“É preciso criar acervos das obras dos artistas nacionais e colocar nas universidades” – defende Jaime Mirandolino

CULTURA SOCIEDADE
  • Tudo aposto para a 7ª Gala de homenagem aos embondeiros das artes e cultura
  • Movimento sonha em lançar um livro biográfico e pautar músicas dos homenageados
  • Apoios? “Empresário olham para o lucro e não para o valor de um evento de cariz social”
  • “A cultura e desporto são elementos de pacificação”

 

Nasceu como um pequeno movimento denominado Mirandolino e Amigos, e cedo conseguiu juntar gentes, gostos e sensibilidades, transformando-se no Projecto de Homenagem aos Guardiões da Nossa Moral e Identidade Cultural, que vai já na sua 7ª edição. Trata-se de um movimento que procura resgatar e valorizar artistas moçambicanos da chamada geração de ouro, nas diversas manifestações artístico-culturais, como música, poesia, teatro e artes plásticas. Jaime Mirandolino, jovem patrono da iniciativa, diz que mais do que homenagear as estrelas do passado, sonha em publicar um livro biográfico para eternizar a memória de alguns dos principais cultores das artes do nosso país. Igualmente, tem em carteira um projecto que visa pautar as músicas de algumas das principais estrelas, para que possam passar a constar do acervo das universidades, tal como acontece com as sinfonias clássicas que atravessam gerações. Na entrevista que se segue, Mirandolino critica a falta de valorização dos artistas, um problema que para ele é estrutural, daí que defende que é preciso fazer-se mais para agregar valor aos artistas, começando pelo público a consumir o que é feito por eles e lutar contra a pirataria. Sobre o movimento de homenagens, fala da logística e do fraco apoio do empresariado nacional a eventos de cariz social. Acompanha os excertos mais importantes.

Evidências

É radialista, jornalista, mestre de cerimónias, promotor de eventos, entre outras facetas. Jaime Mirandolino, fale-nos do seu projecto de homenagem aos nossos embondeiros das artes e cultura que já vai na sua 7ª edição…

– Bom, é uma plataforma de preservação da nossa cultura e dos nossos usos e costumes. É, acima de tudo, uma plataforma de diálogo entre as gerações no nosso país. Ele vem de um movimento que, à medida que o tempo foi passando, foi ganhando também outra roupagem. No início, os meus colegas até deram-me um nome ao movimento, mas ao longo do tempo fui pensando e fui discutindo também com eles que aquilo não era uma plataforma pessoal, mas sim de todos nós, pois é uma plataforma que temos como epicentro de educação moral, sobre a nossa cultura.

Então, nesse desenvolvimento, ele ganha uma nova roupagem e fica a ser Projecto de Homenagem aos Guardiões da Nossa Moral e Identidade Cultural.

Evoluiu de Mirandolino e Amigos para projecto? Que valências o projecto ganha com essa alteração?

– Penso que ela ganha outro ímpeto, porque começa a estabelecer valores ou balizas para que os outros possam dar a sua contribuição. Já não é um movimento que no epicentro tem alguém, mas é uma janela aberta para os que querem aprender, os que têm alguma coisa a dizer ou a falar, e de forma gradual vamos criando estas plataformas.

Essa evolução permitiu com que tenhamos vários outros grupos dentro do movimento, não só de artistas, mas também académicos, estudiosos e amantes das artes, e isso é o mais importante. Muitas vezes nessas categorias esquecemos daqueles que seguem essas caravanas porque gostam da literatura, eu particularmente sou amante, razão pela qual, iguais a mim, temos muitos que não são músicos, mas tem alguma coisa a dizer ou por contribuir, e é isto que tem acontecido.

Esta é uma plataforma que, essencialmente, vai buscando ídolos que durante muito tempo haviam sido relegados e deixados para trás, e por vários factores. Mas o que nós temos vindo a fazer ao longo desse tempo é buscar referências, olhando para aquela geração que para nós continua sendo a geração de ouro para o nosso país e até para as nossas vidas. Algumas pessoas são nossos familiares, e por que temos familiares no nosso seio e não temos capacidade de sentar com essas pessoas e dizer o quão elas são importantes? Olhar para o nosso polo interno, buscar essas referências e colocá-las na ribalta. Então, é um pouco disto que dentro da nossa plataforma queremos trazer.

