- Jovens afogados no álcool e drogas: A outra face da guerra
Corpo debilitado, lábios queimados, olhos arregalados, olhar vazio e disperso, como que a procurar um campo de fuga para algum perigo à espreita é o que resta do jovem Chico Azevedo, de 34 anos de idade, descrito por amigos e familiares como uma pessoa que era organizado, bonito e brincalhão, mas que sucumbiu aos horrores da guerra em Cabo Delgado que quando não mata, deixa sequelas psicológicas muito graves. Hoje completamente entregue ao álcool como forma de esquecer os horrores que viu no teatro operacional, Chico faz parte da estatística de milhares de jovens cujas vidas mudaram drasticamente devido aos traumas causados pela guerra, ante o descaso do Estado que não oferece a mínima assistência psico-social aos militares regressados de missões no Teatro Operacional Norte (TON), levando com que muitas vezes se afoguem no álcool e drogas. O Ministério da Defesa Nacional recusou-se a comentar sobre o assunto.
Elísio Nuvunga
Desde Outubro de 2017, o exército moçambicano tem estado na linha da frente na luta contra o terrorismo. Contrariamente às unidades da polícia em que a rendição é de três em três meses, os militares, quando destacados em missões em Cabo Delgado, chegam a cumprir por anos.
Durante este período, por força da violência, os militares, muitos deles ainda jovens, são expostos a cenários que testam a sua resiliência psicológica. Colegas tombados, vítimas decapitadas, civis mutilados, corpos esquartejados, entre outras formas de terror, fazem parte do livro da barbárie protagonizada pelos terroristas.
Quem vive um cenário apocalíptico desses guarda traumas profundos, ainda que em missão de defesa da pátria. Há quem relata que não consegue sequer dormir sem se drogar devido às lembranças assombrosas da guerra, um cenário agravado pela falta de assistência psicológica para lidar com o estresse traumas e outras questões relacionadas à sua saúde mental.
Essa assistência pode incluir serviços de aconselhamento, terapia, apoio emocional, intervenções psicológicas e treinamento em resiliência emocional, entre outros. Mas, segundo relatos colhidos pelo Evidências, não existe este serviço disponível para os militares regressados do TON, o que faz com que muitos se percam nas memórias da guerra e acabem buscando consolo no álcool e nas drogas.
Estudos realizados sobre as maiores guerras mundiais (primeira e segunda), por conta da guerra caracterizada por todo tipo de barbaridade (cicatrizes, mortes, holocaustos), revelaram que os militares não conseguiam dormir, comer e socializar. Na altura, os hospitais apenas lidavam com ferimentos físicos e não com o subconsciente e, por conta disso, milhões de soldados regressavam da guerra gravemente feridos no seu psicológico.
Na primeira guerra mundial, por exemplo, os soldados apresentavam sérios distúrbios de sono com reações violentas no seu dia-a-dia. Na segunda guerra mundial, por exemplo, militares norte-americanos enviados para frente de combate nos anos 1942-1945, frequentavam mais hospitais por conta de problemas psicológicas do que ferimentos físicos por conta do ambiente violento em que estavam inseridos.
Regra geral, estudos revelam que todos os soldados expostos a algum combate de guerra regressam ao seu convívio familiar com algum tipo de transtorno mental, alguns apresentando pesadelos, insónia, violência e o seu tratamento varia de militar para militar.
Os soldados que já vivenciaram a guerra podem sofrer transtornos de stress pós-traumáticos também conhecida por “doença do sobrevivente”, caracterizada por pesadelos, memórias, dificuldades de concentração, pensamentos negativos, etc. A doença foi classificada, depois da guerra de Vietname, quando o número de soldados vítimas de transtorno era maior. O governo norte-americano viu-se obrigado a criar uma rede hospitais especialmente para os veteranos da guerra (Jornal Cultura, 2020) para acompanhamento psicológico com profissionais de saúde (psiquiatras, psicólogos, psicanalistas).
Outro exemplo recente que expõe a vulnerabilidade psicológica dos militares foi exposto pela RTP em 2023, envolvendo a guerra entre Rússia e Ucrânia, em que milhares de soldados ucranianos sofrem graves problemas psicológicos, o que representa uma preocupação para o governo daquele país.
