Destruição do ecossistema de mangal torna a baía de Maputo ‘infértil’’

DESTAQUE SOCIEDADE
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  • Perda de áreas de nidificação torna a pesca mais difícil e ameaça sobrevivência
  • Estudo indica que Moçambique caiu do 12o para 15.º lugar em cobertura de mangais
  • Mudanças climáticas, ciclones e expansão urbana estão entre as principais causas da perda
  • ⁠Carlos Serra propõe alternativas energéticas para proteger o ecossistema de mangal

 

A areia ainda húmida, moldada pelo vaivém da maré, revela sulcos profundos onde, há poucos anos, se entrelaçavam raízes expostas de mangais. No lugar onde antes, seguindo o curso da natureza, os peixes nidificavam e tinham o seu berçário, ouve-se agora o som seco das pedras alinhadas pelas máquinas, numa tentativa desesperada de travar o avanço do mar. Mais adiante, troncos de mangal cortados pela metade jazem abandonados sobre a areia, marcas visíveis de uma floresta arrancada às pressas, empurrada pela necessidade de combustível lenhoso, construção de moradias e até para ornamentar locais de lazer. A linha entre terra firme e água salgada tem recuado cada vez mais. Para quem vive aqui, cada metro perdido hipoteca o futuro das próximas gerações. Mas não é somente a vida em terra que está em risco, a perda de áreas de nidificação tornou a Baía de Maputo, praticamente infértil, praticamente sem pescado, o que ameaça a sobrevivência de pescadores, revendedores de mariscos e suas famílias. A Magumba e outros tipos de mariscos, que antes abundavam, hoje tornaram-se uma raridade e viram o seu preço a disparar. O Governo, sociedade civil e parceiros já identificaram o caminho.

Edmilson Mate

Ao longo dos últimos anos, práticas como o corte do mangal para lenha, construção de habitações e a transformação da madeira em mobiliário e estruturas comerciais tornaram-se comuns. Apesar da existência de normas ambientais, o Estado não se mostra eficiente na fiscalização.

Um estudo recente sobre o mapeamento global das florestas de mangal com base em imagens de satélite de 2020, publicado em 2023, posiciona Moçambique no 15.º lugar em termos de cobertura de mangal, representado uma queda em relação à 12.ª posição ocupada anteriormente.

Na Baía de Maputo, concretamente na Costa do Sol, onde a vegetação densa que cobria a região há décadas agora dá lugar a áreas fragilizadas e expostas, o solo fica vulnerável às marés e aos ventos, acelerando a erosão. A areia do mar, puxada pelo vento, já invade a estrada circular de Maputo e em alguns bairros, a água do mar já invade as primeiras fileiras de casas, obrigando as famílias a buscar soluções emergenciais. A única defesa visível contra a força do mar são pedras colocadas pela própria comunidade, sem qualquer suporte técnico.

Mas os efeitos nefastos da devastação do ecossistema de mangais não pára por aí. Devido à crescente falta de áreas de nidificação e que servem igualmente de berçário para várias espécies de peixe, a Baía de Maputo do bairro dos Pescadores até Catembe, enfrenta uma grave escassez de peixe e outros tipos de mariscos.

Hoje em dia, somente embarcações que se arriscam ao alto mar, nas encostas da Ilha de Inhaca é que abastecem as cidades de Maputo e Matola, mas, dada a insuficiência, o défice é coberto por peixe importado de outras províncias como Inhambane.

“Navegamos por muitas horas e voltamos com as redes vazias”

Jorge Carlos, pescador de 65 anos, vive há mais de duas décadas da pesca na Baía de Maputo. Com a voz cansada e um tom de quem enfrenta o mar todos os dias para pouco conseguir, contou ao “Evidências” as mudanças que tem testemunhado no ecossistema e como isso tem impactado a sua vida e a economia da sua família.

“Faço este trabalho há mais de 25 anos. Antes, conseguia encher duas ou três caixas de peixe em um dia. Hoje, navegamos por muitas horas e, muitas vezes, voltamos com as redes vazias. Antes conseguia suprir todas necessidades da família com o que ganhava, mas hoje em dia está difícil”, desabafou.

