Milhares de vítimas de violência continuam fora da cobertura dos serviços de VBG nos hospitais

SAÚDE SOCIEDADE
  • Serviços de VBG disponíveis em somente 80% dos hospitais do Sistema Nacional de Saúde
  • Pelo menos 16 mil casos de Violência Baseada no Género ficaram fora das estatísticas em 2021

Estima-se que pelo menos 16 mil casos de Violência Baseada no Género (VBG) ficam anualmente fora das estatísticas do sector da saúde, devido ao facto dos serviços de VBG não estarem ainda disponíveis em todas unidades sanitárias do país. Pelo menos é o que se pode ler dos dados referentes ao ano 2021, quando a cobertura era abaixo de 70% e foram notificados pela via do sector da saúde 54.867 casos de VBG no país, o que numa proporcionalidade os 30% não cobertos equivalem a 16.460 casos. Actualmente, os serviços de VBG cobrem 80% do universo das unidades hospitalares de todo o Sistema Nacional de Saúde (SNS), o que faz com que muitas mulheres e raparigas que residem no raio coberto pelo remanescente 20 por cento permaneçam sem assistência adequada quando são vítimas de qualquer tipo de violência. Em entrevista ao Evidências, o Ministério da Saúde (MISAU) diz que os serviços de VBG ainda não cobrem todo o SNS devido ao défice orçamental.

Temóteo Cumbe*

Uma primeira observação aos casos de VBG registados pelo MISAU, reportados através dos seus Relatórios de Actividades sobre a matéria, levanta uma grande preocupação porque ao invés dos casos tenderem a baixar, os mesmos estão num gráfico crescente, o que leva a questionar o que estará a falhar nas políticas públicas contra a VBG, implementadas pelo país desde os finais da primeira década do ano 2000.

Dados do MISAU constantes do Relatório de Actividades na Área de VBG no período entre 2017 e 2022, referentes ao primeiro semestre de cada ano, escancaram esta tendência crescente. Se no primeiro semestre de 2017 foram registados apenas 2.819 casos, em igual período de 2018 o número subiu exponencialmente para 16.297. Já no primeiro semestre de 2019 foram cadastrados 18.199, enquanto em 2020 os casos subiram para 21.228. Em 2021, foram 25.228 no primeiro semestre, contra 35.124 em igual período de 2022.

O Evidências apenas conseguiu dados agregados de um ano civil referentes a 2021, ano em que foram captados pelas estatísticas do SNS 54.867 casos de VBG, quando a cobertura era de apenas 70%, o que significa que 30% continuava fora do sistema. Feita a proporcionalidade, resulta que pelo menos 16 mil pessoas estavam fora do sistema pelo menos até aquele ano.

Para o MISAU, a percepção do aumento dos casos de VBG registados no SNS deve-se à expansão progressiva da cobertura dos serviços.

Assistência às vítimas não é total

Para além dessa incapacidade de notificar os casos de VBG, o pacote de tratamento previsto pelo MISAU para as vítimas de VBG não está a ser administrado a todas as vítimas, ou na sua totalidade às vítimas, como demonstra o relatório de 2021, no qual pode se ler que no que refere ao cuidados pós VBG oferecidos às vítimas de Violência Sexual, apenas 95% das vítimas receberam suporte psicológico, 91% das vítimas testaram para HIV com resultado negativo, 73% das vítimas receberam tratamento profiláctico de ITS, 41% receberam contracepção de emergência, 1% receberam profilaxia para Hepatite B, 74% chegaram até 72 horas e 73% receberam Profilaxia Pós-Exposição.

Nos cuidados pós-VBG oferecidos às vítimas de Violência Física, Psicológica e Outras, apenas 74% das vítimas receberam suporte psicológico, 1% receberam profilaxia para Hepatite B, 12% testaram para HIV com resultado negativo, 68% das vítimas chegaram até 72 horas e 1% das vítimas receberam PPE.

