Share this
Arão Valoi
Apesar da existência de um mecanismo formal de coordenação entre o Estado e o Sector Privado nacional, a relação entre ambos, na última década, degenerou para uma simbiose disfuncional. Essa convivência foi marcada por promessas não cumpridas, corrupção endémica e uma burocracia dolosa que, em vez de promover o progresso nacional, fomentava o desespero económico. Para o empresariado nacional, servir ao Estado tornara-se, com frequência, um caminho para a ruína: a promessa de contratos públicos transformava-se numa armadilha de expectativas frustradas e dívidas impagáveis.
Nesse ambiente pantanoso, proliferaram intermediários inescrupulosos, comissões ilegítimas e um Estado que, em vez de impulsionar o tecido produtivo, o estrangulava. A inércia estatal, longe de ser mera falha administrativa, tornou-se um atentado à sobrevivência do sector produtivo nacional. Empresas que deveriam ser motores de emprego, arrecadação fiscal e inovação foram desmanteladas, vendidas a retalho ou até absorvidas por conglomerados estrangeiros alheios ao desenvolvimento local.
É nesse cenário que surge a figura do recém-eleito Presidente da República, Daniel Chapo, que parece disposto a romper com essa tradição perversa. Num gesto que vai além do simbolismo político, inicia um movimento de resgate ético da função pública. Durante a visita recente ao Ministério das Finanças, ordenou o pagamento das dívidas acumuladas com o sector privado — das quais mais de dez mil milhões de meticais já foram liquidadas, restando pouco mais de seis mil milhões. Com esse acto, o Chefe de Estado não apenas cumpre um dever legal, mas também reinaugura um pacto de confiança entre o Estado e os cidadãos empreendedores.
Trata-se, antes de tudo, de um gesto de justiça económica, mas também de moralização da vida pública. Não é possível construir uma economia vibrante e sustentável sem restaurar a dignidade daqueles que ousam empreender num ambiente hostil, marcado por incertezas políticas, jurídicas, instabilidade institucional e uma cultura de impunidade cronicamente instalada. A história recente de Moçambique está repleta de casos trágicos de empresas que, ao fornecerem bens e serviços ao Estado, aproximaram-se da insolvência não por falhas próprias, mas devido a calotes originados por manobras dolosas na própria Administração Pública.
Processos deliberadamente travados, documentos “extraviados” e pagamentos condicionados a propinas compõem o retrato sombrio de um sistema corroído pela corrupção. Mais grave ainda é o dano estrutural infligido à economia nacional: ao sufocar o sector privado, o Estado elimina a concorrência saudável, incentiva o êxodo de capitais e desestimula o investimento — interno e externo. Legitima-se, assim, a figura do “facilitador” ou “nhonguista”, aquele agente obscuro que prospera nas sombras, cobrando comissões para “desbloquear” o que deveria fluir naturalmente.
A iniciativa do Presidente Chapo deve ser interpretada como o prenúncio de um novo ethos político no horizonte moçambicano. Ao determinar o pagamento sistemático das dívidas e ao comprometer-se com a prevenção de novos atrasos, rompe-se com a lógica da postergação permanente. A palavra do Estado volta a ter valor — e isso, por si só, representa uma revolução silenciosa.
Contudo, por mais louvável que seja, o gesto presidencial corre o risco de se tornar efémero se não for acompanhado de reformas profundas no aparelho do Estado — especialmente no Ministério das Finanças e na Autoridade Tributária, onde práticas clientelistas se enraizaram. O problema não está apenas na dívida acumulada, mas na lógica institucional que permite e perpetua esse ciclo. Processos opacos, ausência de auditorias independentes e falta de responsabilização penal por actos de corrupção são sintomas de uma patologia institucional que exige tratamento urgente.
É imperativo que a política de pagamentos venha acompanhada por uma verdadeira purgação ética na máquina administrativa. Servidores públicos que se comportam como usurpadores do bem comum devem ser identificados, processados e, quando necessário, exemplarmente punidos. A reforma do Estado precisa deixar de ser um enunciado genérico e transformar-se em acções concretas e verificáveis. É preciso reconhecer que o sector privado é o verdadeiro pulmão da economia moçambicana — criador de empregos, pagador de impostos e distribuidor de bens e serviços em todo o território nacional. Negligenciá-lo é comprometer a própria sustentabilidade do Estado.
Entretanto, cabe também ao empresariado nacional rever as suas práticas. A promiscuidade que historicamente se instalou entre empresários e servidores públicos não pode mais ser tolerada. A corrupção, por definição, é uma via de mão dupla: se há corruptos, é porque há corruptores. O novo pacto ético proposto pelo Presidente só terá êxito se encontrar ressonância entre os empresários, os quais devem comprometer-se com a legalidade, com a transparência e com o mérito técnico em todas as suas relações com o Estado.
Além disso, é essencial que o sector privado passe a exigir processos de contratação pública mais claros, auditáveis e previsíveis. Apenas assim será possível romper com a lógica das adjudicações duvidosas, das empreitadas fantasmas e das obras nunca concluídas.
O trabalho que Daniel Chapo tem realizado nos primeiros meses da sua governação aponta para uma possível viragem histórica. O pagamento das dívidas ao sector privado é, ainda que tardio, um acto de reconhecimento e redenção. Mas, para que não se perca na memória efémera dos feitos de governo, esse gesto deve ser consolidado por reformas institucionais corajosas, profundas e consistentes.
O Estado moçambicano precisa de reaprender a ser fiável. E o sector privado precisa de reaprender a confiar. Essa confiança mútua é o cimento invisível de qualquer nação próspera. Que o gesto inaugural do Presidente Chapo seja o prelúdio de um novo tempo — um tempo de probidade, de eficiência e de verdadeiro compromisso com o bem comum.

Facebook Comments