Segundo Jorge, nos últimos anos, devido à dificuldade para conseguir algum pescado, os pescadores são obrigados a ir até ao alto mar, muitas vezes em embarcações que não oferecem segurança e sem equipamentos adequados, o que aumenta os custos e os riscos da actividade.

“Consegui cuidar dos meus filhos e construir uma casa para eles, mas agora está muito difícil. Já não há nada, nem pescadinha, nem camarão, nem magumba Era muito fácil. Fazia mais dinheiro do que agora. Em um dia, conseguia duas ou três caixas de peixe. Agora tenho que ir até à Ilha da Inhaca ou Machungulo e às vezes fico lá até a noite ou mesmo por dias. Aqui perto, já não compensa porque já não há peixe. O mangal era como uma casa  para os peixes. Sem ele, não há peixe. O pouco que resta vieram estudantes aqui para plantar”, disse Jorge, confirmando uma das causas do declínio.

Fortunato Mujanga, de 40 anos, também pescador há mais de 15 anos, disse à nossa equipa de reportagem que devido à queda no volume de pesca de forma gradual nos últimos anos tem pensado seriamente em abandonar a actividade, mas o seu grande empecilho é o facto de não ter estudado para poder escolher um outro ofício. Tudo que sabe fazer é pescar.

“Agora não se apanha nada. Antigamente, com uma rede, em 30 ou 40 minutos conseguíamos duas, três, até cinco caixas de peixe. Hoje saímos às 15h e voltamos às 4h da manhã, às vezes sem uma única caixa. Eu só me mantenho na actividade porque não tenho outra opção. A falta de peixe no mar trouxe fome para as nossas famílias”, desabafou.

Contando que o declínio começou a se acentuar nos últimos 10 anos, Mujanga conta ter já testemunhado directamente a destruição do mangal e com isso tem assumido um papel “informal” de sensibilização das pessoas que destroem aquele ecossistema.

“Havia muito mangal. As pessoas cortaram tudo por causa da lenha. Agora, o mar está a entrar nas casas. O governo colocou pedras aqui para tentar segurar, mas não chega”, disse, confirmando que o problema está ligado à falta de conhecimento da importância do mangal por parte das comunidades e à ausência de políticas públicas de educação ambiental.

“Vejo algumas pessoas com catana a cortar o mangal para usar como lenha ou construir barracas. Eu explico que isso vai nos prejudicar a todos. Alguns ouvem, outros nem querem saber”, denuncia, acrescentando que outrio factor que agrava a crise é o uso de redes de pesca ilegais, incluindo redes mosquiteiras, por parte de alguns pescadores e comunidades.

Na zona de Minguene, o Evidências entrevistou Marta Lopes de 37 anos de idade. Ela trabalha como marisqueira. Todos os dias, chega à praia às quatro horas para colher amêijoas e caranguejos, para posteriormente vender no Mercado do Peixe. Tal como Fortunato e Jorge, lamenta a falta de mariscos nos últimos anos, o que tem tornado o trabalho mais pesado, e revela que com muito custo consegue alimentar os seus filhos.

“Antes era mais fácil. Havia muito mangal e muito marisco. Agora o trabalho é pesado e o rendimento caiu. Mesmo assim, insisto. Com pouco, ainda consigo sustentar a casa e os meus filhos”, diz determinada.

Nem o período de veda é suficiente para devolver a abundância de outros tempos

Dada a escassez de pescado na Baía de Maputo, o preço de mariscos tende a disparar, ameaçando a dieta de muitas famílias que tem sobretudo no peixe de baixa classificação sua principal fonte de proteina. A magumba, uma sardinha que outrora era bastante abundante hoje virou uma raridade no prato da mais humilde família moçambicana.

Actualmente, uma caixa de peixe Hilsa Kelee, conhecido localmente como “Magumba”, custa cerca de 2.500,00 MZN, contra os anteriores 1000 a 1500 meticais. Nos revendedores o preço também subiu, o que antes era uma mão cheia a um preço acessível, hoje sai ao preço de ouro.