Tal como se pode ver, de todas as insuficiências, a administração da profilaxia para hepatite B é a mais crítica. Em todos os tipos de VBG só foi aplicada em apenas 1% das vítimas, o que pode custar caro, pois de acordo com o Departamento de Doenças de Condições Crónicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DDCCIST) do Ministério da Saúde do Brasil, a hepatite B é uma doença capaz de evoluir até ao cancro do fígado e os tratamentos disponíveis actualmente não curam a infecção pelo vírus.

Insuficiente número de Centros de Atendimento Integrado é outro calcanhar de Aquiles

Outro desafio relacionado a cobertura dos serviços de VBG tem a ver com o baixo número dos Centros de Atendimento Integrado (CAIs) para as Vítimas de Violência conjugado com a tão questionada qualidade dos seus serviços, apesar do Mecanismo Multisectorial de Atendimento Integrado à Mulher Vítima de Violência, que introduz a obrigatoriedade da resposta multisectorial, ter sido introduzido em 2012, já há 12 anos.

Várias organizações da sociedade civil, tal como é o caso do Fórum Mulher, já manifestaram o seu desagrado pelo facto de Moçambique possuir apenas 24 CAIs, que estão aquém do desejado para responder às elevadas estatísticas de casos de VBG no país.

Como se tal não bastasse, nem todos esses 24 CAIs têm infra-estruturas próprias e alguns têm apenas uma sala para todos os profissionais, o que compromete a confidencialidade no tratamento. Igualmente, relata-se frequentemente a falta de kits de profilaxia pós-exposição, para além de que não há meios circulantes para o transporte das vítimas em caso de transferência para outros serviços.

Madalena Vaz, residente na Cidade de Maputo, faz parte das estatísticas de milhares de moçambicanos que já sentiram na pele o impacto da VBG, a falta de assistência adequada e a inoperância das instituições da justiça moçambicana.

Esteve casada durante 18 anos, período no qual sofreu um ciclo de violência que só evoluía desde a física à psicológica, passando pela económica até chegar a patrimonial. O seu parceiro chegou a ordená-la a abandonar o seu emprego, em que trabalhava como juíza eleita num tribunal judicial e já no fim da relação ainda foi vítima da violência patrimonial, pois saiu da união sem alguma divisão de bens. Tudo construído de forma conjunta naquele casamento ficou em favor do seu cônjuge.

Nem assistência, nem justiça

Mãe de quatro filhos, conta que, embora tenha andado atrás, não teve nenhuma assistência adequada, tanto judicialmente, assim como em termos de acompanhamento psicológico ou de qualquer tipo.

“Eu estive nesse cenário de violência no meu lar durante 18 anos, até que eu mesma decidi desconectar-me por completo daquela relação e fui recomeçar a minha vida sozinha”, explica, para depois revelar que, não obstante a falta de assistência de que necessitava ao nível do SNS, viu o tribunal a negar-lhe justiça.

“Eu fiz muitas idas ao Tribunal, tanto antes quanto depois de eu colocar um ponto final na relação, mas em nenhum dos momentos o tribunal deu algum avanço. Acabei desistindo do meu processo quando se passaram cinco anos sem avanço. Eu já estava cansada de andar atrás sem estar a ver alguma luz verde”, desabafa.

Quem também conhece a amargura da violência é Cidália que, marcada pelo seu histórico de violência e de várias outras mulheres, ao se desvincular da sua relação, decidiu focar todas as suas atenções em trabalhos de luta contra a violência, o que a levou a criar a Associação de Vítimas de Violência Doméstica (AVVD), organização que hoje é presidente.

Para além da melhoria na tramitação dos processos na Justiça, Cidália quer também uma melhoria nos serviços prestados no sector da saúde para vítimas de VBG.

“Por exemplo, o departamento da Medicina Legal no Hospital Central de Maputo, onde eu tenho ido sempre em acompanhamento às vítimas para fazerem os seus exames, está bem ao lado da casa mortuária, é normal nós entrarmos enquanto estão a abrir cabeça de um morto e situações como essas são completamente desagradáveis a qualquer um, então, se transferissem aquele departamento para um local isolado seria melhor, entre tantas outras melhorias que são necessárias”, rematou.

