Alexandre Chiure
Numa conversa informal sobre o país, eu disse a um destacado dirigente que as futuras gerações em Gaza iriam questionar porque é que votam na Frelimo e não num outro partido político para governar Moçambique, se na sua província não acontece nada como fruto dessa aposta política.
A minha profecia baseava-se no facto de que dada a fidelidade e confiança das populações gazenses na Frelimo, a oposição não conseguia eleger um único deputado para o parlamento desde as primeiras eleições multipartidárias, em 1994, segundo dados oficiais.
Argumentei dizendo que apesar dessa sua fidelidade, resistindo à tentação de experimentar outros sabores políticos, algo que, de alguma forma, devia merecer premiação, Gaza é aquela província sempre pobre, sem investimentos de vulto com o impacto social e económico no seio das populações.
Não passou muito tempo depois que conversámos. Foram, apenas, pouco mais de dez anos. O que eu disse já está a acontecer. O Podemos, carregado nas costas por Venâncio Mondlane, quebrou a hegemonia da Frelimo naquela província ao eleger, a 9 de Outubro de 2024, pela primeira vez, dois deputados na província, um marco histórico.
O questionamento começou mais cedo do que eu esperava. Pensei que não pudesse, em vida, testemunhar essa fase, mas é o que todos nós estamos a acompanhar: Gaza já não é o mesmo. Quem diria que pudesse se transformar num epicentro das manifestações? Quem podia imaginar que um dia alguém poderia correr risco de vida por usar uma camiseta da Frelimo na província?
Os sinais de que há uma mudança de paradigma na esfera política daquela região do país foram, sempre, visíveis. Só não as leu quem não quis ou por desprezo ou por excesso de confiança de que nada poderia acontecer com a Frelimo, o que fez com que alguns dirigentes ficassem cegos ou pura e simplesmente por arrogância.
A “invasão” dos opositores ao bastião do partido no poder iniciou em 2013 aquando das autárquicas, o MDM elegeu membros das assembleias municipais (AMs) em cinco dos seis municípios possíveis (hoje são sete), sendo oito em Xai-Xai, dois em Chókwè, um no Bilene e igual número em Manjacaze e Chibuto.
Em 2018, o mesmo partido conquistou assentos em seis autarquias e a Renamo, em cinco. Desde as eleições de 2023, o MDM integra as AMs em cinco municípios, e a Renamo em quatro. Para o cúmulo da questão, o Podemos “roubou” da Frelimo os preciosos dois assentos para a AR em Gaza.
Algumas figuras de nomenclatura política ligadas ao partido no poder acomodam-se no discurso de que as manifestações que têm estado a ocorrer um pouco por toda a província não passam de terrorismo. É uma forma de ver com a qual não concordo.
Aliás, o Presidente da República, Daniel Chapo, surpreendeu-nos com a declaração polémica de guerra contra as manifestações no país. Disse que elas devem ser combatidas, nem que isso signifique ter de jorrar sangue, o que é muito grave, sobretudo dito por ele, de quem se esperava um discurso reconciliatório.
Ele colocou as manifestações no mesmo saco que o terrorismo, raptos e naparamas. Consciente ou inconscientemente, abriu campo para que as FDS matem à vontade, cidadãos que se manifestam, um direito que lhes assiste. Fez ressuscitar a pena de morte banido há mais de 30 anos.
Chapo queixou-se, mais tarde, de que o seu discurso foi manipulado e que a ser verdade, o autor seria a televisão pública porque foi ela que teve o privilégio de gravar e difundiu o discurso, feito num comício em Pemba, o que é pouco provável. Diz que se referia a manifestações violentas, desculpas que, mesmo assim, não lhe ilibem do pecado.
A justificativa do presidente levanta um outro pormenor. A legalidade ou não de uma manifestação. A pergunta que não quer calar é qual das manifestações o governo considera legal desde que elas começaram a 21 de Outubro de 2024? Duvido que haja uma única.. É que mesmo as ditas pacíficas foram sendo reprimidas pela polícia, com tiros para matar a qualquer um.
Por isso, tem que haver humildade da parte de dirigentes da Frelimo em reconhecer que Gaza e o próprio país já não são os mesmos. Considerar as revoltas populares, quer em Gaza, quer noutros cantos do território nacional, de terrorismo, é negar a nova realidade do país. Que o moçambicano de ontem é diferente do de hoje. As manifestações continuarão por muito tempo, pois há vários motivos para tal. O país está cheio de problemas derivados de promessas eleitorais não cumpridas e de sucessivos erros de governação.
A geração de Android, que vai desde 2000 a esta parte, não compra o discurso da luta armada de libertação nacional, nem dos 16 anos entre o exército governamental e a guerrilha da Renamo. É muito exigente. Não tem medo de arma, nem da morte. Não quer ouvir desculpas. Quer, isso sim, resultados imediatos.
São esses jovens, que partem dos 18 aos 25 anos, acompanhados de adultos, que querem saber porque é que até hoje o Fundo de Fomento de Habitação, por exemplo, não cumpriu a sua promessa, assumida em 2015, de mandar instalar energia eléctrica para algumas comunidades em Chongoene, depois de estas cederem espaço para a construção de 500 casas.
É terrorismo quando as populações, em Chibuto, manifestam-se exigindo dos chineses que exploram as areias pesadas, os mesmos que estão a construir o porto de águas profundas em Chongoene, que honrem com os seus compromissos de canalizar água e energia, oferecer um hospital e fazer estradas em benefício das comunidades locais? Claro que não, estão dentro da sua razão. Fazer obras de responsabilidade social não é um favor, mas uma obrigação de qualquer investidor.
Não vejo como problema que Gaza se levante contra o custo de vida no país. Todo o moçambicano está a sentir isso na pele. Os produtos de primeira necessidade são caros porque recaem sobre algumas taxas sem sentido. O açúcar, o sabão e o óleo estão isentos do IVA até Dezembro. Faltam outros. Não se explica, por exemplo, que o Malawi, um país do interior, que importa através do porto de Nacala, esteja a vender combustíveis a baixo preço em comparação com Moçambique. Significa que alguma coisa não está bem entre nós.

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