- Um em cada três adultos moçambicanos é hipertenso
- Número de mortes causadas por doenças crónicas quadruplicou
- Sedentarismo duplicou e o consumo exagerado de álcool quintuplicou entre 2005 e 2024
O retrato da saúde dos moçambicanos está a mudar e não para melhor. As doenças crónicas não transmissíveis (DCNTs), historicamente ofuscadas pela atenção dada às infecciosas, tornaram-se uma ameaça silenciosa e crescente. Coração, vasos sanguíneos, rins e fígado estão a pagar o preço da alimentação pobre em nutrientes e de um estilo de vida cada vez mais urbano sedentário, acelerado e pouco saudável. Dados revelam que hipertensão, diabetes e colesterol elevado afectam milhões de moçambicanos, enquanto grosso modo continua a ignorar e/ou a estimular factores de risco como obesidade, sedentarismo e consumo excessivo de álcool. Especialistas pedem acção multissectorial urgente.
Luísa Muhambe
O alerta vem dos resultados preliminares do Inquérito Nacional de Prevalência e Factores de Risco para as Doenças Crónicas Não Transmissíveis (InCRÓNICA 2024), apresentados nesta sexta-feira pelo Ministério da Saúde, conduzido pelo Instituto Nacional de Saúde (INS).
Os números impressionam: um em cada três adultos moçambicanos é hipertenso (31,6%), quase um em cada seis (15,7%) tem colesterol elevado e cerca de 4,1% vivem com diabetes. Enquanto isso, a obesidade duplicou em menos de duas décadas, passando de 7,5% para 13,8%, com maior incidência entre mulheres.
“O peso da mortalidade causada por doenças crónicas quadruplicou entre 2007 e 2019 em Moçambique. Estas doenças são, hoje, responsáveis por quase metade das emergências hospitalares nas cidades de Maputo, Beira e Nampula. É uma situação que pressiona o sistema de saúde em todos os níveis”, informou Ivan Manhiça, secretário permanente do Ministério da Saúde, durante a cerimónia de divulgação dos dados.
A pesquisa foi realizada com o apoio técnico e financeiro do Alto Comissariado do Canadá, da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Instituto Nacional de Estatística, e amplia os horizontes dos dois estudos anteriores ao incluir, pela primeira vez, módulos dedicados à asma, cancro e saúde mental.
“Fomos mais ousados desta vez. Aumentámos a amostra e diversificámos os temas, com o objectivo de termos um panorama mais completo da saúde dos moçambicanos”, destacou Eduardo Samo Gudo, director-geral do INS.
Factores de risco continuam sendo negligenciados
De acordo com Ana Mucumbi, investigadora principal, o aumento dos factores de risco constitui a maior das preocupações, pois, só para se ter uma ideia, entre 2005 e 2024, o sedentarismo duplicou (de 6,5% para 14,3%), o consumo exagerado de álcool quintuplicou (de 5,4% para 25,3%), sobretudo entre os jovens, e o consumo de frutas e vegetais caiu 15%.
Como resultado, 80% da população ainda consome menos do que as cinco porções diárias recomendadas pela OMS, e 22% adicionam sal aos pratos mesmo após o preparo, o que aumenta o risco de doenças não infeciosas.
“Infelizmente, os dados mostram que os factores de risco ou se mantiveram ou aumentaram desde 2005, com excepção do consumo de tabaco, que teve uma redução significativa. A prevalência elevada de hipertensão e o aumento do risco cardiovascular colocam o país numa posição de risco médio-alto entre os países africanos. Algo precisa de ser feito e com urgência”, alertou Mucumbi.
Segundo o relatório, 17,3% dos adultos entre 40 e 69 anos têm um risco cardiovascular combinado superior a 20% ou já convivem com doenças cardiovasculares, o que significa que há uma probabilidade considerável de morte por essas causas nos próximos 10 anos, caso não haja intervenções imediatas. A sobrecarga ao sistema de saúde é inevitável.
“Estamos a assistir a uma transição epidemiológica no país, onde doenças crónicas começam a ocupar o espaço das infecciosas como principais causas de morte e incapacidade. E estas não são doenças baratas de tratar”, afirmou Manhiça, reforçando que o custo do tratamento de hipertensão, diabetes ou doenças cardíacas é alto e contínuo, e afecta tanto o bolso das famílias como a capacidade de resposta do Estado.
