Luca Bussotti
O ensino superior costuma ser o espelho de uma sociedade; porém, nas realidades cientificamente mais avançadas, ele tem a capacidade de indicar a direcção, em vez de ir ao reboque daquela mesma sociedade, ajudando na compreensão dos grandes problemas nacionais, e oferecendo aos decisores políticos opções para os solucionar. O caso do ensino superior em Moçambique é exemplificativo, deste ponto de vista: por um lado, ele está inserido num contexto complexo, de crise de legitimidade institucional que acaba condicionando a sua qualidade e direcção, mas, por outro, é justamente o ensino superior a ter as potencialidades para ajudar o país a sair da sua pior crise desde a instituição da Segunda República. Por isso é que este mandato pode ser classificado como o ano zero do ensino superior em Moçambique. E o nó central para que o relacionamento entre ensino superior, instituições públicas e sociedade se torne mais saudável e produtivo é justamente a produção de novo conhecimento, em todos os domínios científicos.
Aqui, o ensino superior moçambicano deve marcar uma primeira diferença com o passado: uma sociedade que não produz conhecimento é uma sociedade destinada à dependência externa. Não conseguir explorar os próprios recursos naturais alimenta o eterno mecanismo da dependência; não conseguir lidar com uma pobreza crescente só vai piorar o nível de bem-estar da sociedade; usar mecanismos cada vez mais repressivos contra o descontentamento das populações também vai agravar tensões sociais já extremamente complicadas, e por aí em diante. Por isso é que este mandato tem de marcar uma diferença significativa com o recente passado, em que o ensino superior não fez registar grandes progressos, sobretudo na produção de novo conhecimento, em Moçambique.
Existem questões endógenas ao ensino superior que deveriam ser enfrentadas com a maior urgência: hoje, são mais as universidades e os institutos superiores que nada publicam mais do que aquelas que se comprometem com esta actividade. Onde uma instituição, na sua singularidade, não consegue (ou não quer) chegar, ali é que o ministério, mediante a secretaria de estado do ensino superior, tem o dever de criar as condições para que isso aconteça. Uma instituição de ensino superior sem nenhuma publicação científica não pode ser considerada como instituição de ensino superior. Não é difícil ter uma revista científica on-line com registo nacional e internacional, assim como não é difícil compor uma redacção de professores e investigadores que lidem com a revista. Revista que tem de ser, principalmente no contexto moçambicano, open access, ou seja, de leitura gratuita, dando a possibilidade de o leitor baixar todos os artigos do seu interesse. Eliminar as barreiras à produção e fruição do conhecimento interno é o primeiro dever de qualquer instituição de ensino superior. Isso significa, além de disponibilizar gratuitamente os artigos que constam na revista, não cobrar nada aos autores que queiram publicar, pois, contrariamente, iríamos incentivar uma selecção com base no censo, e não no mérito. O que contradiz o critério de oportunidades iguais para todos na produção de novo conhecimento, reduzindo o possível impacto positivo para a sociedade.
Tais pressupostos levantam questões financeiras. Entretanto, a abertura e manutenção de plataformas online para publicação de revistas científicas tem custos extremamente limitados, assim como os incentivos para professores e investigadores cuidarem da tal revista deveriam ser previstos no budget geral de cada instituição de ensino superior. O próprio ministério poderia pensar num curto programa de incentivos neste sentido, quer de tipo financeiro, quer técnico, de forma a garantir a abertura e pelo menos o primeiro ano de vida do periódico.
