A arte de fingir que se presta contas

EDITORIAL
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Vai ficando cada vez mais claro que a prestação de contas públicas, aqui na Pérola do Índico, transformou-se numa espécie de teatro institucional: os actores principais são sempre os mesmos, o labirinto é previsível, e o final, embora chocante, já não surpreende. Ontem geriram o orçamento fora do Estado e não foram punidos, hoje (2023) aumentaram a farra, são mais de 23,3 mil milhões de meticais, segundo contas rápidas feitas pelo Evidências, desviados de mais de 700 projectos de investimentos em sectores sociais, incluindo saúde e educação, para pagar despesas correntes com contornos sinuosos e o custo não podia ser arrepiante: São cerca de 23 hospitais de média capacidade que podiam ter sido construídos, ou então 500 salas para o ensino primário ou mesmo cobrir 70% do orçamento anual do Ministério da Saúde (2023). Depois há quem questionam a falta de sensibilidade dos médicos e profissionais de saúde.

O Tribunal Administrativo, órgão supremo de fiscalização das finanças públicas, acaba de emitir mais um “parecer com reserva” sobre a Conta Geral do Estado de 2023. Mas por trás da linguagem técnica, do formalismo jurídico e do esforço redaccional, esconde-se uma tragédia anunciada: a falência moral da gestão pública.

O que parece uma opinião técnica é, na verdade, uma tentativa política de validar o invalidável. Um gesto de quem, entre a espada da responsabilidade institucional e a parede da pressão política, escolhe deixar a porta entreaberta, como quem diz: “não podemos aprovar isto, mas também não temos força para reprovar”. A reserva, aqui, é mais do que técnica; é uma reserva de coragem, de verdade e de compromisso com a integridade pública.

O relatório revela um quadro grotesco. Por falta de recursos, os auditores só conseguiram trabalhar no sul do País. O centro e o norte que, ironicamente, concentram grandes projectos de exploração de recursos, ficaram à margem da fiscalização. Mesmo assim, 48% dos pedidos de informação feitos aos gestores públicos foram ignorados com desdém, como se o Tribunal fosse um mero observador e não um fiscal constitucional.

Apesar dessas limitações, o que foi descoberto já basta para escandalizar qualquer cidadão com um mínimo de decência: despesas sem contrato, fundos desviados, empresas públicas a funcionar no vermelho, receitas omitidas, património estatal mal gerido, e um uso abusivo dos recursos fora do circuito legal. O mais simbólico, porém, é que a conta aprovada pela Assembleia da República foi simplesmente desvirtuada, substituída por outra, mais conveniente para o ano eleitoral. Uma conta que permitisse festas, inaugurações e promessas fáceis, ainda que à custa da legalidade.

No meio deste cenário, o gesto de emitir um parecer com reserva é, paradoxalmente, um acto de sobrevivência institucional. É o modo educado de dizer que a corrupção deixou de ser uma exceção para tornar-se política de Estado. Que há gestores que se acham acima da lei, e pior, são protegidos por essa mesma lei deformada. Que não há plano de combate à corrupção que resista quando ignorar os auditores passa a ser rotina.

A mensagem está clara. O Tribunal Administrativo está a lutar com as armas que tem, mas precisa de mais poder, mais autonomia e mais respaldo político para cumprir o seu mandato. Porque a transparência não se implora; exige-se. E se o Estado continuar a fingir que presta contas, o povo continuará a fingir que confia.

Talvez tenha chegado o momento de deixar de fingir.

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