA procurou adiar o risco político de perder o controlo de cidades importantes, começando pro Luanda, simplesmente ignorando o ditado constitucional.

A Frelimo não conseguiu fazer isso em Moçambique. Devido provavelmente ao facto de ter sido tradicionalmente mais autónoma, do ponto de vista económico, com relação à Moçambique, devido às suas reservas de petróleo, assim como a uma guerra prolongada até o início deste século, Angola evitou a confrontação eleitoral a nível local. Em Moçambique as eleições autárquicas sempre tiveram uma vida sofrida, mas interessante. Desde o percurso legislativo, que começou com uma lei avançada e não aprovada, em 1994, até o boicote da Renamo nas primeiras eleições locais de 1998, o local foi porém objecto de disputas, de laboratórios políticos, de crescimento de classes dirigentes quer da oposição, quer do partido no poder. Aqueles espaços que não se abriam a nível central podiam se vislumbrar a escala local; foi assim que vários partidos da oposição governaram cidades importantes, inclusive com boas experiências de governação, Beira e Quelimane acima de todas.

As últimas eleições autárquicas deram uma sentença diferente: em nenhum momento, nem ao nível local, a Frelimo “deixou” que as oposições tivessem vida fácil nos 65 municípios que foram ao voto. Ora, se pode-se perceber (mas naturalmente não justificar) que a Frelimo não estava disposta – como se pode ler inclusive na imprensa próxima ao partido no poder – a ceder cidades como Maputo e Matola, foi surpreendente ver o cenário que se verificou em municípios que podem ser considerados de “menores” (sem ofensa para os seus cidadãos), tais como Marromeu ou Gurué, que tiveram a repetição do voto a 10 de Dezembro passado. Desta vez, a Frelimo, município por município, procurou arrancar todas as autarquias às oposições. Um facto novo, que nunca tinha acontecido, com a excepção – mais uma vez – de Maputo (em 2013) e Matola (em 2018).

Interpretar tal postura não é simples. De forma grosseira, seria possível dizer que a Frelimo – a Frelimo central, nesse caso – resolveu dar uma linha política clara, dando a ordem de conquistar todas as 65 autarquias que foram ao voto ao 11 de Outubro. Isso pressuporia uma organização capilar, extremamente precisa, com um controlo do centro de Maputo total sobre todos os territórios do país. Trata-se de uma hipótese possível, mas não corroborada por evidências. Se a Frelimo tivesse havido este controlo total, episódios como o relativo ao município de Nampula (com a desistência do candidato escolhido) não teria podido acontecer, assim como o partido não teria “queimado” um quadro capaz e de boas perspectivas como Stela Zeca para concorrer na Beira, exercendo as funções de Secretária de Estado em Sofala. A impressão, em suma, não foi a de um partido em boa saúde e bem organizado, mas sim de um partido que deixou às lideranças locais – salvo nos grandes centros urbanos – um certo espaço não só para decidir sobre as candidaturas, mas sim para gerir o processo eleitoral.

Este elemento – se for verificado a posteriori – representa um aspecto fulcral para a compreensão do que realmente tem acontecido nas últimas eleições autárquicas. A impressão – ainda por se verificar – é de que a Frelimo quis manter o controlo dos principais municípios do país, a partir de Maputo, mas deixando a gestão do processo eleitoral aos vários territórios. Tal circunstância, que pode ser definida de “autoritarismo descentralizado” implicaria a reprodução dos métodos usados a nível central – justamente o autoritarismo interno – a escala local, segundo um tipo de organização que recorda muito a vassalagem medieval. O vassalo devia fidelidade ao rei (neste caso o presidente da Frelimo), mas tinha larga autonomia para gerir os impostos, as forças de segurança, os mecanismos internos de nomeação dentro do seu feudo. Ora, parece que foi isso que aconteceu com as últimas eleições autárquicas: uma vez que o rei (o partido a nível central) não tinha força e capacidade organizacional para controlar o que acontecia nas periferias, delegou todo este processo aos “seus” que se encontravam nos territórios. Os poucos deslizes que foram registados (tribunais distritais que mandaram repetir as eleições, detectando fraudes) foram depois sanados – na maioria dos casos – pelo Conselho Constitucional que, no geral, mandou repetir parcial ou totalmente os processos eleitorais em algumas cidades, cujo controlo estava nas mãos dos “vassalos”.

Se esta leitura for verdadeira, iremos assistir, nos próximos meses, a uma mudança significativa da gestão do poder local em Moçambique. Uma gestão que irá responder às exigências de quem manda no território, com instituições tais como as de justiça, de segurança e outras que se tornarão parte integrante do “feudo”, com a única obrigação de responder a esta ou àquela solicitação proveniente de Maputo, mas mantendo o poder daquilo que acontece localmente.

Já faz alguns anos, dizia-se que a democracia, em Moçambique, é inversamente proporcional à distância de Maputo. Hoje, com esta nova forma de relações internas ao partido no poder, este lema poderá ser ainda mais verdadeiro.

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