Adequação é Educação

OPINIÃO

Óscar Fumo

Esta coisa de nos tratarmos por “irmão/irmã”, “mano/mana”, “pai/mãe”, “Boss”, “ilustre” e sei mais o quê ainda me custa engolir. Posso até soar avelhantado, mas não concedo. Desconfio que um problema mal resolvido se esconda por trás dessas formas de tratamento. Há, inclusive, quem tentou convencer- me das virtudes dessas formas argumentando que nós africanos somos uma grande família e, por isso, não nos tratamos com formalidades, como estranhos, usando formas distantes como “Senhor/Senhora”; que essas formas, seriam, também, formas de incorporarmos as nossas culturas na língua portuguesa, fazendo-a ter as nossas cores, sons e tons.

Embora simpatize com a ideia de um Português “à nossa maneira”, que expresse as nossas peculiares formas de ser e dar sentido à vida, estou desconfiado que esta coisa dos “manos e manas” e a flagrante deselegância como nos dirigimos uns aos outros, mesmo quando estranhos e em contextos mais formais, não reflita nenhuma apropriação consciente e propositada da língua, mas, ao invés, algum desconhecimento e/ou falta de domínio das formas apropriadas em Português. Como reclamava uma amiga a propósito disto, a situação é tal que, quando gentilmente abordamos alguém mais jovem dizendo-lhe, por exemplo, “Importava-se, por favor”, a primeira reacção é esbugalhar e olhar-nos de cima para baixo, como que a rastrear-nos a idade, a proveniência e a educação. Usar expressões de tratamento adequadas soa à velharia, a pedantismo e pretensão de se revelar distinto e superior. É como se a etiqueta e a polidez causassem estranhamento e repulsa. É como se procurar ser adequado esteja a tornar-se inadequado. A elegância das formas de tratamento adequadas em Português já não é conveniente. Não é estranho que seja mais popular e desenrasque-se melhor quem não pede licença, mas dá umas dedadas no ombro do outro e solta um “Coméquê, mano?”, “Tudo bem, boss?”. É um viva à grande família, directa, informal e livre dos distanciamentos e protocolos.

E quando os modos familiares já não têm fronteiras e penetram contextos e lugares mais públicos, formais, solenes?! Quando a Senhora do balcão da repartição pública é tratada por “mãe, irmã, mana”?! O senhor agente da Polícia de Trânsito é “pai, irmão, mano”? A colega do serviço é “Querida”?! Não é isto, para além de falta de conhecimento do que é adequado, uma forma de “corrupção”, como com razão considera uma minha amiga Psicóloga, na medida em que se apela aos sentimentos que essas palavras evocam, manipulando, assim, vontades? E os abruptos “Estás na bicha?”, “Na boa? És a última pessoa?”. E o “Tu” que se distribui indiscriminadamente, sem idade e nem contexto?! Na grande família não se cuida em ser adequado?! Não há mais protocolos; não há funções, hierarquias e as correspondentes formas de tratamento; as formas de pedir licença, a vez; formas de delicadeza e polidez?!

Por muito atractiva que nos pareça a desculpa de que as pessoas estão a apropriar-se da língua fazendo-a reflectir as nossas realidades, julgo que os professores de língua portuguesa (sobretudo estes) devem estar atentos ao sino que toca comunicando-lhes o deserviço que fazem à capacidade das pessoas de usarem eficazmente a língua portuguesa para participarem de forma adequada e eficaz nas diferentes práticas sociais. A aula de língua portuguesa tem de deixar de ser uma aula de gramática a retalho que só faz decorar conceitos e nomeclaturas gramaticais estéreis, deixando os alunos privados do conhecimento sobre como usar competentemente a língua que falam. Tem de ensinar uma língua real, funcional, para usar em práticas sociais ordinárias, com ela dizer e, assim, fazer coisas concretas. A nossa escola e os nossos professores de Português devem promover uma educação linguística que transforme os alunos em sujeitos conscientes dos efeitos dos usos que fazem da língua. Usuários da língua competentes sabem que cada uso vale o que vale no seu devido lugar e, por isso, cada contexto reclama formas apropriadas de usar a língua para abordar e tratar as pessoas e dizer coisas com adequação.

Podemos, sim, ser uma grande família, mas reservemos os tratamentos familiares para os ambientes familiares e outros negócios privados. Para os ambientes e negócios formais e públicos, que a escola volte a ensinar como nos dirigimos àqueles com quem não temos proximidades; como abordamos uns aos outros para pedir favores, perguntar e pedir informações, aceitar e recusar, concordar e mostrar desacordo e outros usos e funções sociais da língua. Ser adequado não é nem velharia nem pedantismo; é educação.

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