Mulheres, que tal falarmos mais sobre feminicídio?

OPINIÃO

Enia Lipanga

Vim conversar convosco, mulheres. Sinto que estamos cada vez mais mornas perante as feridas de outras mulheres. É como se, com o tempo, os nossos olhos se enchessem de poeira e as nossas mãos pressionassem cada vez mais os nossos ouvidos. Não queremos ver, não queremos ouvir, se calhar seja pelo facto de temermos sentir.

Num momento em que mulheres são assassinadas todos os dias, apenas por serem mulheres, por fazerem escolhas diferentes do que socialmente se espera de uma mulher e às vezes apenas por existir, sinto que à medida que mais precisamos do conforto uma da outra, mais temos nos distanciado. É como se estivéssemos conformadas com a norma social de sermos inimigas, de nos tratarmos mal, nos olharmos mal e estamos cada vez mais pouco nos lixando quando uma mulher, que não é próxima de nós, é violentada. Aliás, nós, mulheres entramos neste círculo vicioso de culpar esta mulher que foi violentada, agredida, assassinada. Questionámo-la por estar naquele lugar, naquela hora, com aquela roupa, julgamos e esquecemos que nós somos ela e que ela é ou era uma de nós.

É difícil, sim, tomar as dores das outras, cultivar a empatia e sentir que são as nossas pernas que são afastadas brutalmente toda a vez que uma mulher é sexualmente violentada. Sei que é doloroso chorar e  gostaríamos que os nossos glóbulos oculares fossem fustigados por uma seca severa para que nenhuma  lágrima escorresse ao ouvirmos outra mulher, semelhante a nós, gemer de dor. Mas, há algo mais doloroso que isso, o nosso silêncio, já não trememos ao frio do desamparo social e tampouco nos aquecemos com a dor da outra mulher ao ponto de exigirmos justiça perante os milhares de casos.Há muito submetidos nas esquadras dos nossos bairros, porém sem seguimento.

Será que só conseguiremos notar que estamos envoltas num problema quando este se materializar nas nossas casas?

Sinto que andamos muito distraídas quando o assunto é falar ou comentar sobre a  violência contra as mulheres. No mês passado, foram reportados mais de oito casos de mulheres que foram violadas de diversas formas e jogadas na via pública, como se de uma sentença de rebeldia se tratasse. Digo sentença de rebeldia, pois as vítimas são encontradas na via pública. Sobre esse espaço, a mulher aprende, desde cedo, a não nutrir um sentimento de pertença e/ ou ser livre para dele se apropriar, devendo vestir a rigor e com o tempo cronometrado para se apresentar no mesmo. É na via pública que nós, mulheres, permitimos que os homens, totalmente invasivos e desrespeitosos, façam comentários sobre o nosso corpo, a nossa forma de vestir e o nosso andar, sem que de nós venha uma reacção para repreender tais acções e, num tom de quem diz “quem cala consente” o homem sente-se robustecido para cada vez mais destilar a sua toxidade. É na via pública que uma jovem polícia foi assassinada em Maputo. Já tivemos um caso, envolvendo também os agentes da lei e ordem, mas, desta vez, na posição de violadores, acusados de destruir a vida de uma jovem de 22 anos na histórica Mafalala. Lembram-se dos três homens!?

Estes foram alguns casos noticiados, mas não temos ideia de quantos permanecem ocultos, perdidos no silêncio das vítimas, escondidos na ausência de denúncia e colocados no esquecimento pelo encobrimento.  Há vários crimes hediondos perpetrados contra as mulheres só por serem mulheres. Podia arrolar mais casos, porém não caberiam neste texto, pois somos mortas todos os dias e violadas à luz do sol pela forma que nos apresentamos.  Quando anoitece, nos mesmos becos e ruas, que ninguém se importa em iluminar, somos trinchadas e jogadas ao lixo como se de sobra de comida se tratasse,  afinal a noite pertence aos homens e, por isso, eles podem andar sem medo e com toda liberdade de se fazer à rua como e quando os apetecer.

Estou preocupada com o nosso silêncio ensurdecedor face a esta onda de violência. Estou preocupada porque sinto que temos abandonado as armas de repúdio, temos simulado um falso conforto ao saber que foi com a Maria e não com a nossa mãe, filha ou irmã. Até quando fingiremos que nada está a acontecer? Queremos ser meras espectadoras deste triste espectáculo e fazer vénia ao vilão até que chegue a nossa vez?

Calamo-nos e ignoramos quando a nossa vizinha, desesperada e fugindo do cinto que a oprime, sai à rua na esperança de encontrar um alento e, ao invés de ampará-la, preferimos ser as fitas métricas e as agrimensoras do seu corpo. Com os dedos, apontamos a sua celulite e estrias e, com os olhos, medimos os seus excessos e ajustamos a sua cintura à nossa estupidez e podridão, alegando que ela está fora do nosso doentio padrão.

O que se passa com esta onda de silêncio onde tememos gritar, repudiar, falar sobre os diversos tipos de violência baseada no género que nós, mulheres, sofremos?

Preocupa-me e dilacera-me saber que há mulheres que atiram a culpa às mulheres que, por azar, cruzam os caminhos destes violadores e  que, muitas vezes, são caminhos sem volta. Como mulheres, como nos expomos a outras mulheres?

Sei que, muitas vezes, estamos distantes de conseguir uma solução, mas penso que a palavra pode ser uma arma para que minimizemos este mal. Que tal uma corrente de mulheres que se defendem e falam destes crimes tal como aplaudimos idiotices e memes?

Que tal, se ao invés de criticar a cor das unhas umas das outras, juntarmos as mãos e lutarmos por uma causa que é de todas nós?

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