Fora de questões endógenas, as instituições de ensino superior actuam dentro de um sistema mais complexo. Existem instituições, por assim dizer, colaterais, tais como o Fundo Nacional de Investigação (FNI) ou o Instituto das Bolsas que deveriam contribuir mais para a produção de conhecimento no país. O critério com que estes dois institutos deveriam levar a cabo as suas actividades é a transparência máxima na atribuição de fundos de pesquisa, assim como de bolsas de estudo para jovens moçambicanos que queiram se formar, sobretudo a nível da pós-graduação. Isso significa ter comissões compostas por elementos de elevada competência, com actas públicas que determinem de antemão os critérios de avaliação, quer dos projectos de pesquisa propostos por instituições, quer das candidaturas individuais às bolsas de estudo. E também com actas públicas relativas ao processo de avaliação, contra as quais seja possível recorrer. Sem ir muito longe, seria suficiente ver o que faz a portuguesa FCT a cada concurso, onde a transparência é máxima. Incluir docentes e investigadores que estejam completamente fora das instituições de ensino superior de Moçambique (abertura internacional) seria um critério de mais transparência, saindo do usual circuito fechado e que acaba não dando garantias de imparcialidade e publicidade. E finalmente exigindo os produtos das pesquisas (ou das bolsas) financiadas, prevendo também etapas intermediárias de monitoria. Conceder financiamentos sem nenhuma forma de controlo nunca foi uma boa receita, em nenhum campo de actuação.
Fora disso, existe também um problema estrutural da universidade moçambicana no que diz respeito à produção de saber: não há, até hoje, nenhum curso de pós-graduação a tempo inteiro. Com efeito, mestrados e doutoramentos são realizados por parte de estudantes-trabalhadores, ainda por cima com a duração “normal” dos mesmos cursos em instituições estrangeiras. Dificilmente tais estudantes conseguem terminar a tempo e hora, pois as tarefas profissionais acabam prevalecendo sobre as de estudo e pesquisa. Uma das razões deve ser procurada na forma como as bolsas de estudo do Instituto das Bolsas estão sendo oferecidas. Elas não são verdadeiras bolsas, mas, sim, uma simples isenção de propinas, com que o estudante de pós-graduação não consegue garantir o seu sustento material. Mais uma vez, apesar dos constrangimentos orçamentais, seria necessário prever bolsas (nem que fosse iniciando com um pequeno projecto-piloto) integrais, que dêem a possibilidade aos beneficiários, durante os anos do curso, de se dedicarem de forma exclusiva à sua pesquisa, com o compromisso de terminar a tempo e hora, e de ter, como resultado final, uma publicação numa revista internacional, um livro ou, em casos específicos, uma patente que possa ter um impacto significativo junto à sociedade moçambicana.
Produção de conhecimento não significa, automaticamente, benefícios para a sociedade: no âmbito da extensão também as limitações com que as instituições de ensino superior se deparam são inúmeras, e bem conhecidas. A tendência continua a de não sair dos circuitos académicos onde, geralmente com uma linguagem poco compreensível, o escasso saber até agora produzido é debatido, sempre entre as mesmas pessoas. Difundir junto às comunidades tal saber representa uma tarefa fundamental para que o impacto da produção académica possa resultar significativo, assim como aprender com as comunidades ia enriquecer o próprio conhecimento dentro das universidades. Existem várias formas para fazer isso, e cada instituição poderá articular a melhor modalidade neste sentido. Entretanto, neste caso também, a universidade não é uma entidade isolada. Todas as televisões e emissoras radiofónicas do país, grandes e pequenas, sempre convidam docentes e investigadores a expressarem opiniões sobre acontecimentos ou fenómenos da sociedade moçambicana, ou até do cenário internacional. Opiniões que, na quase totalidade dos casos, não se relacionam com pesquisas efectivamente desenvolvidas por parte dos convidados. Ora, um investigador tem mais legitimidade em falar de um conhecimento que produziu pessoalmente do que especular sobre factos que só conhece à distância, e sem nunca ter escrito nada à volta deles. Porém, são raríssimas as oportunidades que os investigadores têm de falar das suas pesquisas, dos seus resultados e das possíveis aplicações junto à sociedade moçambicana nos meios de comunicação nacionais. Utilizar tais meios para difundir o conhecimento endógeno constituiria uma grande mais-valia para toda a sociedade moçambicana, quebrando, pelo menos em parte, o curto-circuito entre produção, difusão e impacto do conhecimento, que até hoje representa um dos grandes constrangimentos para o País.

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