Logística para guerra: Ministério de Interior pagou 325 milhões de meticais por um equipamento que custou 82 milhões

DESTAQUE POLÍTICA
  • A teia de corrupção foi identificada pelo GCGC, mas o processo está engavetado
  • Factos ocorreram nos tempos do ministro Miquidade, que menos tempo ficou no cargo
  • Preço de tendas e kits de ração às FDS chegou a ser inflacionado em mais de 1000%

No auge do terrorismo em Cabo Delgado, em 2020, quando a imprensa relatava as degradantes condições dos militares no Teatro Operacional Norte, o Ministério de Interior (MINT) contratou uma empresa de publicidade (Damotral Produções), sem documentação em dia, para a compra de tendas e kits de ração de combate individual para o reforço da logística das Forças de Defesa e Segurança (FDS). No primeiro contrato assinado em Maio do mesmo ano, sem visto do Tribunal Administrativo (TA) – que o devolveu por falta de documentação válida – foi pago na totalidade o valor de 127 milhões de meticais, cinco dias antes de assinatura do contrato e, deste valor, apenas 12 milhões foram aplicados na compra do material solicitado. Dois dias depois, a mesma empresa viria a ser solicitada para o fornecimento de mais kits de ração, num novo contrato no valor de 198 milhões de meticais. No entanto, aplicou apenas 70 milhões de meticais para importação de meios solicitados, retendo um pouco mais de 125 milhões de meticais, que seriam a posterior distribuídos pelos facilitadores da bolada. Estas contratações suspeitas aconteceram três meses depois que o então ministro de Interior, Amade Maquidade, foi nomeado, tendo ficado no cargo apenas 21 meses. Depois de identificar a quadrilha, o Gabinete Central de Combate à Corrupção (GCGC) remeteu o processo com n.° 93/11/P/GCCC/2020 e registado sob n°610/2021 ao Tribunal Judicial do Distrito Municipal de Kamphumo, onde se encontra engavetado há mais de quatro anos.

Nelson Mucandze

A guerra é um negócio que, enquanto sacrifica os inocentes, move a economia da teia criminosa. É a inevitável conclusão a que se chega quando é analisada a cadeia dos envolvidos na tomada de decisão, desde os envolvidos na logística até aos que assumem posições de destaque nas questões operativas.

Numa corrida sem precedentes, que coincide com a entrada de Amade Maquidade no Ministério de Interior, a empresa Damotral Produções (2007), uma sociedade comercial que presta serviços nas áreas de agenciamento, publicidade e outros serviços, passou a assumir posição de relevo naquele ministério e facturou, num intervalo de quatro meses, mais de 300 milhões que foram drenados para a empresa, através de contratos problemáticos.

Não obstante a estranheza de ter-se uma empresa de publicidade a fornecer suprimentos militares, a mesma apresentava problemas de documentação e os moldes de pagamento não iam de acordo com o previsto nalgumas cláusulas.

No entanto, mesmo sem documentação devida, foi contratada, em ajuste directo, para fornecer tendas e kits de ração de combate individual para o reforço da logística das Forças de Defesa e Segurança (FDS).  De acordo com a acusação do Gabinete Central de Combate à Corrupção, o processo de contratação foi facilitado por Danilo Raffel, funcionário do Estado que se encontra(va) afecto ao Ministério do Interior, no Departamento de Aquisições, na qualidade de chefe de departamento.

Raffel chegou a ser preso, mas foi solto para responder em liberdade mediante o pagamento de uma caução de dois milhões de meticais, que mostra o quão financeiramente folgado estava um simples chefe de departamento de um ministério a ser gerido em modo economia de guerra.

A estratégia do roubo para inflacionar os custos em mais 1000%

A empresa Damotral Produções, Lda, tem como sócio principal Francisco Augusto Madeira, juntamente com a filha e gerente da empresa Suzete Francisco Madeira. Através do contrato nr. 17º/AD/20/DA/2020, a empresa Damotral foi indicada para o fornecimento de 550 tendas de acomodação para Escola Prática da Polícia de Matalana, no valor de 123 milhões de meticais.

A proposta de contratar a empresa Damotral Produções foi elaborada pelo chefe de Departamento de Aquisições, cujo nome completo é Danilo Príncipe Raffel que, em declarações feitas ao GCGC, disse que teriam sido identificadas três empresas, designadamente Lenom Servises, E.I, com a proposta de 151 milhões de meticais; Moicano Investimento, E.l, com a proposta de quase mesmo valor; e a Damotral Produções, Lda, com o valor de 123 milhões de meticais. Mas era tudo tentativa de ajustar às formalidades uma empreitada com requintes criminosos, afinal, as propostas das primeiras duas empresas nunca foram efectivamente analisadas.

Os contornos de tramitação deste processo viriam revelar tratar-se de um contrato aberto para drenar o dinheiro do Ministério do Interior, enquanto unidades das Forças Especiais da Polícia, empenhadas no teatro operacional, passavam fome.

Por exemplo, o contrato foi celebrado no dia 20 Maio de 2020, sendo o Ministério do Interior representado pelo então secretario permanente, ora falecido, Zefanias Senete Mabei Muhate, o qual teria, supostamente, dado orientações para contratação desta empresa, e pelo ora arguido Francisco Augusto Madeira, em representação da empresa Damotral Produções, Lda.

