Crianças trocam carteira pelo trabalho nas Cidades de Maputo e Matola

DESTAQUE SOCIEDADE
  • Quando o futuro é trocado pelo pão na mesa
  • Menores aliciados com promessas de melhores condições e seguir com estudos na cidade
  • “Quando cheguei aqui, ao invés de ir à escola, disseram que tenho que vender pipocas”
  • Pobreza contribuiu para o aumento de crianças no trabalho infantil em Maputo
  • ONG defende existência de agentes fiscalizadores para travar trabalho infantil

Dados estatísticos apontam que, em Moçambique, mais de quatro milhões de crianças estão envolvidas no trabalho infantil. O elevado índice das taxas deve-se a vários factores, e dentre os mais sonantes destacam-se a pobreza e vulnerabilidade social. O primeiro é apontado como uma das principais causas do trabalho infantil, pois em famílias em que a situação económica é precária, muitas vezes, as crianças são forçadas a trabalhar para ajudar com as despesas. As crianças e adolescentes envolvidas nestes tipos de actividades nas cidades de Maputo e Matola são provenientes de vários pontos de Moçambique, desde a zona sul, centro até norte. Alguns são explorados em troca de um prato de comida, sendo que quando saem das suas zonas de origem carregam sonhos de se formar para mudar as histórias das suas famílias. Para acabar com o trabalho infantil nas principais cidades do país, a Rede Contra Exploração de Crianças quer fiscalizadores para reduzir elevados índices de trabalho infantil no país.

Elísio Nuvunga

De acordo com dados do Ministério de Género, Criança e Acção Social, entre 2022 e 2023, subiu de 4000 para mais de 4500 o número de crianças envolvidas no trabalho infantil na Cidade de Maputo.

Júnior Cardoso faz parte do rol das crianças envolvidas no trabalho infantil na capital moçambicana. Cardoso, actualmente com 16 anos de idade, saiu de Gaza com uma mala cheia de promessas, mas, debalde, quando chegou à Maputo foi privado do direito à educação.

Em conversa com o Evidências, o menino natural de Manjacaze não conseguiu segurar as lágrimas, uma vez que veio à Maputo com a esperança de um dia voltar para a sua terra natal para construir uma casa condigna para a mãe e os seis irmãos.

“Saí da minha verdadeira casa em 2021, quando minha mãe disse que meu tio gosta de mim e quer para eu viver com ele aqui em Maputo. Aceitei porque eu queria estudar. Lá em Manjacaze não ia escola porque não tinha dinheiro para comprar cadernos e uniforme. Meu tio disse que ia pagar para mim. Mas, quando cheguei aqui, ao invés de ir à escola, disseram que tenho que vender pipocas porque não conseguiram vaga. No primeiro ano acreditei, porém, no segundo percebi que estavam a mentir pra mim”, lamenta.

Volvidos três anos, Cardoso ainda não foi matriculado. Faça chuva, faça sol tem de ir vender em troca de um salário de três mil meticais, enquanto os seus primos vão à escola a custa do seu suor.

“Quando recebo mando dois mil meticais para a minha mãe, não é muito, mas ajuda nas despesas de casa e na educação dos meus irmãos”, contou Júnior Cardoso, que apesar dos traumas do presente ainda acredita num futuro risonho.

Quando crescer pretende se desvincular do tio e abrir seu próprio negócio, mesmo ciente das dificuldades que vai enfrentar nesta aventura.

“Infelizmente, já não posso ir à escola. Estou a juntar dinheiro para abrir o meu próprio negócio, sei que para fazer isso terei que sair da casa dos meus tios. Acredito que esta é a melhor decisão a tomar porque só assim terei capacidade para ajudar a minha mãe os meus irmãos. Já tenho clientes fixos e conheço todos os cantos da cidade. No dia que conseguir o dinheiro terei que seguir o meu caminho porque o meu actual patrão não vai permitir que tenha meu próprio negócio vivendo em casa dele. Tenho fé que vou conseguir porque conheço pessoas que abriram seus negócios e hoje são bem sucedidas, tanto em Maputo assim como em Gaza”, projecta esperançoso.

