Um “suborno” com direito a recibo

DESTAQUE POLÍTICA
  • Institucionalização de corrupção no Comando da PRM na Zambézia?
  • PRM simula multas para atenuar supostas irregularidades que possam surgir aos operadores de transporte em Quelimane
  • O Departamento da Polícia de Trânsito assume que “pode, de facto, constituir verdade, mas é preciso apurar, e estamos a fazer isso”

A corrupção está a ganhar uma configuração mais sofisticada na Polícia. Em Quelimane, província da Zambézia, operadores de transporte são instados a pagar, mensalmente, uma taxa que configura multa antecipada, no Comando Provincial da PRM – Direcção de Ordem e Segurança Pública, para ver atenuada a problemática de circular sem documentação. Mas a medida não é exclusiva aos que têm toda documentação. Bem antes de operar em algumas rotas é imposta aos operadores uma taxa de mil meticais paga no Comando, mas sem nenhuma fundamentação aparente. Na verdade, este é um dos requisitos para os operadores de transportes de passageiros operarem nalgumas rotas. Mais curioso é que no recibo do comprovativo do pagamento lê-se que este é referente a uma suposta multa, no entanto, não especificada, o que pode ser encarado como uma tentativa de legalizar um roubo. Quando confrontado com dados, no decurso de exercício de contraditório, o Departamento de Trânsito a nível daquela província reconheceu as assinaturas, mas afirma que são referentes às diversas irregularidades, assumindo que a denúncia “pode, de facto, constituir verdade”, mas, no seu entender, é preciso mais investigação interna.

Nelson Mucandze

Para qualquer cidadão mediano constitui um insólito uma cobrança de multa antecipada, ou seja, antes da consumação da infracção. O facto foi objecto de uma investigação aturada do Jornal Evidências em Quelimane, província da Zambézia. Os valores, que são, na verdade, uma taxa fixa, são pagos entre os dias 12 a 15 de cada mês. No recibo, de diferente é apenas a data e o argumento, mas o valor de mil meticais mantém-se e a soma dá 12 mil meticais por ano.

Paulo, nome fictício, é a ilustração de que para empreender não basta cumprir com os procedimentos burocráticos legais, mas há outros que mesmo estando à margem da burocracia formal o cumprimento é mais rigoroso, por envolver um sindicato criminoso que controla o terreno.

Ele adquiriu uma camioneta de uma tonelada e meia em Outubro de 2023. Pretendia operar na rota Quelimane-Zalala, um troço de 40 Km, transportando passageiros. Entre os requisitos para dar seguimento à pretensão foi orientado que deve pagar uma taxa de mil meticais ao Comando Provincial da PRM na Zambézia.

Surpreendentemente, ao pagar a referida taxa, recebeu um recibo em que se lê que o pagamento é referente à multa. Ignorou a descrição do recibo, apenas obedeceu a instrução de que o mesmo deve ser conservado durante um ano. Em nenhum momento Paulo foi notificado de qualquer infracção. Mas o período do pagamento é mensal.

Não é apenas uma realidade de Paulo, mas sim de uma dezena de automobilistas, senão centenas, que denunciaram à nossa reportagem uma espécie de multas mensais, acompanhado de recibos dos pagamentos efectuados no Comando Provincial da PRM.

Em conversa com o Evidências, Paulo explica que “o pagamento é para evitarmos ser parados quando estivermos a exercer a actividade. Eles sabem que ninguém tem documentação para exercer actividade, então criaram-nos essa facilidade”, disse, inocente, que se limita a olhar para as vantagens apresentadas, sem observar que pode estar a ser cúmplice de uma corrupção institucionalizada.

Por outro, a realidade no terreno é outra. “Mesmo com isso, às vezes somos surpreendidos por uma outra polícia, de outras brigadas, que por alguma razão nos pede refresco ou nos actua multa”, denuncia.

De onde veio a informação?

Mas de onde veio essa informação? João*, também nome fictício, operador na Quelimane- Zalala, afirmou que foram sensibilizados por uma brigada móvel da PT, mas não ficou claro para que serve aquele valor.

“Inicialmente, eles davam aos automobilistas um prazo de uma semana para pagar a taxa, mas depois o pagamento passou a ser imediato”, disse aquele condutor, referindo que em conversa com colegas ficou a saber que é uma taxa para facilitar a sua actividade.

Curiosamente, o mesmo não acontece noutras rotas. Como por exemplo, Necuadala- Quelimane. Aqui não há imposição de taxas, não que não haja fortes indícios de corrupção, mas é que se manifesta de forma tradicional. Dionísio Daniel está afecto na rota Quelimane Necoadala, e diz não estar a vivenciar a mesma experiência dos que são impostos a pagar taxa mensal, mas expõe uma relação problemática entre os automobilistas e a policia de trânsito, que se traduz no aumento de “dinheiro de refresco”.

“De Quelimane a Nicoadala são 40 Quilometro, vamos ter quatro postos de fiscalização e em cada um destes postos devemos deixar 200 meticais de fiscalização. Quando tiramos 100 eles negam, agrafam a multa no seu livrete e apreendem a carta e somos levados directamente na esquadra, é corrupção. Mas quando você dá 200 meticais, eles levam e poem no bolso. De Nicoadala a Quelimane são 70 meticais por passageiro, quanto é que vou abastecer, quanto é que vou dar ao patrão?” questiona o jovem, que diz que antes aceitavam os 100, mas desde que foi denunciado o excesso das brigadas nesta rota, foi aumentado a nota a deixar nos postos de controlo de 100 para 200 meticais. O jovem motorista acrescenta que, curiosamente, essas brigadas só reduzem quando há uma visita de “alguns chefes” à capital da Zambézia.