Estranhamente, o pagamento foi efectuado a 100%, no dia 15 de Maio de 2020, através da ordem de pagamento nº 2191/2020, portanto, cinco dias antes da assinatura do próprio contrato. Não obstante o pagamento antes de assinatura do contrato, o processo de pagamento e de assinatura do contrato foi feito sem que tivesse sido validado pelo Tribunal Administrativo (TA) que o devolveu, pelo facto de não se terem apresentado certidões válidas de quitação, emitidas pela Administração Fiscal, Instituto Nacional de Segurança Social, Instituto Nacional de Estática e Direcção Fiscal, bem como a garantia definitiva. Estes documentos só viriam a ser emitidos em Agosto de 2020.

Diferença abismal entre o preço da compra e o pago pelo Estado

A empresa Damotral procedeu com a importação dos bens, na República da África do Sul,

tendo como custo global 12.8 milhões, sendo 11 milhões referente aos custos de compra, transporte e seguro até à fronteira Moçambicana e 1.8 milhões de direitos aduaneiros.

O GCGC anotou que face ao preço da aquisição e o valor pago pelo Ministério do Interior para o fornecimento das tendas, mesmo considerando a variação de mercado, notava-se uma diferença abismal entre o custo da aquisição pelo fornecedor e o preço pago pelo Estado, que se mostra acima de 1000%, correspondente a 110 milhões de meticais, “portanto, acima do que seria razoavelmente aceite na transacção comercial de género com qualquer agente económico dentro do território moçambicano”.

Uma outra constatação do GCGC refere que a cláusula CGC-14.1, da secção VI do contrato, que dispõe sobre as condições especiais, faz referência que o pagamento deveria ser efectuado mediante a entrega do produto, facto que não se verificou, uma vez que, segundo as guias de remessa, os bens foram entregues entre os dias 08 de Junho e 28 de Agosto do mesmo ano, ou seja, cerca de um mês depois do pagamento.

Conclui o GCGC que houve, portanto, subfacturação de preços nesta contratação, augurada por meio de viciação dos procedimentos impostos legalmente e dos preços para o fornecimento, encenada pelos intervenientes directos na negociação, sendo, neste caso, o arguido Reffel, na qualidade da pessoa responsável, junto do Ministério do Interior, pela tramitação do processo da contratação em causa,  e o arguido Madeira, enquanto gestor, sócio e proprietário da empresa Damotral Produções, Lda, contratada pelo Estado.

O segundo roubo: mais de 120 milhões só em sobrefaturação

Nos mesmos moldes criminosos, Raffel tramitou, igualmente, o processo de contratação n.º 17%/AD/028/2020, celebrado a 22 de Maio de 2020, ou seja, menos de uma semana do primeiro contrato, a favor da mesma empresa. Este segundo tinha como objecto o fornecimento de 100 mil Kits de ração de combate individual para a PRM, no valor de 198 milhões de meticais.

No entanto, um dia antes da assinatura, no dia 21 de Maio de 2020, o arguido Danilo Príncipe Raffel, através da Nota n°.099/MINT – AD-NI/20, solicitou ao Director de Administração e Finanças o pagamento de 50% do valor do contrato, correspondente a 99 milhões de meticais. Nesta altura, o contrato não havia sido fiscalizado pelo Tribunal Administrativo, facto que viria a acontecer no dia 12 de Agosto de 2020.

Sobre este contrato, segundo o GCGC, da nota de comunicação à Unidade Funcional de Supervisão das Aquisições, com a referência n° 084/MINT – DA-PNE/2020, de 20 de Maio de 2020, dá conta que no processo de contratação foram identificadas três empresas, nomeadamente Socofil – Comercio & Serviços, com a proposta de 228 milhões; Francisco Madeira Produções, com a proposta de 211 milhões; e a Damotral Produções, com a proposta de 198 milhões. Um dado curioso é que todas as cotações foram apresentadas pelo arguido Francisco Augusto Madeira, proprietário da Damotral Produções. Alias, Francisco Madeira é também proprietário da empresa Madeiras Produções, El, uma empresa que, segundo o Evidências apurou, não existe no registo notarial.

Até outubro do mesmo ano, a empresa Damotral já tinha sido paga o valor deste segundo contrato na totalidade. No entanto, da documentação emitida pelas Alfândegas de Moçambique, relacionada aos custos de importação deste produto, por parte da Damotral, atesta-se que a empresa teve um custo total de compra, transporte e seguro de 51 milhões de meticais e pagou direitos aduaneiros no montante de 20 milhões de meticais, totalizando, assim, 72 milhões de meticais.

Em outras palavras, “houve, assim, um benefício acima de 100%, correspondente a 125.958.595,38MT (cento e vinte e cinco milhões, novecentos cinquenta e oito mil quinhentos e noventa e cinco meticais e trinta e oito centavos), o que denota uma clara sobrefaturação do preço pago pelo Estado neste contrato”, lê-se no processo remetido ao Tribunal Judicial do Distrito Municipal de Kampfumo.

Um dado que não deixa dúvidas de que se tratava de um grupo que via na logística para polícia uma oportunidade de drenar dinheiro é o facto de existirem pequenos levantamentos, logo que os pagamentos eram feitos. Depois da acusação houve até detenções, mas pagaram caução e o processo seguiu para o tribunal de Kampfumo, de onde nunca mais avançou.

Este não é o primeiro processo relacionado com a corrupção na logística de Cabo Delgado ou dentro da polícia, no entanto, apesar de o rastreio limitar-se a técnicos ou a peixe miúdo, prevalecem suspeitas de envolvimento do poder político que nunca é responsabilizado. Aliás, a fragilidade do poder judiciário em actuar de forma firme e conduzir responsabilização à altura dos crimes pode ser efeito dessa protecção política, num contexto em que são visíveis episódios de promiscuidade entre o poder político e o judiciário.

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