O trauma de quem saiu da Beira com uma mala cheia de sonhos

Wilson Martins, de 14 anos de idade, é outro adolescente que foi “arrancado” da sua terra natal com a esperança de melhores condições de vida e, sobretudo, para dar seguimento aos estudos, uma vez que os pais não tinham condições para o efeito. No entanto, quando chegou à Cidade de Maputo foi consumido pelo arrependimento porque engrossou às estatísticas do trabalho infantil.

“Estudei até 7ª classe e não tive vaga para fazer a 8ª classe na Cidade da Beira, concretamente no bairro de Maquinino. Depois da morte do meu pai, as coisas mudaram na minha família. A minha mãe não tinha condições para custear os meus estudos e, por isso, pediu a uma tia do terceiro grau para que viesse à Maputo. Fiquei deveras feliz quando falaram da possibilidade de viver em Maputo. Infelizmente, quando cheguei percebi que era tudo mentira. Hoje vendo pipocas em troca de dois mil e quinhentos meticais. Actualmente, tenho 14 anos de idade e ainda sonho em me formar em engenharia mecânica, mas a minha tia não me deixa ir à escola”, declarou amargurado.

Martins está na terra das oportunidades, Maputo, mas o desejo de regressar para sua terra natal lhe assalta a tranquilidade. Quer voltar à casa porque está cansado de ser explorado. Antes da sua partida da Beira à Maputo, a sua missão não era mais do que trabalhar e fazer dinheiro, apesar de a sua idade permitir ir à escola, para além de brincar e se divertir como as outras crianças. Acredita que se o progenitor estivesse vivo não estaria a viver este “pesadelo”.

“Se meu pai estivesse vivo estaria na escola, porque ele trabalhava e me dava dinheiro de chapa, pagava tudo para mim. Mas agora já não posso porque minha mãe não tem dinheiro. Quero continuar a estudar no próximo ano, mas minha tia (patroa) ainda não me deu resposta. Tenho amigos que vão à escola de noite”, relatou com uma lágrima no canto do olho.

Começou a trabalhar aos 10 anos e já nem pensa em voltar à escola

Por sua vez, Isaías, de 14 anos de idade, natural de Maputo e residente no bairro de “Matendene”, faz seus pequenos negócios no mercado grossista de Zimpeto. A sua entrada nas actividades deve-se à “irresponsabilidade” do pai, que foi para África do Sul e nunca mais voltou, ou seja, casou-se com outra mulher e nunca mais voltou, segundo conta o pequeno.

“Trabalho no Zimpeto desde 10 anos de idade. Comecei por vender gelinhos, agora vendo Chips (pipocas). Meu pai foi para África do sul quando eu era criança e nunca mais voltou. Dizem que tem outra esposa e filhos, quem disse é meu tio que trabalha na África do Sul também”, contou Isaias, para posteriormente referir que já não pensa em ir à escola porque pretende continuar a colocar o pão na mesa.

“Já não penso muito na escola, porque senão vamos morrer de fome. Tenho que ajudar minha mãe a pagar despesas. Vivemos numa casa que estamos a arrendar. Minha mãe vive de biscatos, lava roupa, cozinha quando tem festas e lhe dão dinheiro”, disse.

Comparativamente com os outros adolescentes que deambulam por várias cidades do país, Isaías é quem mais sofreu desde muito cedo. Aos 12 anos trabalhava numa quinta no bairro de “Boquisso”, Município da Matola. Sua tarefa era regar os canteiros de tomates, salada, couve e outros produtos agrícolas.