Para além da música, que é um dos pratos fortes, que tipos de manifestações podem ser encontradas no projecto?

– Nas artes, nós temos várias categorias, e a música é aquela que a priori encontramos, temos poesia, teatro, dança e temos uma infinidade de coisas que nos engrandecem como moçambicanos. O que aconteceu é que ao longo do tempo fomos compreendendo que cultura não é só música, e já vínhamos com essa visão, tanto é que na primeira, segunda e terceira edição o nosso foco era só música, e essas metamorfoses que foram acontecendo dentro do movimento foram também nos ensinando que cultura não é só música. Então, passamos a catalogar também o teatro, a literatura, a poesia, de tal sorte que de uns tempos para cá as nossas galas de homenagem privilegiam isso. Temos sempre um representante de cada expressão cultural. Portanto, por cada gala são quatro homenageados representando essa diversidade.

Na quinta edição tivemos dois músicos e nos chamaram atenção, e isso é resultado desse chamamento de puxão de orelhas que mudamos.

Já temos data para o evento?

– Sim, temos data. Será na última semana de Abril, estamos ainda a discutir um local com alguns parceiros, mas será na província de Maputo.

Já pensaram em incluir uma plataforma de debates?

– Já se pensou, não queremos que seja mais um debate, tem que ser um debate e talvez com outras tantas figuras buscar outras que estão esquecidas, não é por acaso que fomos a universidade porque é o lugar da universalidade de produção de conhecimento, creio que com a UEM e o ISARC faremos um estudo mais aprofundado para ver que tipo de debate vamos fazer, olhando para o que se fazer e o que podemos trazer como inovação.

“O projecto acarreta custos e infelizmente os empresários olham para o lucro”

Vamos à 7ª gala. Como é que se sente olhando para aquele sonho que se tornou realidade e vem ganhando notoriedade?

– Eu penso que é mais positivo por uma razão ou duas. Primeiro, é compreender que é possível dentro da nossa realidade encontrarmos a nossa geração de ouro, refiro-me a uma infinidade de pessoas ainda vivas e outras que já se foram que deram o seu litro, não desistiram do país e continuam a olhar para o país. É o caso de um dos fundadores da orquestra Djambo, que completou 105 anos de idade, maior parte dos quais dentro das artes, de forma ininterrupta.

É também através do projecto que queremos dar continuidade a esse legado porque eu acho que a vida tem esta graça de ser um jogo de estafeta, Moisés Ribeiro Conceição, Venâncio da Conceição Dilon Djindji, António Marcos, Madala e professor Mussa Rodrigues pegaram a estafeta e depois entregaram a outros até chegar a nós.

Até que ponto o projecto consegue ser de dimensão nacional?

– É um grande desafio porque agrega custos. Só uma gala de homenagem naquilo que nós projectamos não está abaixo de 400 mil meticais. Um dos maiores desafios aqui em Moçambique são as linhas de apoio, sobretudo quando é de cariz social, pois o empresário sempre quer saber o que vai ganhar com isso, mas graças a Deus há aqueles que não têm mãos a medir e têm vindo a apoiar. Não estaríamos hoje na sétima edição sem esse apoio que temos vindo a receber das várias pessoas e empresas que estando neste país acreditam e gostam da cultura. Temos consciência desde a primeira até esta edição, da necessidade de levarmos o projecto às províncias, até porque há pressão de outros decanos das artes e cultura, estando em outros cantos que perguntam quando é que vamos para Zambézia, Beira, então é uma daquelas coisas que não nos incomoda, mas temos compromisso.

Portanto, não é para prometer que vamos no próximo ano ou daqui a dois ou três anos porque de um tempo a esta parte fui aprendendo que as metas frustram as pessoas. Para dizer que a pressão é tanta e nós um dia chegaremos lá.

Quem são os principais parceiros empresariais e singulares do projecto?

