Hegemonia e cultura política

OPINIÃO

Luca Bussotti

O panorama político internacional reserva diariamente péssimas surpresas. Sem querer aqui elencar personagens e episódios recentes, a opinião pública mundial já está a assistir há muito tempo a um desmoronamento e à perda de credibilidade da larga maioria da classe política, sem conseguir reverter a situação. Formas agressivas de populismo no Ocidente se juntam à passividade de instituições e países um tempo considerados lideranças morais antes de políticas, tais como a União Europeia e os seus membros mais influentes. No Sul global, salvo poucas excepções, interesses pessoais e familiares orientam cada vez mais a ação política dos governantes, que são os primeiros a defenderem aquele modelo extrativista de economia que movimentos sociais, no Norte e no Sul do planeta, criticam há muito tempo. O resultado é uma regressão acelerada das democracias no mundo, tensões constantes e conflitos como nunca tínhamos tido depois do fim da segunda guerra mundial.

A África se insere neste contexto: está a ficar cada vez mais difícil conseguir uma mudança no governo nacional de quase todos os países deste continente: as recentes eleições na República Democrática do Congo, por exemplo, revelam a falta de transparência dos processos eleitorais, assim como tem acontecido nas últimas autárquicas de Moçambique. Por não falar daquilo que está a acontecer na Guiné-Bissau, onde a única instituição de momento funcionante é o Presidente da República, depois de ele ter dissolvido o parlamento, apesar da proibição em fazer isso 12 meses antes das eleições presidenciais, nomeando um governo de iniciativa presidencial.

Nunca a cultura política esteve a níveis tão baixos. Ver presidentes cessantes (e talvez futuros) de países-chave no xadrez internacional, tais como Trump ou Bolsonaro, atentar na primeira pessoa às instituições símbolos dos respectivos países, ou assistir a manifestações de matriz fascista de grande envergadura num país da sólida democracia como a Itália demonstra a perda de cultura política a nível mundial. Uma perda que pode ser relacionada com o desmoronamento hegemónico das grandes ideologias do século XX.

Se formos a ver com um mínimo de atenção, não existe, hoje, salvo Lula no Brasil e poucos outros exemplos, líderes políticos que vão além do contingente, do imediatismo e de interesses elitistas cada vez mais restritos às classes dominantes. Não tem nenhum projecto de sociedade, nenhuma perspectiva além de meras tácticas políticas que visam a manutenção do poder de quem já o detém. A crise das hegemonias significa crise de valores, de ideais e de uma ação política finalizada a satisfazer o bem-estar colectivo. No século passado grandes ideologias se afirmaram: no pensamento cristão, a doutrina social da igreja deu os seus frutos melhores, chamando os católicos de todo o mundo a dar testemunhas de compromisso para com a vida pública. Daí, formaram-se partidos políticos que governaram – de frequente formando alianças com os liberais – e deram uma marcha de direção clara a muitos países europeus, desde a Alemanha até a Itália, desde a Espanha até Portugal. Nos Estados Unidos e no Reino Unido o liberalismo de Reagan e Thatcher representou um momento central do ponto de vista do desenvolvimento político e do debate ideológico daquela época. Do outro lado, o pensamento marxista e/ou social-progressista também ofereceu exemplos não apenas de boa governação, assim como de uma direção precisa que este ou aquele país devia tomar. Todas as social-democracias do Norte da Europa são, até hoje, levadas a exemplo de excelente governação, assim como algumas experiências de governação local na Itália (Toscana, Emília-Romagna, etc.) por parte dos então partido comunista, ou do socialismo francês de Miterrand. Finalmente, um pensamento liberal-democrático se afirmou nos Estados Unidos primeiro (com JFK, depois com Clinton e Obama) e no Reino Unido depois, com a “terceira via” de Giddens e Tony Blair. A estas grandes famílias político-ideológicas é possível acrescentar o mais recente movimento ecologista e pacifista, que também lutou na arena política internacional, assim como no debate das ideias, contribuindo a ampliar o espectro das ideologias disponíveis no mercado intelectual e político.

Qualquer que seja a posição de cada um de nós, tais ideologias visavam o interesse colectivo, que podia ser alcançado enaltecendo o mercado livre, o papel do estado na economia, os direitos dos indivíduos e das comunidades. Receitas diferentes, mas com um objetivo comum, bem identificável. Em África foi a mesma coisa. Durante e depois das lutas de libertação nacional, ideologias e ideias não faltaram: só o facto de povos que nunca tiveram voz procurarem se libertar do jugo colonial representou uma novidade no panorama internacional. A isso acrescentaram-se elementos ideológicos de matriz progressista, alguns particularmente enraizados no marxismo-leninismo (Moçambique, Angola), outros em formas mais “africanizadas” de socialismo (Senegal, Tanzânia, etc.). Por outras, guerras civis se desencadearam, como em Moçambique, em nome de um modelo alternativo de governação, de tipo democrático e com base em eleições livres e transparentes. Mais uma vez, modelos diferentes, opostos (e naquela altura reflexo da guerra fria) se confrontaram mesmo através de guerras sangrentas, que chegaram a destruir países inteiros, mas que eram compreensíveis e pelas quais, segundo muitos, valia a pena se engajar e até morrer.

O desmoronamento das hegemonias ideológicas fez com que, hoje, as guerras – armadas ou não – que se combatem pelo mundo não tenham muito sentido para a larga maioria das populações. Não se trata apenas da guerra Russo-Ucraniana, ou do conflito árabe-palestino (certamente não uma novidade na história contemporânea): mesmo os conflitos de natureza política que se travam num país como Moçambique iniciam a perder de sentido, conservando-o apenas para os adeptos desta ou daquela fação. O tema, hoje, em quase todos os países africanos, não é como alcançar o bem comum, mas sim como combater práticas de intolerância, corrupção, violações perpetradas por parte do estado, atropelamento aos mais elementares direitos humanos. Em suma, uma regressão de todo o debate público…

Moçambique está inserido dentro deste cenário. Se, por um lado, o partido-estado Frelimo continua mostrando uma cultura política que lhe impede de aceitar derrotas eleitorais certificadas, mesmo a nível local, a oposição não goza de melhor saúde. Os recentes acontecimentos dentro da Renamo, por exemplo, deixam enormes dúvidas sobre a sua proposta política (ela existe?), a sua capacidade de liderança do país (como é que em nenhum município a Renamo conseguiu aglutinar as oposições para ganhar o domínio político da Frelimo?), os seus mecanismos internos de democracia. Sobretudo este último ponto revela uma enorme falta de cultura política. Se a Renamo, como os seus dirigentes, inclusive Manteiga, afirmam, é a formação política que trouxe a democracia em Moçambique, como é possível que, no fim do mandato presidencial de Momade, ainda não tenha sido convocado um congresso para eleger o novo presidente (ou confirmar o actual)? Como é possível que o deputado Venâncio Mondlane, vencedor efectivo (embora não formal) das autárquicas no município de Maputo, um minuto depois de anunciar a sua candidatura para a presidência do partido tenha sido dispensado como relator da bancada parlamentar da Renamo? E finalmente, como os cidadãos moçambicanos devem ler estas lutas intestinas ao maior partido de oposição? Quais são as diferenças programáticas, ideológicas, até éticas entre Momade e os outros, supostos candidatos à presidência do partido?

Será um prazer ser desmentido pelos factos: assistir a um congresso aberto e livre para a escolha do presidente da Renamo e do seu candidato à presidência de Moçambique vai ser um passo à frente decisivo não apenas para a democracia interna daquela formação política, mas sim para o país todo.

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