Com os dados na mesa, uma semana depois dos mesmos serem partilhados, Miguel Caetano, do departamento da PT, naquela província, disse à nossa reportagem que não tinha nenhum conhecimento de que há colegas que impõem taxas, mas que reconhecia as assinaturas que constavam dos recibos.

Argumentou, no entanto, que podem ser multas que foram passadas na sequência de diversas infracções por “colegas que já não estão conosco, outros movimentados no âmbito da rotatividade do efectivo”, disse Caetano. Mas, é uma afirmação desmentida pela realidade, o Evidências tem recibos de pagamentos de Dezembro e Janeiro, que confirmam o pagamento de alguns condutores.

“Isso pode, de facto, constituir verdade, mas é preciso apurar a fundo, e havendo confirmação saberemos que medidas a tomar para responsabilizar os envolvidos”, disse, para depois confirmar a autenticidade do livro de registo/ cadernos de recibos. O jornal conseguiu mobilizar pelo menos nove recibos de pagamentos, que de acordo com os automobilistas foram pagos no âmbito de orientação de pagamentos de taxas e não de multa como se refere no recibo.

O valor de todos recibos referentes é de mil meticais, mas, curiosamente, cada recibo tem um argumento (artigo) diferente. Ou seja, é criado qualquer argumento para justificar o pagamento, que no fim dos 12 meses totaliza 12 mil meticais pagos numa taxa pouco clara. Curiosamente, é raro encontrar um transportador que tenha organizado os 12 recibos.

Um meio sofisticado de corromper

Convidado a analisar os dados apurados pela nossa reportagem na Zambézia, Baltazar Fael, jurista e pesquisador do Centro de Integridade Pública (CIP), afirma não ter conhecimento deste tipo de prática, mas anota que “está claro que os esquemas de corrupção vão se sofisticando com o tempo e que a própria polícia vai procurando maneiras e formas de agir no sentido de fugir de um possível controlo que está a ser exercido sobre os agentes da corporação”.

“Vou lhe dar um exemplo: você, há 10/15 anos, não falava de criminalidade cibernética, hoje em dia os corruptos usam meios electrónicos para fazer este tipo de crime. A PGR tem um canal de denúncia só para tratar de questões de crimes cibernéticos, a própria criminalidade evolui e a própria polícia de trânsito vai sofisticando os seus meios”, disse, partilhando, adiante, outra indicação que sugere sofisticação de corrupção: há casos “em que a polícia de trânsito já não precisa de se aproximar dos automobilistas para extorquir ou retirar valor.

“O automobilista quando passa por uma brigada atira o dinheiro para o chão e o polícia fica por detrás a ir apanhar esse dinheiro. São coisas novas que estão a acontecer, significa claramente que a polícia pode estar a sofisticar a sua forma de actuação”, disse.

Na sua avaliação holística sobre a evolução da polícia, Fael começa por assumir que não tem dados concretos sobre o estágio da corrupção ao nível da polícia, mas lamentou a frequência das queixas. “Todos que andamos de viaturas sabemos que há acções de extorsão por parte da polícia”, afirma, prosseguindo que este problema de corrupção é um problema generalizado e a polícia de trânsito não seria uma ilha.

“É preciso que haja meios para combater esta corrupção e a partir daí temos que questionar as próprias entidades da polícia de trânsito que tratam destas questões, porque acredito que eles têm uma coisa que chamam de Departamento de Ética e tratam desses assuntos”, sugere, indicando que cabe a este Departamento dizer se há ou não casos de corrupção a nível da Polícia de Trânsito e qual é número de casos que existe e qual é a gravidade da situação, porque “o que temos são percepções, como cidadãos, de que se cobraram a mim, certamente vão cobrar a outro, e isto torna-se uma espiral de corrupção”, observou.

Não se trata de aparente sofisticação da miniestação da corrupção na polícia, num contexto de crise palpável, devido as sucessivos atrasos salariais que vão se tornando normais na função pública, os dados corroboram para um aumento dos casos de corrupção nos diversos ramos dos poderes judiciário e castrense.

Em 2022, o Ministério Público registou 1.639 novos processos de corrupção, o que representa um aumento comparativamente aos 1.277 casos registados no ano de 2021. Como resultado dos casos de corrupção registados o ano passado, o Estado foi lesado em 617.153.505,93 meticais, mais do que o dobro dos prejuízos causados no ano anterior, que foi de 303.445.601,07 meticais.

O aumento de casos de corrupção é sinal de que “a corrupção se mostra impregnada em quase todos os sectores da sociedade”, lê-se no informe da Procuradora-Geral da República, Beatriz Buchili. A PGR registou, também, um aumento dos processos de corrupção tramitados no ano de 2022. Foram tramitados 1.606 casos enquanto 614 continuam pendentes. Em 2021, a PGR havia tramitado 1.299 casos, deixando pendentes 640 caso.

A PGR referiu que Moçambique “tem melhorado gradualmente no Índice de Percepção (de Corrupção) Internacional, com uma subida de cinco pontos na avaliação realizada em 2022, o que valoriza os esforços e as conquistas alcançadas”.

* Reportagem produzida no âmbito do Programa para Fortalecimento do Jornalismo Investigativo com enfoque na Transparência e boa Governação Económica – REAJIR.

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