Três peixes minúsculos são vendidos nos dias que correm a 20 meticais reflectindo a escassez crescente da espécie no mercado local. Quem sobrevive da venda deste marisco não esconde a desilusão.

“Só estamos aqui para não ficarmos em casa, mas negócio como tal já não existe. Compramos o produto para revender muito caro e, chegados ao mercado, os clientes não compram porque acham o preço alto”, desabafou Cidália Comé.

Visitámos o mercado de peixe para compreender a proveniência do peixe de primeira classificação que faz as delícias das famílias de elite, ao que apurámos que uma parte vem do alto mar, sobretudo das ilhas próximas, mas outras vêm da província de Inhambane, com destaque para o distrito de Inhassoro, a cerca de 800 quilómetros da capital do País.

Com vista a permitir a reprodução das espécies marinhas, anualmente, o Governo estabelece um período de veda em que a actividade piscatória é proibida. Geralmente, este período que dura de janeiro a março é precedido por um período de defeso entre novembro e dezembro.

Todavia, apesar deste interegno de cinco meses, praticamente nada muda. Quando a veda é levantada, os pescadores voltam decepcionados sempre que se lançam ao mar, pois regressam sempre com as redes praticamente vazias.

A última veda foi levantada há cerca de dois meses, mas os relatos dos pescadores da Baía de Maputo são por demais aterradores e mostram o drama e desespero de quem teve na pesca a sua fonte de sobrevivência.

O destino do mangal: das raízes da costa às paredes das casas e restaurantes

O cenário acima descrito tem uma relação directa com a destruição do ecossistema de mangais, que causa um grande desiquilíbrio ambiental, ao privar os peixes de um berçário natural. Apesar de o corte do mangal ser ilegal, há relatos de que a sua madeira continua a ser usada para diversos fins.

“Já vi casas construídas com madeira de mangal. Sei de casos concretos. As pessoas cortam e usam para levantar barracas ou estruturas junto à praia”, afirmou um pescador ouvido pelo Evidências.

Para além de construção, a madeira de mangal é usada como lenha ou para decoração de moradias e casas de lazer, incluindo estâncias hoteleiras e de restauração, sob o olhar impávido das autoridades. São florestas interiras que foram colocadas abaixo para satisfazer o capricho de algumas pessoas com mais posses.

Evidências fez uma ronda pelos bairros nobres da capital do País e confirmou o uso do mangal para fins ornamentais. Um dos exemplos mais flagrantes, mas não isolado, é o Restaurante Cardápio Caseiro na baixa da cidade de Maputo, que tem o seu tecto completamente forrado por madeira de mangal.

O caminho para o reflorestamento do mangal passa pelas comunidades

Carlos Serra, ambientalista, alerta para os impactos profundos da destruição dos mangais, classificando-os como um dos ecossistemas mais cruciais para o equilíbrio ambiental.

“Estamos a perder uma das nossas maiores defesas contra as mudanças climáticas”, afirma. “Os mangais armazenam grandes quantidades de carbono, servem de berçário para inúmeras espécies marinhas e actuam como barreira natural contra as marés e inundações. Sem eles, aumentam significativamente os riscos de desastres naturais.”

Para Serra, a restauração dos mangais exige uma abordagem integrada, que una educação ambiental, políticas energéticas sustentáveis e, sobretudo, o envolvimento activo das comunidades costeiras.

“É preciso transformar os pescadores e marisqueiras em guardiões do mangal. Mas isso só será possível se valorizarmos o conhecimento local e garantirmos que a protecção ambiental não se traduza em insegurança alimentar ou perda de rendimento”, defende.

O ambientalista propõe um modelo de restauração baseado em estratégias nacionais aplicadas à realidade local, com monitoria comunitária e incentivos concretos para desencorajar práticas destrutivas. Para ele, o futuro dos mangais depende da capacidade de conjugar conservação e dignidade humana.

