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A Saga do conteúdo local_1

Felisberto S. Botão

Na sequência de um debate televisivo que participei numa televisão local no dia 20 de Junho de 2022, e no calor das festividades da Independência Nacional, no dia 25/06/2022, não resisti a uma reflexão que quero partilhar com todo o moçambicano que puder ter acesso.

Nós passamos por três processos históricos importantes, que definem aquilo que somos hoje, e a nossa estrutura comportamental e de pensamento. Tivemos aqui um sistema de escravatura, conduzido pelo homem branco, que terminou no final do século XIX, tivemos de seguida a colonização conduzida por ele, que durou quase um século, até os anos 60 do seculo XX, e hoje temos o neocolonialismo, também imposto pelo homem branco, que já vai a caminho de um século, e perdura como o sistema vigente.

No primeiro caso, era subjugação total, e nós éramos mercadoria e instrumento de trabalho, para extração da nossa própria riqueza, roubada, e entregar para o homem branco, e em muitos casos, eramos levados juntos para ir transformar estas riquezas, e construir para ele lá na terra dele.

Quando o homem branco entrou no progressismo, achou que a narrativa esclavagista já não encaixava, e forçou a mudança do sistema, para o colonial, onde ganhamos um certo grau de liberdade, mas éramos excluídos dos benefícios, da participação, e principalmente, da mistura social. O nosso lugar estava bem claro, apesar de alguns dos nossos serem assimilados, para serem usados como arma contra seus próprios irmãos.

O roubo de recursos e a subjugação continuaram de forma explícita.

Quando começou a ser democrata, a narrativa do colonialismo já não caia muito bem, e mudou para o sistema neocolonial, onde nós ganhamos mais alguma liberdade, e até o poder administrativo das nossas terras.

O roubo de recursos e a subjugação continuam, mas agora de forma implícita, disfarçada.

Note-se que em nenhum dos casos nós conquistamos a mudança, eles concederam-nos, para responder às mudanças nas suas próprias sociedades. Aí o facto de esta reflexão ter-me inundado a mente ao ouvir os vários discursos de “conquista da independência”.

O que chamamos de “independência”, para o homem branco significa “neocolonialismo”. Os acordos que eles ofereceram-nos, para a continuação da colonização de uma forma mais sofisticada, passando os custos administrativos da terra para nós próprios, coloca-nos exactamente onde eles queriam que estivéssemos, quando todo este processo de transição iniciou com as negociações de acordos das independências.

Para funcionar, a mudança deve envolver dor, por isso o homem branco arrastou-nos para uma guerra de independência, para no fim, com a exaustão dos nossos combatentes, colocarem um acordo na mesa que não pensaríamos duas vezes para assinar. Nascia assim o neocolonialismo, que nós próprios chancelamos com a assinatura dos nossos melhores filhos daquela altura.

O neocolonialismo promove a nossa inclusão, a nossa participação, e principalmente, a mistura social. Oficialmente já não há racismo, e nós temos todos os direitos. Falar de racismo tornou-se um tabu, e um desconforto entre nós os negros.

Só que acontece que esta promoção da igualdade e inclusão é feita com base em ferramentas e regras que nos colocam na condição de nos autoexcluir, e nós concordamos em operar com base nelas, para pertencer ao teatro das nações. Ferramentas como as taxas de juro, os impostos, critérios da dívida externa, o mercado livre, direitos humanos, normas internacionais (técnicas, políticas, financeiras, comerciais, ambientais, migratórias, entre outras), etc., existem como são, para entreter-nos e assegurar que nós não alcancemos o “ritmo de jogo” de quem já estava no campo, o homem branco.

Nós ficamos com a falsa sensação de inclusão, mas nunca nos sentimos preparados para fazer parte, pois as regras são actualizadas constantemente, sem a nossa participação efectiva, e informam-nos quando os outros já estão a jogar. O jogo vai decorrendo, e nós a preparar-nos para “apanhar” as regras do jogo, sentindo-nos estúpidos, e a culpar-nos uns aos outros por não estarmos a aprender rápido o suficiente, sem questionarmos as regras do jogo.

Me lembro do presidente Filipe Nyusi a intervir numa conferencia de Oil & Gas com empresários moçambicanos, e disse “vocês têm que ser competitivos, e procurar ser melhores que as empresas de fora”, para que ganhássemos os contratos. A primeira coisa que me veio à cabeça é que o meu presidente precisava de ajuda sobre a significância do conteúdo local na soberania nacional.

