Severino Ngoenha diz que o Governo não tem ideia do que está a acontecer em Cabo Delgado

DESTAQUE POLÍTICA
  • II Conferência Dom Alexandre José Maria dos Santos
  • “Visto de Maputo, Moçambique é um país lindo, sem problemas, guerra e sem deslocados”

O recrudescimento do terrorismo agravou a crise humanitária na província de Cabo Delgado. Numa altura em que o Governo vinca que a situação está controlada no Teatro Operacional Norte, o académico Severino Ngoenha refere que o Executivo não tem ideia do que está a acontecer no terreno, visto que “Maputo é longe, não se ouvem os gritos daqueles que são mortos sem saber porquê nas aldeias de Cabo Delgado”.

Duarte Sitoe e Esneta Marrove

O ministro da Defesa Nacional, Cristóvão Chume, confirmou, recentemente, incursões dos terroristas em alguns distritos da província de Cabo Delgado, tendo na ocasião garantido que não se trata de recrudescimento do terrorismo.

“A situação na província de Cabo Delgado continua estável, não obstante as últimas ocorrências no sul da província de Cabo Delgado. Como se sabe, algumas aldeias nos distritos de Quissanga, Metuge, Ancuabe, Chiùre sofreram alguns ataques que originaram um deslocamento da população mais a sul, para a província de Nampula, e também para outros distritos de Cabo Delgado”, sublinha.

Quem ficou perplexo com os discursos do Governo perante a situação que se vive na província de Cabo Delgado é Severino Ngoenha. No entender do académico, os governantes não têm ideia do que está a acontecer naquele ponto do país porque Maputo é longe.

“Maputo é longe, é tão longe que os que de lá mandam não têm ideia do resto do país. Se não fosse longe, hoje o país teria parado para tentar perceber o que está a acontecer nos distritos de Quissanga, Ibo, sem falar de Chiúre e Macomia. Maputo é longe. Visto de Maputo, Moçambique é um país lindo, sem problemas, sem guerra e sem deslocados, sem funcionários a fugirem para salvar a sua pele. Mas Maputo é longe, não se ouvem os gritos daqueles que são mortos sem saber porquê nas aldeias de Cabo Delgado”, declarou Severino Ngoenha.

Ngoenha, que discursava durante a Conferência Dom Alexandre José Maria dos Santos, evento organizado pela na Universidade São Tomás de Moçambique (USTM), que decorreu sob o lema “servir e não ser servido”, apontou que os moçambicanos estão cegos e surdos perante a crise humanitária que vive em Cabo Delgado.

“Nós estamos longe, nós estamos cegos e surdos em relação ao que acontece com milhares dos nossos concidadãos em Cabo Delgado, neste momento, mas também em muitas outros Cabos Delgados, onde as pessoas morrem de fome, as crianças se sentam no chão, em que o analfabetismo progride e a miséria não pára de aumentar”.

Por outro lado, o conceituado académico recordou que o fundador da Universidade São Tomás de Moçambique (USTM), Dom Alexandre José Maria dos Santos, tinha a unidade nacional no seu rol das prioridades.

“Este discurso duro e severo remete o que acontece com os nossos co-cidadãos em Cabo Delgado hoje e tem muito a ver com o legado que Dom Alexandre deixou, pois ele preocupava-se em ver Moçambique unido e se reconciliando consigo próprio. Sua obra está associada ao desenvolvimento e fortalecimento das instituições religiosas, à promoção da educação e à defesa dos mais vulneráveis. Dom Alexandre dos Santos deixou um legado significativo de dedicação à fé, compromisso com a justiça e defesa dos direitos humanos em Moçambique”, sustentou.

Fazendo uma analogia da actual situação económica e social do país, sobretudo na província de Cabo Delgado, Severino Ngoenha fez questão de destacar que Dom Alexandre dos Santos lutava firmemente contra a pobreza.

“As grandes teorias são respostas aos problemas da sociedade, estudar para Dom Alexandre era encontrar soluções para os problemas do país. Há no país vários moçambicanos que passam necessidades primárias como a falta de alimentação condigna, o acesso à educação e o acesso à saúde. Cerca de 50% da população não tem habitações condignas, boa parte das crianças sentam no chão nas escolas por falta de carteiras, há pessoas que caminham de Nampula até Cabo Delgado por falta de transporte. Se o nosso estudo não toca essas pessoas evitemos invocar Dom Alexandre porque ele não está conosco”, sublinhou.

Por seu turno, o reitor da USTM, Joseph Wamala, que discursava na abertura do evento, destacou as qualidades de Dom Alexandre, tendo referido que é necessário não ser egoísta perante as necessidades dos outros.

“Ao servir aos outros Dom Alexandre estava a pôr em prática sua espiritualidade como cristão, mas também como franciscano. Dom Alexandre preocupou-se com o presente, mas também com o futuro, não se preocupava apenas consigo, como também com aqueles ao seu redor, buscando sempre garantir futuro próspero e seguro para todos”, disse.

Prosseguindo, Wamala acrescentou que é importante aprender a olhar para os outros porque só assim os ideais e o legado do Dom Alexandre continuarão, tendo ainda sugerido a inclusão de estudos religiosos e teológicos no curriculum académico.

Vida e obra de Dom Alexandre

Considerado um homem ao serviço de muitas causas, Dom Alexandre nasceu no distrito de Zavala, província de Inhambane em 1953, tendo tornando-se o primeiro negro moçambicano a ocupar a função de padre. Em 1988, o fundador da Universidade São Tomás de Moçambique foi o primeiro negro designado cardeal-presbítero de San Frumenzio ai Prati Fiscali pelo Papa João Paulo II.

Reza a história que, entre 1975 e 2003, Dom Alexandre José Maria dos Santos foi arcebispo de Maputo, sendo que após tornou-se arcebispo-emérito de Maputo onde exerceu as funções até a sua morte.

Consta, igualmente, que em vida Dom Alexandre apostou na educação, tendo criado a Universidade São Tomás de Moçambique e foi por isso, que a instituição de ensino decidiu criar uma conferência anual em que pudessem falar dos ideais e legado do arcebispo.

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