– Temos recebido apoio, não podemos nos queixar. É verdade que podia ser um pouco mais, porque o nosso sonho é grande. Pensamos em um dia o projecto lançar um livro ou mesmo compilar este acervo para que as pessoas possam saber quem foram essas pessoas, o que fizeram pelo nosso país. Hoje temos escolas que falam sobre a nossa cultura, desde ensino superior até primário, então este acervo biográfico é importante e podíamos reforçar.

As empresas têm feito um grande contributo. A Bolsa de Valores de Moçambique (BVM), por exemplo, apoiou-nos num evento que tivemos no passado, tivemos o apoio da Companhia Moçambicana de Hidrocarbonetos, da Petromoc, do BNI, para além de singulares que estiveram por detrás.

É claro que com o contexto da crise fica um pouco mais difícil para as empresas, mas mesmo dentro deste aperto algumas não têm mãos a medir para o apoio. Devo vos confessar que algumas respostas não têm sido muito bonitas. Um dado curioso é que começou o projecto sem nenhum apoio e sem insistência para mostrar às pessoas que é possível fazer.

Veja que quando pedimos apoio às entidades um dos principais requisitos é ‘o que já foi feito’? E nós mostramos, desde publicações nos jornais, vídeos, e a partir daí tem sido espaço para quem toma decisão parar e pensar: “epah, esses aqui já tiveram a quinta, a sexta e já vão para a sexta gala? Quem são os que estão envolvidos? São singulares, críticos literários, reitores das universidades, porque para nós são um veículo muito forte para o campo ideológico e para o campo de construção do saber através das artes e culturas.  

Então, se nós mostrarmos que há algumas coisas que estão a ser feitas, mostrarmos as colaborações com jornais, já agora um agradecimento especial ao jornal Evidências por essa abertura, os que tomam decisão vão ganhando consciência de que alguma coisa está a ser feita.

“A cultura e desporto são elementos de pacificação”

E o que se pode esperar dessa gala que está a ser preparada?

– Está a ser preparada aos detalhes, sobretudo os intervenientes, e não vai fugir à regra nesses campos de literatura, da música, das artes plásticas e teatro. Neste momento, não podemos avançar os nomes porque ainda está a ser “cozinhado”, há um conjunto de contactos que estão a ser feitos com as pessoas que queremos homenagear, mas não vamos fugir à regra de mostrar quem são as pessoas que esse Moçambique conhece, são pessoas que mantém o seu compromisso e contributo pelas artes na sua área da música, literatura.

Por outras palavras, o formato vai manter?

– Sempre nas galas nós sorteamos pessoas de reconhecido mérito para irem dar um testemunho e falarem do homenageado, seu percurso, perfil, valências e sobretudo o seu contributo nas artes. É uma experiência que vem desde a 5ª gala.

Depois temos homenageados dentro do teatro com a Universidade Eduardo Mondlane (UEM), através da sua Escola de Comunicação e Artes (ECA). A Gala, na verdade, é o culminar de um trabalho de pesquisa que tem havido com alguns professores.

No passado homenageamos figuras muito conhecidas, como Roberto Chitsondzo, Luís Bernardo Honwana, Manuela Soeiro, Gabriel Mondlane, que a sua história confunde-se com o cinema moçambicano. Uma coisa interessante é que o homenageado não sabe quem fala dele na homenagem e isso ajuda a preservar emoções fortes.

E depois temos também outro momento, que é exposição histórica, dentro deste trabalho de pesquisa conseguimos graças ao apoio da Associação Cultural Mono a impressão de alguns panfletos que mostram e narram a história desses homenageados.

Mirandolino, como é que se junta tanta gente para uma causa que não é lucrativa?

– Existem no mundo duas plataformas que estão associadas, que é a cultura e o desporto, nós acompanhamos noutros países que há guerra, no dia em que a selecção joga, todos param vão assistir jogo e quando termina a guerra retoma, estamos a entender que tanto o desporto como a cultura são elementos para a pacificação, então, a partir do momento que unirmos as pessoas se o objectivo é esse e não de trapacearmos as pessoas, elas realmente entram.

