Site icon Evidencias

Estranho casamento entre Frelimo e Renamo

Alexandre Chiure

Ficou claro, na recente sessão da Assembleia da República que marcou o fim da presente legislatura, que Moçambique ainda não tem um parlamento propriamente dito. Um órgão forte que debate ideias e que se faz respeitar na sociedade, como um todo, e perante os poderes judicial e executivo pela qualidade do seu trabalho, das abordagens que faz e das decisões que toma para o consumo público.

Um parlamento, senhor de si mesmo, que legisla com a finalidade de resolver as preocupações das populações. Um parlamento cujos deputados representam, efectivamente, os interesses do povo moçambicano e não indivíduos que estão atrás da imunidade parlamentar para fazer e desfazer a seu bel-prazer sem que nada lhes aconteça. Isto para além da busca de influências políticas e de negócios no Estado para as suas próprias empresas.

Esse tipo de parlamento infelizmente ainda está no imaginário. O que temos é uma Assembleia da República que satisfaz as vontades e os apetites políticos do governo ou da pessoa de Presidente da República. Um parlamento que não sabe se impor e que, no fim do dia, toma decisões para agradar o Chefe de Estado, em detrimento dos interesses da maioria dos moçambicanos.

Pelo menos é o que pude constatar em relação ao pacote eleitoral devolvido a 30 de Maio à AR pelo PR. Documento que foi aprovado em plenária a 30 de Abril, por unanimidade, depois de discussões feitas num retiro, envolvendo as bancadas da Frelimo, Renamo e MDM e sanadas todas as questões de natureza legal.

Num parlamento sério e que sabe o que se deve fazer, não devia, sequer, ter se dado ao trabalho de reexaminar as leis em causa, nomeadamente a 2 e 3/2019, de 31 de Maio. Sendo que já havia consensos em relação à matéria e sem mexer com nada, devia, isso sim, ter accionado o artigo 163 da Constituição da República, no seu número quatro, que obriga ao PR a promulgar e mandar publicar as leis se forem aprovadas por uma maioria de dois terços.

Infelizmente não foi o que aconteceu. Num casamento estranho e perigoso, a Renamo votou com a Frelimo na legitimação da decisão que retira os poderes dos tribunais judiciais de distrito de mandar fazer recontagem dos votos, em caso de contencioso eleitoral, e atribui essa competência, em exclusivo, ao Conselho Constitucional.

Ficou estranho, na hora da votação, porque a Renamo nunca viu, com bons olhos, a intenção do PR ao mandar devolver o pacote eleitoral. Segundo Arnaldo Chalaua, porta-voz da bancada, não havia nenhuma inconstitucionalidade que pudesse impedir a promulgação da legislação.

Chegou a dizer que o reexame era ilegal e desnecessário. Com este posicionamento, o normal era que o maior partido da oposição tivesse votado contra, mas foi ao contrário. Apoio a decisão, para o meu espanto.

Aliás, ao reexaminar a legislação em causa, a Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e de Legalidade da AR não encontrou nada de inconstitucionalidade que tivesse escapado do exercício inicial, matéria fiscalizada pelo PR.

Para começar, o PR violou a CR no seu artigo 163, número três, que o obriga a fundamentar o seu veto. Ele devolveu o pacote eleitoral sem quaisquer argumentos, alegando simplesmente a existência de incongruências que não as nomeou. O parlamento deixou passar este caso de desrespeito à lei-mãe.

Ficou estranho que uma bancada como da Renamo, cujo partido viu seus recursos relativos às eleições autárquicas de 2023, a reivindicar a vitória em Maputo e Matola, a serem anulados pelo CC, depois de julgados procedentes por alguns tribunais judiciais de distrito, por um lado, para a recontagem dos votos e por outro, para a repetição da votação, tenha votado do jeito que votou. Já esqueceu-se de tudo que aconteceu ao aceitar, de mãos beijadas, que estes órgãos judiciais não tenham poderes para dirimir conflitos eleitorais nas eleições de 9 de Outubro próximo.

Na prática, com a aprovação do polémico pacote eleitoral pela Frelimo e a Renamo, com votos contra do Movimento Democrático de Moçambique, o parlamento afasta a possibilidade de existência da primeira instância de recurso e toda a responsabilidade de resolução de conflitos eleitorais recai exclusivamente sobre o CC.

Quer dizer, igualmente, que os juízes dos tribunais judiciais de distrito, estes que são órgãos de soberania, ficam reduzidos a caixas de correio em que recebem os expedientes sobre contenciosos eleitorais, produzem provas e mandam ao CC para a decisão, ignorando o papel destes tribunais que se traduz na apreciação dos factos, interpretação e aplicação da lei, o que, no mínimo, é inadmissível.

Surpreendente foi o facto de a Renamo ter dito, publicamente, que votou a favor da proposta, apesar de não concordar com ela só para evitar o confronto com o Chefe de Estado. O que é que isso significa? Que confronto é esse? Será que a bancada terá recebido ordens da direcção do seu partido de modo a proceder da forma como o fez em satisfação de algum acordo oculto entre a Frelimo e a Renamo alcançado entre as lideranças fora do parlamento?

Os juízes é que não estão dispostos a vergarem. Em reacção à decisão da AR de aprovar um pacote eleitoral que limita os poderes dos tribunais judiciais de distrito, a sua associação veio a público fazer uma declaração de independência e imparcialidade pouco vulgar. Gostei de ouvir que na tramitação de eventuais contenciosos eleitorais em Outubro, não irão observar a lei eleitoral, mas a Constituição da República e não trabalham com base em orientações, recados ou vinganças. Isso é que os meus ouvidos e de todos os moçambicanos gostam de ouvir. Deviam ter feito isso já há muito tempo para a transparência de processos eleitorais moçambicanos e a verdade eleitoral.

Concordo plenamente com os juízes quando dizem que o contencioso eleitoral é um processo judicial, apesar de regular a vida política do país, e tem a sua forma de tramitação. Também assino por baixo a narrativa de que o pacote eleitoral assim como está denuncia o envolvimento político nos processos judiciais.

Com este novo posicionamento dos magistrados judiciais, está claro que o parlamento cimentou os conflitos entre o Tribunal Supremo, que superentende os tribunais judiciais de distrito, e o CC. Quem planta confusão, colhe confusão. Quem planta a guerra, colhe a guerra. É o que podemos esperar das eleições de 9 de Outubro, com órgãos eleitorais sem credibilidade e confiança perante o público.

Exit mobile version