O facto é que o sistema está desenhado para ser assim, e no virar do século de vigência da neocolonização, quando as vozes já forem muitas a reclamar, e nós quase a apanharmos as regras, o jogo vai mudar, e regras serão totalmente novas. E mais uma vez, por via da força, seremos coagidos a acordos, que superficialmente parecerão mais algum ganho. E nós vamos assinar.

Os dias que correm mostram este padrão, pois as vozes são muitas de africanos que estão a perceber a manipulação que aconteceu com a religião, com as independências, e agora com os líderes marionetes que temos a frente dos nossos estados. Se não nos apressarmos a controlar o processo, os brancos vão infringir-nos algum tipo de dor intensa, e depois vão levar-nos a mesa para assinar acordos com os termos que eles já terão preparado, que irão assegurar a continuidade da nossa subjugação, num formato diferente.

A escravatura e a colonização explícita dificilmente terão apoio popular na terra do homem branco, portanto a sua volta é um risco quase nulo, a neocolonização está a ficar muito exposta, que até as TVs de países fora do sistema, como a Índia, Rússia, Turquia, começam a discutir abertamente sobre o problema, mas o roubo de nossos recursos é uma necessidade para os brancos. A Todos os nossos parceiros multilaterais, que vem daquelas terras do ocidente, sabem bem das regras do roubo e extorsão: embaixadas, ONGs, multinacionais, bancos comerciais, consultores, e outros, sabem como tratar-nos, o que dizer-nos, e onde colocar-nos.

O conteúdo local vai contra os princípios do neocolonialismo. É um grande problema para o homem branco, mas que não o pode admitir de forma explícita, pois não encaixa na narrativa actual dele, de democracia e liberdades.

O nosso desafio maior neste momento, como locais, é a ACEITAÇÃO.

Quando nós tomarmos ciência dos contornos do neocolonialismo, e aceitarmos que este é o sistema vigente, que estamos numa competição de interesses, que vai muito além das estratégias comerciais, vamos entender a actuação das multinacionais, e os nossos dirigentes vão sair desta indecisão sobre o que é certo e o que é errado com esta coisa de Conteúdo Local, que devia ser óbvia.

Encontrei uma passagem num texto da Trinidade e Tobaco, com relação a esta matéria, que diz, “a abordagem tradicional de dar preferência a fornecedores locais “se” o custo, qualidade e pontualidade na entrega de seus bens e/ou serviços forem iguais em qualidade, ao concorrente internacional, não nos ajudou a construir capacidade local, pois somente aqueles que já são globalmente competitivos terão sucesso. Não há oportunidade de se tornar competitivo se o operador local não lhe for dado a chance de fazer, aprender e melhorar. Por esta razão desenvolvimento de capacidade local será uma parte importante da estratégia de implementação do Conteúdo Local”.

O “concorrente internacional” é inevitavelmente um integrante dos “clusters” do homem branco, que já tem acesso as regras do jogo com antecedência suficiente para se preparar, que aqui na nossa terra ganham o nome de “empresa registada em Moçambique”.

Atribuição de contratos para locais não é uma questão de mercado aberto ou capacidade, é uma questão de protecção do interesse nacional. Esta é a verdadeira soberania.

O conteúdo local deve começar pela consciência colectiva do que é bom para nós colectivamente: o nosso recurso é o nosso activo, e deve beneficiar primariamente a nós, antes de qualquer outro. Daí entender que o investidor está à procura de oportunidade para o seu dinheiro, e nós é que estamos a dar esta oportunidade. O investidor não é o dono do negócio, e muito menos do recurso.  Ele é o parceiro privado, com a prerrogativa de operar o negócio pelo know-how que traz consigo.

Para o investidor ganhar a oportunidade, e exercer a prerrogativa de operar o negócio por 10, 20 ou 30 anos, deve necessariamente observar uma condição essencial e primária: colocar as oportunidades de negócio na mesa, não menos do que 40% do investimento, que devem ser alocadas às empresas locais, de moçambicanos, junto a um processo claro de transferência de know-how, durante o período de vigência da exploração do recurso. Tudo o resto deve vir a seguir.

O foco deve mudar da construção de capacidade, para a selecção e disponibilização de oportunidades. A capacidade deve ser construída durante a execução dos contratos, com o acompanhamento do investidor, que deve necessariamente construir uma estrutura de assistência as PMEs, na observância de normas de qualidade, segurança e ambiente.

O seu comentário e contribuição serão bem-vindos. Obrigado pelo seu suporte ao movimento SER ESPIRITUAL  https://web.facebook.com/serespiritual.mz/

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