Já tivemos encontro com a ministra, já há alguns anos, e disse-nos que o Governo está aberto, tanto é que neste movimento tivemos uma carta abonatória do Ministério. Disseram-nos que não tinham dinheiro, mas abriram-nos portas. Alguns não têm linhas de apoio, mas ajudam-nos a seguir para outras entidades, e uma boa recomendação é também um caminho andado. É assim que nós juntamos estas sinergias.

O desafio de documentar a arte em Moçambique

Tem convivido com figuras consideradas embondeiros do país. Acha que há valorização das figuras das artes no país? O que pode ser feito?

– É um problema estruturante que não só envolve a singulares, mas também as entidades colectivas. Num cômputo geral, penso que é possível fazer mais pelos nossos embondeiros, mas o nosso meio precisa ter balizas de consumo, através de cotas bem desenhadas para determinar a percentagem de conteúdo nacional que deve dominar e ser consumido nas rádios, televisões e até jornais. Isso pode ajudar a fortificar a nossa indústria cultural e criativa para defender os direitos dos nossos artistas.

Quero acreditar que não é um trabalho singular, mas colectivo, e cada entidade deve fazer o seu papel. Eu acho que é um daqueles meios ou mercados que podemos olhar e dizer que é promissor e cada um pode fazer a sua parte.

O que acha que está a falhar a nível estrutural para que até hoje não tenha uma indústria consolidada, em que o artista não precise estar no activo para ganhar através da sua arte?

– Eu penso que as políticas estão muito boas e claras, mas um dos maiores problemas pode estar nestas tarefas que cada uma das entidades tem a fazer. Com a SOMAS, a Polícia com focos da pirataria, com um mapeamento claro das casas que veiculam a cultura, podemos proteger melhor os interesses dos artistas.

Já a terminar. Há algo que gostava de partilhar, que podemos ter deixado de fora?

– Continuar a fazer este clamor de pedido de apoio. Muitos não descobriram ainda que as artes e cultura são a nossa identidade, é esta ferramenta de educação. Então, queríamos por estas linhas do Jornal Evidências pedir às instituições, o empresariado nacional, para que olhem também para a cultura como esta plataforma de educação, de aprendizado e acima de tudo de valorização do nosso país.

O nosso país sem cultura e nós seres humanos sem cultura não somos aquele povo com história, e a nossa cultura tem esse veículo e estas vicissitudes que são exemplos de ensinamentos, de educação de gerações. Então, para o projecto continuar de facto necessita de apoio, necessita de injecção financeira para que estes elementos continuem a existir.

Queremos convidar as editoras também, aquelas que tenham essa veia, pois existe em nós o sonho de um livro bibliográfico, pois uma forma de documentarmos a passagem destas pessoas pela terra é deixar num livro.

Um dos maiores desafios é encontrar os que nos levam a pautar essas músicas, colocar este acervo nas universidades para que os que estão a se formar em música possam beber e conhecer a música de Moçambique.

Um dado interessante que tive num passado muito recente por causa de Alberto Mutcheca é que pedimos alguém para pautar as músicas e esta pessoa não conseguiu, apesar de ter formação superior em Música fora de Moçambique, mas não conseguiu pautar a música de Alberto Mutcheca, pediu para levarmos o Mutcheca até ele para ele executar e ouvir, e infelizmente não conseguimos porque Mutcheca perdeu a vida. Queremos pautar e documentar tantos outros artistas para mostrarmos ao mundo que também temos nossas orquestras e sinfonias.

E este projecto de pautarem as músicas em que nível está? Tem apoio?

– Acarreta recursos, mas temos uma abertura de uma universidade que está atenta a estes detalhes. O desafio é este de colocar as músicas no acervo, pois existem músicas épicas neste país e deviam ser estudadas o seu conteúdo.

Documentar, fazer vídeos e pautas são formas de preservarmos a nossa memória colectiva e estas pessoas pelo que fizeram, já deixam de ser apenas das suas famílias, são um património para Moçambique, então cada um de nós tem uma responsabilidade, e nós estamos a fazer a nossa parte.

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