Cicatrizes emocionais e psicológicas que roubam sonhos
Quem já esteve frente a frente com o terror e barbárie protagonizados pelos terroristas em Cabo Delgado, conta episódios de causar arrepios a qualquer um. Basílio Mabombo (nome fictício) de 27 anos de idade, esteve empenhado em Cabo Delgado durante dois anos e é hoje em dia um exímio alcoólatra por conta horrores que vivenciou em Mocímboa da Praia.
Seu rosto já não é mais o mesmo: antes sonhava em brilhar em renomadas passarelas mundiais, exibir-se e encantar o mundo como modelo, mas, agora, as cicatrizes físicas e emocionais roubaram-lhe este sonho. Seus olhos outrora cheios de determinação, agora transmitem um misto de sentimentos: despreocupação, raiva e desespero.
Por conta destas memórias, o álcool tornou-se o refúgio que abriga suas dores e feridas que o consomem no estado lúcido.
Mabombo ostenta uma presença intimidadora, mas por detrás da sua robustez, há um homem frágil, sem rumo e cheio de nada, com a alma perdida em memórias traumáticas.
“Não sei como começar. É muita coisa que vivi lá, é muita coisa mesmo. Não sei como não morri porque eu já não me imaginava estar em Maputo com a minha família. Vi muitos colegas a morrerem de forma brutal. Uns eram cortados pescoços ainda vivos, como se fossem galinhas com facas que nunca vi na minha vida. Eu já bebia, não vou mentir, mas agora que voltei já bebo muito para esquecer o que vivi lá. Outros meus colegas começaram a fumar porque não é fácil ficar a pensar nos tiros, sangue e pessoas mortas. Quando comecei a beber muito, vi que mudava muita coisa porque conseguia comer alguma coisa, descansar (dormir) e esquecer o barulho dos tiros que as vezes nem se ouviam”, relatou o seu drama.
Guto Mabombo, irmão mais novo de Basílio, assiste diariamente o “diário de um alcoólatra”, conta que o irmão já não é o mesmo de antes de ir a guerra, por isso lamenta o facto do seu mais velho não ter tido qualquer acompanhamento psicológico quando regressou.
“Foi no tempo da Covid. Eles estivam a escoltar um carro da saúde para uma aldeia. Quando chegaram os médicos vacinaram todo mundo. Os insurgentes ficaram a assaltar a base e houve um banho de sangue. Os únicos que estavam no operativo eram aqueles que escoltavam e o número era reduzido. Ele não consegue esquecer isso. Ele não contava muito sobre essas coisas, porque era meio difícil conversar sobre essas coisas porque eles não tiveram acompanhamento psicológico e quem tentou fazer isso foi minha mãe, mas ele não estava para essas coisas. O comportamento nunca mais foi o mesmo”, lamenta impotente Guto.
“Quando voltou começou a beber muito e de forma exagerada, porque fazia do álcool seu refúgio. Outra coisa por vezes meu irmão não pegava sono. Pegava no sono depois de assistir por muito tempo, por vezes ia a cama por volta das três ou quatro horas. Agora só dorme quando bebe”, revelou, contando ainda que nos dias de “baixas temperaturas”, seu irmão passa mal com as sequelas da guerra que se abrigam em seu corpo.
“Os únicos psicólogos que temos são ‘comandantes e generais’ que só dizem vai passar”
Chico Azevedo (nome fícticio) é outra vítima da negligência do Estado que se furta de prover assistência psicológica aos soldados regressados da guerra. Por conta de sua especialidade, passou nove meses no TON, mas o suficiente para carregar uma marca indelével na sua vida. Tem apenas 34 anos de idade.
Já foi um jovem social e muito brincalhão, mas a sua vinda de Cabo Delgado revelou outra face. Como os demais, Azevedo foi também formatado naquela geografia. Hoje, vive buscando refúgio no álcool para esquecer os traumas e sequelas dos horrores que viveu em Mocímboa da Praia.
Em conversa com o Evidências, Azevedo mostrou-se limitado por temer supostos agentes do SERNIC dispersos em cada esquina e avenidas da cidade de Maputo, que têm se feito de homens “pacatos” com objectivo de “sepultar” verdades. De muitas vivências oriundas de Cabo Delgado, das poucas que revelou infelizmente convergem com a triste realidade do Mabombo, ou seja, falta de acompanhamento psicológico e dores no corpo que infelizmente desenterram memórias de Cabo Delgado.
