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Arão Valoi
A Província do Niassa, outrora vista como um reduto de tranquilidade e beleza natural no norte de Moçambique, entrou subitamente no mapa da violência armada. O Distrito de Mecula, inserido na Reserva Especial do Niassa, tem sido palco de ataques violentos, atribuídos a grupos insurgentes com ligações ao terrorismo que assola Cabo Delgado desde 2017. Esta vaga de violência tem devastado uma das mais importantes áreas de conservação e ecoturismo do País, comprometendo não só a segurança da população local, mas também o futuro sustentável de toda a região.
O que antes era um santuário de biodiversidade transformou-se num território de medo e incerteza. Infra-estruturas turísticas e projectos de conservação foram alvo de ataques brutais, resultando na destruição de instalações, na dispersão de técnicos e conservacionistas, e na paralisação de iniciativas que demoraram anos a ser erguidas. A Mariri Environmental Center foi atacada a 29 de abril, poucos dias após a investida à Kambako Safari, a 19 do mesmo mês. Em ambos os casos, houve feridos e desaparecidos, num silêncio ensurdecedor por parte das autoridades.
Face ao escalar da violência, a WCS – Wildlife Conservation Society – entidade não-governamental internacional com mais de um século de história na protecção da vida selvagem, e que fazia a cogestão da reserva, viu-se forçada a desmobilizar todo o seu efectivo na reserva. Fiscais, técnicos e membros das comunidades locais perderam os seus postos de trabalho e foram retirados da reserva. A decisão, embora trágica, foi inevitável perante a inoperância do Estado e a ausência de garantias mínimas de segurança. Com a saída da reserva, a organização pondera encerrar as actividades em Moçambique, deixando cerca de trezentos trabalhadores sem emprego.
Mas por que razão, precisamente agora, Mecula e a Reserva do Niassa se tornaram alvos prioritários? Para lá da conveniente explicação ideológica, há elementos que apontam para uma realidade mais sombria: a mineração ilegal – sobretudo de ouro – e os interesses económicos obscuros que ela movimenta. A exploração ilícita em zonas como Lupilichi, no Distrito do Lago, gera entre 30 e 40 quilogramas de ouro por mês, que escapam ao controlo fiscal e atravessam fronteiras, nomeadamente para a Tanzânia. Este comércio clandestino não só esvazia os cofres do Estado como, muito provavelmente, serve de fonte de financiamento para redes terroristas.
Não é a primeira vez que cidadãos estrangeiros são detidos por práticas ilegais dentro da reserva. Em 2017, dez tanzanianos foram capturados em plena actividade mineira. Mais grave ainda são os relatos insistentes sobre a cumplicidade de fiscais locais com redes criminosas. E mais grave do que isso é o manto de impunidade que cobre tudo isto, num País onde a mineração, legal ou não, é frequentemente associada a figuras com acesso directo ao poder político e económico. O silêncio das instituições face a tais denúncias não é sinal de prudência; é, sim, o retrato de um Estado capturado.
A falta de fiscalização efectiva e a fragilidade da presença estatal em regiões remotas como Mecula tornam estas zonas um terreno fértil para a pilhagem dos recursos naturais. Enquanto isso, as comunidades locais, abandonadas à sua sorte, enfrentam o desemprego, a fome e o medo. Sem alternativas económicas dignas, são facilmente aliciadas por grupos armados que prometem ganhos rápidos em troca de cumplicidade ou recrutamento.
O impacto da violência vai muito além da economia. A quebra acentuada nas matrículas escolares em Mecula – com um défice alarmante de 45,2% face às metas de 2023 – revela a dimensão da crise. As famílias fogem, as escolas esvaziam-se, e o direito à educação torna-se uma miragem para centenas de crianças. O ciclo é perverso: insegurança gera pobreza, e a pobreza, por sua vez, alimenta a instabilidade.
A tragédia de Niassa não é um episódio isolado, mas sim o sintoma de uma crise estrutural que aflige o norte de Moçambique. A confluência entre crime organizado, ausência do Estado e interesses inconfessáveis resulta num cenário onde o tecido social se desintegra e a esperança dá lugar ao desespero.
Perante este quadro, impõe-se uma intervenção decisiva e coerente. O Governo moçambicano tem a responsabilidade de restaurar a autoridade do Estado, com medidas que vão muito além da retórica. A segurança, sim, mas também o desenvolvimento local, o reforço da fiscalização, e a responsabilização de todos os envolvidos – mesmo (e sobretudo) os que estão próximos do poder. Continuar a fingir que se trata apenas de um problema de “insurgência” é não só irresponsável como perigoso. Pode, sim, se tratar também de sabotagem.
É igualmente imperativo que a comunidade internacional vá além do assistencialismo ocasional. O apoio técnico, financeiro e logístico deve focar-se em soluções duradouras, no empoderamento das comunidades e na reconstrução do capital humano e institucional.
A Província do Niassa tem todos os ingredientes para se afirmar como um modelo de desenvolvimento sustentável e conservação ambiental. Mas enquanto o ouro falar mais alto do que a lei, e os senhores do poder continuarem a agir nas sombras, será o terror – e não o progresso – a escrever o futuro desta terra.

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