- Severino Ngoenha diz que é preciso parar com o fogo antes que seja tarde
- Para o filósofo as manifestações transcendem as eleições e reflectem uma crise mais ampla
- “As mudanças são necessárias, elas têm que ser profundas, estruturais e não resvalar em compromissos de partidos, de indivíduos ou de grupos”
O académico Severino Ngoenha propõe o abandono do discurso de acusação sobre os culpados pela crise pós-eleitoral e diz que é preciso, antes de tudo, salvar o que é possível, no caso, a paz e a integridade do país. Aliás, compreende o filósofo, “a urgência de uma solução concordada, antes da proclamação de resultados, é maior e mais urgente (…), ela é a condição para evitar um conflito ainda maior, nem que para isso tenhamos que subverter as ordens jurídicas e constitucionais, sobre o altar da paz e da integridade do país”, afirmou debruçando-se sobre as possíveis saídas da crise pós-eleitoral, consequência do que até aqui é considerada a maior fraude. Num contexto de um vazio total quanto às soluções, enquanto as partes envolvidas mostram-se incapazes de se sentar à mesa do diálogo, Ngoenha observa que as causas são profundas e que a solução cabal não virá dos resultados do Conselho Constitucional, que podem agudizar ainda mais a crise. Do resto, reitera que a questão urgente é como “desactivar a bomba; evitar/parar a guerra e buscar, com seriedade, soluções para a crise do contrato social que nos apoquenta como sociedade”.
Duarte Sitoe
No entender de Severino Ngoenha, o caos em que o país se encontra mergulhado parece ter a sua génese no último no atabalhoado processo eleitoral. No entanto, adverte que a realidade das demonstrações mostra que os problemas em causa transcendem as eleições e reflectem uma crise mais ampla que questionam as estruturas profundas do contacto social que o Estado vem descumprindo nos últimos anos.
O conceituado académico aponta que as manifestações desvelam um sentimento de desconfiança e descontentamento em relação às instituições eleitorais, mas os slogans que emergem nas estradas, mercados, escolas, hospitais (…) revelam algo ainda mais profundo.
“No actual status situations, mesmo que os resultados das eleições fossem anunciados pelo Papa, pelo Secretário geral das Nações Unidas ou por Trump – e depois de uma auditoria forense – encoraríamos, na mesma, a um conflito civil com proporções imprevisíveis e perigosas para a estabilidade e integridade do país. A proclamação dos resultados das eleições é um rastilho de uma bomba (político-social) já armadilhada e pronta a explodir. A questão urgente é como desactivar a bomba; evitar/parar a guerra e buscar com seriedade, soluções à crise do contrato social que nos apoquenta como sociedade”, escreveu Ngoenha, num texto na sua página do Facebook.
Para o filósofo, o rebentar da bomba nos expõe a riscos alarmantes de violência e anarquia com os quais nenhum país pode viver, com cada um a fazer a lei como quer.
“A haitização do país – em parte já em curso –, em que gangues fazem leis nos bairros, povoações e distritos; a congolização, em que países estrangeiros intervêm militarmente no país; a libianização/iraquização (também já em curso) em que nos enveredamos em conflitos internos, enquanto terceiros saqueiam (Cabo Delgado) os recursos ou, pior, a somalização (com os seus doze milhões de deslocados) que consiste na divisão do país”, defende.
Olhando para o actual cenário, o conceituado acadêmico defende que mudanças são necessárias e acredita que apenas um Governo pode mobilizar todos moçambicanos para um processo de desenvolvimento.
“As mudanças são necessárias, elas têm que ser profundas, estruturais, e não resvalar em compromissos de partidos, de indivíduos ou de grupos. Tem de ser mudanças que permitam um novo começo, uma nova politeia (política), que integre os interesses de todo o povo de Moçambique”, observa num contexto em que apenas os partidos políticos reivindicam para si o exclusivo direito de representar.
“A prioridade não é saber quem é o incendiário, mas sim apagar o fogo”
Compreendendo a necessidade urgente de se reestabelecer a estabilidade, Ngoenha faz uma analogia com os bombeiros que quando chegam numa casa em chamas, a prioridade não é saber quem é o pirómano (incendiário), não é saber se o incêndio foi propositado ou foi acidental; o mais importante é apagar o fogo.
A primeira das coisas a fazer, conclui o acadêmico, é salvar o que é salvável de uma casa em chamas e arder. E, depois disso, pode se encontrar maneiras para tentar reconstruir a casa, para que ela seja habitável, buscando a justiça.
“Então, não se trata aqui de tentar incriminar pessoas, encontrar responsáveis, encontrar culpados, saber quem tem que pagar por isto ou por aquilo. A primeira e a mais importante coisa a fazer é apagar o fogo”, defende.
Severino Ngoenha refere ainda que que as mudanças são necessárias, mas que elas têm que ser profundas, estruturais, e não resvalar em compromissos de partidos, de indivíduos ou de grupos.
“O momento exige urgência. Moçambique enfrenta um incêndio político e social que precisa ser contido antes que consuma completamente o tecido nacional. Assim como os bombeiros dão prioridade a salvar vidas e apagar o fogo antes de buscar culpados, também devemos nos focar em estabilizar o país, antes de nos perdermos em acusações ou disputas recíprocas. A urgência de uma solução concordada, antes da proclamação de resultados, é maior e mais urgente do pode nos ensinar qualquer dicionário, enciclopédia ou gramatologia sobre o significado do termo urgência, ela é a condição para evitar um conflito ainda maior, nem que para isso tenhamos que subverter as ordens jurídicas e constitucionais, sobre o altar da paz e da integridade do país”, entende, destacando que a situação exige que se abandonem as soluções antiquadas e se enfrentem os desafios actuais com inovação, compaixão e compromisso para com o futuro.