“Quem já esteve na guerra sempre tem traumas, não interessa o tipo de guerra. Lá vivi muita coisa. Lá acontece muita coisa que você não pode imaginar. Eu não posso dizer tudo porque tem muitos ‘gajos’ da Sernic que andam a procurar essas informações para depois… sabes como é que é, isso é Moz”, disse receosamente, quando questionado sobre memórias que lhe assaltam a tranquilidade.
“Meu irmão, lá em Cabo Delgado não há isso de psicólogos. Mesmo quando você cumpre sua missão e vais para casa, não vais ter com ninguém. Isso é Moz mano, os únicos psicólogos que temos são ‘comandantes e generais’ que só vão te dizer vai passar, tens que ser forte”, disse Azevedo, para depois acrescentar que reza todo santo dia para nunca mais “pisar” em Cabo Delgado em situação nenhuma.
“Tento apagar tudo que vivi lá, mas não é fácil”
Quem também vive com a mente perdida em combate é Riquito Vaz (nome fictício) de 25 anos de idade. Infelizmente, é o mais penoso de todos por conta da sua idade “precoce” e debilidade física. Seu olhar revela um cansaço de viver e vontade de nada. É mais uma alma inocente atormentada por tiroteios de Cabo Delgado.
No meio da noite, quando os outros se presume estarem a descansar, Riquito busca refúgio em sua fé inabalável em Deus. Em momentos de solidão, a oração dá trégua as turbulências por alguns instantes no seu interior. A presença divina o acalma e o fortalece, dando lhe força para matar para sobreviver e enfrentar fantasmas da sua imaginação.
Ele é um dos que foram ao campo operacional em Cabo Delgado, em 2021, e ficou lá por alguns meses que não chegou de revelar como forma de proteger sua integridade.
“São situações da vida que me levaram até lá. Acredito que sejam planos de Deus. Não fiquei muito tempo como outros, mas vivi coisas que para os amigos que foram antes de mim dizem que não é nada. Mas se ele (Deus) quiser nunca mais irei para lá. Quando regressei tive oportunidades de voltar novamente para me especializar para garantir bom salário, mas minha mãe negou porque eu lhe contava tudo que lá acontecia. O que fazia e o que comíamos. Já sabe o que pode acontecer”, relata.
Riquito mesmo com o seu refúgio (bíblia), um instrumento de espantar “demónios”, não escapou dos assaltos matinais sobretudo nas madrugadas. Seu cérebro também emigrou para outras geografias onde só a guerra nos pode conceder.
“Tento apagar tudo que vivi lá, mas não é fácil. As vezes fico concentrado, mas volto a pensar em muita coisa que na minha casa ninguém sabe e sempre que me perguntam invento desculpas que não existem. É pesado. Eu não gostaria de falar mais sobre isso. Quem sabe um dia”, emocionou-se e ficou mudo.
Sua mãe, dona Maimuna, residente no bairro “Ngungunhane”, com uma idade avançada, carrega consigo as marcas de preocupação e dor por conta do seu filho.
Apesar de lembranças dolorosas que assaltam o seu filho, relata parcialmente com orgulho a transformação do Riquito, que hoje em dia dedica seu tempo com fervor à igreja, onde busca o conforto espiritual. É possível captar no semblante da dona Maimuna a gratidão pela sobrevivência do seu filho e angústia pela dor e experiências que seu filho partilhara.
“Eu estou muito feliz porque meu filho regressou. Não esperávamos mais que ele voltasse por causa do que sempre nos contava”, relatou.
“É importante o exército ter programas de Saúde Mental e de Bem-Estar” defendem psicólogos
Para o psicólogo moçambicano, Boia Júnior, com experiência no tratamento de traumas da guerra, a exposição dos militares na guerra em Cabo Delgado, os impactos psicológicos dos traumas causados pela guerra são severos.
“A exposição de seres humanos a atrocidades, sejam eles militares ou civis, provoca sentimento de desamparo e impotência total e cria um abalo da auto-compreensão e da compreensão do mundo. Afinal viver em sociedade implica o respeito as normas sociais, dentre eles a valorização da vida humana, do respeito as autoridades, da previsibilidade da vida. Quando somos confrontados com actos bárbaros, tais como mortes indiscriminadas, violações sexuais, raptos, destruição gratuita de aldeias, entre outros, estas experiências excedem, na maioria dos casos, a nossa capacidade de elaboração psíquica de atribuição de significado”, sublinhou.