Olhando para o futuro da Baía de Maputo, assim como de outros pontos onde existam mangais, Serra entende que se se continuar a tratar o mangal simplesmente como lenha, empurrará milhares para a pobreza extrema e exporá o país inteiro a danos irrecuperáveis.

BIOFUND lidera iniciativas para salvar os mangais em Moçambique

Segundo a bióloga marinha Célia Macamo, ‘’as principais causas dessa perda incluem os impactos das mudanças climáticas, com destaque para a ocorrência de ciclones, a dinâmica natural da linha costeira, a expansão urbana desordenada e a extracção insustentável de madeira.’’

Apesar da crescente destruição dos mangais em Moçambique, a sociedade civil continua a resistir. A Fundação para a Conservação da Biodiversidade (BIOFUND) tem-se destacado na linha da frente desta luta, promovendo acções concretas de preservação e restauração.

Em entrevista ao Evidências, Jéssica Julaia, bióloga marinha e gestora do Departamento de Monitoria e Avaliação da BIOFUND, sublinhou o compromisso da fundação com a protecção dos ecossistemas costeiros e marinhos.

“Apoiamos todas as áreas de conservação marinhas e costeiras do país, que implementam actividades de sensibilização, reflorestação e fiscalização dos mangais”, afirmou.

Desde 2021, a BIOFUND lidera uma das mais ambiciosas iniciativas de restauração de mangal em Moçambique, no Delta do Zambeze – considerado um dos ecossistemas de mangal mais importantes do país e de relevância ecológica global. O projecto, inserido no âmbito do ECO DRR, é implementado pela WWF com financiamento da Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD).

Um dos principais objectivos é a recuperação de 390 hectares de mangal, envolvendo activamente as comunidades locais. Para além da restauração ambiental, o projecto aposta na criação de alternativas económicas sustentáveis.

“Estamos a desenvolver uma cadeia de valor em torno do mel de mangal, de forma a gerar rendimentos e, ao mesmo tempo, reforçar a consciência da importância da conservação”, explicou Julaia, avançando que até ao momento, já foram distribuídas cerca de 100 colmeias, que estão a permitir às comunidades transformar a protecção do mangal numa fonte concreta de sustento.

“Não existe uma legislação específica para a proteção do mangal”

O Ministério da Agricultura, Pescas e Ambiente (MAPA), por meio da Visão Biodiversidade – Conservação Aquática e Costeira, uma instituição sob sua tutela, reconhece que ainda não há uma legislação específica que proteja os mangais em Moçambique. Em entrevista ao Evidências, o director da instituição, Emídio André, explicou que o uso do mangal para fins domésticos não é considerado crime.

“O mangal, sendo uma floresta, enquadra-se nos regulamentos florestais. Não é crime utilizar o mangal para uso doméstico, seja para lenha, seja para estacas. Trata-se de um ecossistema que, ao abrigo do princípio do uso costumeiro, pode ser explorado pelas comunidades, desde que em quantidades dentro de certos limites”, afirmou.

Apesar da ausência de uma lei específica, o MAPA realiza acções de mapeamento e fiscalização nas comunidades, com o objectivo de compreender a forma como os mangais estão a ser utilizados. Emídio explicou que, a partir dessa avaliação, são apresentadas alternativas sustentáveis para reduzir a pressão sobre este ecossistema.

“Fazemos o mapeamento nas comunidades para identificar como está a ser usado o mangal, e com base nisso apresentamos propostas alternativas, como actividades de pesca sustentável, produção de mel de mangal, entre outras”, explicou.

Além disso, o director destacou que existem clubes ambientais em algumas escolas, onde os alunos participam em actividades de educação e conservação ambiental. Esta iniciativa já está a ser implementada em províncias como Nampula (nos distritos de Angoche e Moma) e Cabo Delgado, através de um modelo de gestão participativa.

Relativamente ao período de veda, Emídio referiu que a época de reprodução das espécies associadas ao mangal geralmente tem início no final do ano, coincidindo com o período chuvoso.

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