Trabalhou por um ano e desistiu, aliás, fugiu porque o trabalho era demasiado e o salário era magro, por isso abraçou, agora, o negócio de venda de chips e crédito. “Há muito tempo trabalhava lá em Boquisso, na quinta de um senhor, e recebia 1500. O trabalho era muito. Regava todos canteiros de tomates, cebola, cenoura, pepino, pimenta e outras coisas. Não descansava, regava todos os dias. Tinham muitos canteiros, por isso fugi”, relatou.

Agentes fiscalizadores seriam solução para mitigar o trabalho infantil

Para a Directora executiva da Rede Contra Exploração de Menores, Ana Cristina, é urgente a sensibilização dos pais sobre esse tipo de trabalho, destacando os principais riscos que este tipo de actividade representa.

“A primeira coisa que deve fazer é um trabalho com os pais e encarregados de educação, sensibilizando-os sobre os riscos que as crianças correm quando estão no mercado de trabalho. É claro que vão dizer que necessitam, mas é a vida e saúde das crianças que está em risco. O número de menores na via pública fazendo esse tipo de actividade aumentou cada vez mais, o que mostra que os pais e encarregados de educação perderam o controlo dos seus filhos”, disse Ana Cristina.

Prosseguindo, Cristina desafiou o Governo a promover agentes fiscalizadores nas principais cidades para mitigar a situação. “Penso que o Governo devia criar meios para mitigar o trabalho informal através de pessoas que possam fazer trabalho de fiscalização, apesar de não ser uma tarefa fácil. Apesar da lei que protege as crianças, os empregadores, até empresas renomadas, exploram as crianças, não respeitam o factor idade, capacidades que estas crianças têm para as actividades, portanto é urgente essa vigilância”, destacou.

A directora executiva da Rede Contra Exploração de Menores disse ainda que a situação da guerra em Cabo Delgado e Covid-19 podem ser apontadas como principais causas da exploração infantil, uma vez que a guerra tem a capacidade de gerar “fome” e a pobreza no geral, por isso os pais sentem-se pressionados a deixar os filhos a trabalharem mesmo quando crianças, o que parcialmente abre espaço para criminalidade e violações de menores.

“O tempo da Covid-19 e a guerra em Cabo Delgado são alguns exemplos que abriram espaço para elevados índices de exploração infantil. Nas zonas com mais conflitos, muitas crianças perderam seus pais muito cedo e como forma de sobreviver estão sujeitos a essas actividades, e por vezes correm riscos de violações sexuais, para além de físicas”, referiu.

“Fracassos e frustrações, seguidos de violência e castigos, vão resultar em traumas”

Por sua vez, a psicóloga Melina Cumbe defende que as crianças não reúnem competências suficientes para responder certas tarefas, daí que as mesmas serão prejudicadas no futuro, visto que no tempo que deveriam estar na escola estão a trabalhar.

“Em situações em que esta criança substitui a suas atividades principais, que é a escolarização e o brincar, pelo trabalho, será cobrado responsabilidades e deveres fora das suas capacidades cognitivas, o que resultará em trabalho mal sucedido, fracassos e frustrações, seguido de violência e castigos, que vão resultar em traumas que irá levar para toda vida”, explicou a especialista” alertou.

Melina Cumbe observa que o envolvimento das crianças em ambientes turbulentos e agressivos por conta do exercício abre espaços para comportamentos desviantes, para além de propiciar problemas psíquicas e violações, quer físicas tanto sexuais.

“Para além desta fase ser maior facilidade de assimilação de novas aprendizagem, considerando as condições ambientais dos lugares que são realizados estes trabalhos serem perigosos,  agressivos e que muitas das vezes exigem esforços físicos, para além das capacidades destas crianças, há maiores chances de seu desenvolvimento cognitivo, assim como a saúde mental destas crianças ser influenciada negativamente por estes ambientes, na tentativa de se adaptarem e responderem as exigências contextuais, o que resultará em adultos com comportamentos socialmente não aceites, com risco de desenvolverem alguns distúrbios de personalidade, assim como doenças psíquicas, para além de comprometer sua integridade física, como agressões, raptos, violações sexual e gravidezes precoces”, concluiu.

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