Boia Júnior clarifica que militares desprovidos da assistência psicológica, depois de passar por uma experiência traumatizante, têm uma vida assombrada que pode ser acompanhada de sintomas pós-traumáticos tais como pensamentos assustadores e/ou pesadelos constantes; ansiedade frequente; dificuldade para dormir; ataques de raiva; sentimento de culpa; pensamentos negativos sobre si mesmo; evitamento de pensar ou falar sobre o ocorrido, entre outros.
Também costumam estar associados ao abuso do consumo de álcool e drogas, como tentativa de auto-cura e mesmo comportamentos anti-sociais com actos de auto-agressão”.
Para minimizar a situação, o psicólogo convida os profissionais de vários campos de saber, quer científico quer tradicional, a disponibilizar recursos para a saúde mental dos militares.
“Importa promover uma educação para a saúde mental na nossa sociedade. Nosso trabalho, após a assinatura dos acordos de Roma, em 1992, mostrou que nas nossas comunidades há muitos recursos disponíveis, não só ao nível dos serviços de saúde mental, e hoje temos muitos mais psicólogos e psiquiatras do que em 1992, que importa mobilizar para estes desafios. Temos também, a nível da medicina tradicional, um conhecimento e saber milenar, que integra rituais de cura, rituais de purificação, que podem e devem ser mobilizados. Também os líderes religiosos são convidados a colaborar”, disse.
Para finalizar, destaca que a ausência de acompanhamento psicológico dos militares “constitui uma nova traumatização, ou seja uma retraumatizição. Eles merecem todo nosso apoio, respeito e admiração. A sua dor e mal-estar psíquicos devem ser compartilhados por todos nós”, rematou.
Por sua vez, o psicólogo Cremildo Chichongue lembra que boa parte dos militares são jovens, alguns dos quais acabam de sair da sua adolescência. Por conta disso, estão, segundo ele, numa situação de vulnerabilidade emocional uma vez que estão num processo de construção da sua estrutura, personalidade, resiliência, etc.
“A capacidade que eles têm para lidar com frustrações é diferente de um adulto”, conta o psicólogo, lembrando que “a psicologia surge num contexto de guerra, primeira e segunda guerra mundial porque muitos soldados após a guerra perdiam seus membros (superiores e inferiores), outros assistiam mortes dos seus colegas nas trincheiras. Isso fazia com que os soldados tivessem dificuldades de lidar com esses eventos extremos. Começou a crescer cada vez mais a onda dos psicólogos clínicos para atender os militares que tinham presenciado momentos de guerra”, contextualizou.
Segundo ele, eventos como o de Cabo Delgado podem causar outras doenças um pouco mais incapacitantes como doença micose, alucinações, delírios, dificuldades para dormir, entre outros, uma vez que a situação de guerra gera automaticamente a despersonalização cognitiva, fazendo com que o militar saia de um mundo real para irreal”.
“É inevitável que esses soldados possam experimentar problemas sérios de saúde mental como transtornos de stresse pós-traumático porque presenciar guerras, mortes constantes e decapitações, directa e indirectamente gera obviamente traumas. É importante o exército ter programas de Saúde Mental e de Bem-Estar para os militares devido ao risco de que se reveste sua missão. Importa haver um bom programa de identificação prévia de factores de risco que soldados possam ter. Os estudos com os soldados dos Estados Unidos, mostram-nos, porém, que mesmo na ausência de factores de risco psicológico, a exposição dos soldados a acções de combate e mesmo acções militares indirectas, sem exposição directa a combates podem ser traumatizantes, desencadeando o Síndroma de Estresse Pós-traumatico”, defende.
Chichongue entende que quem vivenciou uma guerra perde algumas sensibilidades e desenvolve outras porque a guerra o “venceu” psicologicamente.
“As vezes esses militares devem fazer ´estratégia de coping´ para lidar com essa tensão interior. Caso não, eles vão consumir drogas, substâncias psico-activas, o que dificulta mais uma vez a sua saúde mental como também a convivência saudável no contexto familiar e social. Se não haver programa que lida directamente com a saúde mental corremos o risco de ganhar a guerra e perder militares psicologicamente”, argumentou.
Ministério da Defesa se fecha em copas
Aquando da realização da presente reportagem, o Jornal Evidências tentou inúmeras vezes entrar em contacto com Ministério da Defesa, através dos seus Departamento de Comunicação e Imagem, para comentar sobre o assunto, mas preferiu não se pronunciar até ao momento da publicação.
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