O estudo, que custou mais de um milhão de dólares, será complementado por outras duas fases até 2028, incluindo avaliações sobre a prontidão das unidades sanitárias para responder a esse novo perfil epidemiológico.
“Queremos mapear a capacidade do nosso sistema nacional de saúde para lidar com estas doenças. Sem esse diagnóstico, não podemos falar de intervenção eficaz”, antecipou Mucumbi
Parceiros pedem acções concretas
A OMS, representada por Inácio Alvarenga, gestor do seu Programa de Saúde em Moçambique, sublinhou a importância da pesquisa para orientar políticas públicas.
“Estes resultados são fundamentais para alinhar os investimentos em prevenção, diagnóstico e tratamento. Também ajudam a melhorar a alocação de recursos num cenário de orçamentos cada vez mais apertados. Acreditamos que este estudo poderá orientar não apenas o Ministério da Saúde, mas também todos os sectores envolvidos na resposta às doenças crónicas”, afirmou Alvarenga.
Para Alvarenga, é essencial que os resultados não sejam restritos às instituições centrais. O representante da OMS acrescentou, ainda, que os dados devem ser utilizados para informar decisões práticas
“É importante que este estudo seja divulgado. Que chegue ao nível provincial, distrital e comunitário, se não for divulgado, os resultados não terão impacto. Estamos a falar de decisões que devem ser tomadas a partir dos resultados, como melhorar o acesso aos serviços, garantir medicamentos, e, sobretudo, reforçar acções de prevenção”, frisou, para depois reforçar a importância do envolvimento intersectorial.
“Esta luta contra as doenças crónicas não é só do Ministério da Saúde. É uma luta de todos os sectores: juventude, educação, desporto, agricultura, comunicação social. Todos devem estar envolvidos na promoção de estilos de vida saudáveis”.
Por seu turno, Asharaf Hassanein, representante da embaixada do Canadá, um dos financiadores do estudo, reconheceu o esforço colectivo por detrás do inquérito e a necessidade de descentralizar a divulgação dos resultados, para além de destacar o compromisso do governo canadense com a saúde global, sublinhando a importância de estudos como o inCRÓNICA para orientar políticas públicas baseadas em evidências.
“É crucial que esta informação chegue também às comunidades, aos utentes dos serviços de saúde e a outros sectores, como juventude, desporto e educação. Todos têm um papel a desempenhar na promoção de hábitos de vida saudáveis. O Governo do Canadá tem vindo a apoiar o sector da saúde há muitos anos, e estamos felizes por fazer parte desta iniciativa”, disse Hassanein, para quem o inquérito representa um investimento estratégico.
O representante canadense ainda fez questão de elogiar o trabalho do INS e a colaboração entre parceiros nacionais e internacionais.
“Esta é uma amostra de como a ciência, quando bem orientada, pode responder às necessidades do povo. Esperamos que este inquérito leve à melhoria dos serviços, ao reforço das capacidades e ao aumento da resiliência do sistema de saúde moçambicano face às doenças crónicas. Agora que temos os dados, precisamos de garantir que eles sejam utilizados para fazer avançar as políticas públicas. Porque cada estatística representa vidas e é por elas que estamos aqui”, defendeu.
Uma luta que ultrapassa os muros dos horpitais
Para Ana Mucumbi, a luta contra as DCNTs ultrapassa os muros dos hospitais. Urbanismo, transportes, indústria alimentar e educação são áreas estratégicas que podem transformar realidades.
“Este trabalho vai ser feito não apenas com o Ministério da Saúde, que é o sector mais directamente ligado aos resultados, mas também com outros ministérios. Nós temos vários ministérios que podem ajudar a melhorar as intervenções de prevenção e controlo de doenças crónicas. Por exemplo, o sector do transporte, o sector da municipalidade, que facilita a forma como as pessoas podem andar pela estrada, melhores caminhos, espaços para fazer exercício físico, etc. Temos também sectores como o sector comercial, o comércio, tal como restaurantes, padarias que podem diminuir o sal na comida, a venda de produtos processados também pode ser regulamentada”, defendeu Mucumbi.
As próximas etapas envolvem, além da disseminação dos resultados completos, a formulação de políticas públicas baseadas em evidência. O Plano Estratégico Nacional de Prevenção e Controlo de Doenças Crónicas e o Plano de Desenvolvimento de Recursos Humanos em Saúde serão dois documentos-chave a serem actualizados com base neste levantamento.

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