Governo queixa-se de falta de dinheiro para alargar cobertura de serviços de VBG e CAIs

Ao Evidências, o MISAU reconheceu que a actual cobertura dos serviços de VBG no SNS ainda está aquém do desejado devido a incapacidades financeiras.

“Neste momento, os serviços de VBG abrangem 80% do universo das unidades hospitalares do país, o equivalente a 1.462 unidades hospitalares, do total de 1.817. E até hoje, os serviços de VBG não cobrem todo o Sistema Nacional de Saúde devido a desafios financeiros”, explicou Raquel Cossa, responsável da Direcção Nacional de Assistência Médica.

Mesmo sem precisar em números, a fonte reconheceu que o MISAU aloca baixas percentagens do seu Orçamento às actividades de VBG, “por isso grande parte das actividades realizadas pelo MISAU no sector da VBG é custeada com fundos de parceiros”.

Em relação ao porquê de todas as vítimas da VBG não serem administradas todas as profilaxias previstas, Cossa explicou que o processo de administração de cada uma das profilaxias obedece os seus critérios, então toda a vítima que não foi administrada uma determinada profilaxia significa que esteve fora dos critérios traçados. Em relação à profilaxia para hepatite B, reconheceu que há desafios na disponibilidade desta profilaxia no Sistema Nacional de Saúde, mas estão em curso acções para a aquisição da mesma.

Tal como o MISAU, o Ministério do Género, Criança e Acção Social (MGCAS) invocou incapacidades financeiras para justificar o facto de Moçambique continuar com baixo número de CAIs.

“Nós fazemos tudo de acordo com o dinheiro disponível, então tudo que foi feito até aqui é resultado do dinheiro que o MGCAS teve disponível para o efeito, se o dinheiro disponível tivesse sido a mais do que tivemos, teríamos feito mais”, respondeu Elisa Mutisse, chefe do Departamento de Promoção do Género no MGCAS.

Elisa Mutisse disse-nos que apesar do MGCAS ser o membro do governo responsável por coordenar todas as actividades do sector do Género não possui nenhuma obrigação de apoiar financeiramente os demais sectores intervenientes na resposta multisectorial à VBG, cabendo a cada Ministério com deveres na resposta multisectorial à VBG gerir o seu próprio orçamento para garantir que uma parte do mesmo seja direccionado às actividades de VBG.

Contudo, apesar do MGCAS ser o coordenador de assuntos sobre o Género, onde se enquadra a VBG, este Ministério não possui algum poder sancionatório aos outros sectores intervenientes na resposta multisectorial em caso do incumprimento das actividades apontadas por ele.

AMJ insta vítimas de sonegação de justiça a denunciarem ao CSMJ

O presidente da Associação Moçambicana de Juízes (AMJ), Esmeraldo Matavele, contactado pelo Evidências para se posicionar a respeito das consistentes queixas de demora na tramitação dos processos de violência doméstica nos tribunais, instou as vítimas a submeter uma queixa contra o respectivo juiz ao Conselho Superior da Magistratura Judicial para sua responsabilização “porque a lei é bem clara ao destacar que os processos de violência são uma prioridade”.

Mas Matavele alerta que nem sempre a negligência de um certo juiz é o motivo da demora na condução de um determinado processo de VBG no Tribunal. Explica que há casos em que a sobrecarga, devido ao elevado número de processos de VBG que dão entrada, é que dita tal morosidade.

Por isso, o Magistrado quer que a prescrita autonomia dos juízes seja uma realidade em Moçambique, de modo a permitir a flexibilização do processo de formação de mais magistrados judiciais e consequente aumento do número destes, o que vai desaguar no combate da sobrecarga dos juízes, no geral, e dos que trabalham nos processos de VBG.

No geral, Moçambique possui actualmente mais de 600 magistrados judiciais, dos quais apenas cerca de 150 são responsáveis por julgar os casos de VBG nos tribunais distritais em todo o país. Um pouco mais do universo do corpo de juízes vêm a trabalhar com os processos de VBG em caso de recurso a nível dos Tribunais judiciais de província ou até ao Tribunal Supremo.

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