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Luca Bussotti
O trinómio democracia, justiça e paz deveria representar a essência de qualquer sociedade. Pelo contrário, estes três elementos estão a atravessar a sua pior crise na época moderna. A democracia assinala fortes regressões, inclusive em países de consolidadas tradições, Estados Unidos em primeiro lugar, mas também Alemanha, com a subida do partido neo-nazista do AfD; a justiça já se tornou uma quimera. Hoje, o rendimento médio por pessoa na África subsaariana é de 250 USD, ao passo que na América do Norte e na Oceania é de quase 4000 USD, ou seja, um rácio de 1:15. Na República sul-africana, os 10% da população mais abastada detém 65% da riqueza nacional, ao passo que Moçambique (segundo dados da World Inequality Data Base de 2024: https://wid.world/news-article/10-facts-on-global-inequality-in-2024/) situa-se no quarto lugar, em termos de injusta distribuição da riqueza produzida. Finalmente, a paz representa, hoje, uma perspectiva longínqua, ou seja, uma realidade que poderá ser alcançada, em várias partes do mundo, apenas com grandes dificuldades e esforços. Segundo dados da ACLED, 10 países estão numa situação de conflito extremo, incluindo três africanos (Nigéria, Camarões e Sudão). Mas Brasil também é considerado como país com uma situação conflituosa extrema, uma vez que, aqui – em 2024 – houve 39.000 mortos por homicídio, depois dos mais de 40.000 de 2023, sem contar com os mais de 6.000 cidadãos caídos devido à intervenção policial, segundo dados do Ministério da Justiça daquele país.
No caso africano, existem pelo menos quatro tipologias de países (salvo os abertamente autoritários, tais como República do Congo, Guiné-Equatorial, Ruanda, etc.) que estão a se configurar e reconfigurar, interpretando à sua maneira o dito trinómio: os que pautam pela completude destes três conceitos (democracia, justiça e paz); os que privilegiam a justiça social (e a paz), em detrimento da democracia; os que apostaram na democracia formal e na paz, sem considerar muito a justiça social; e, finalmente, os que estão numa crise estrutural, em que não há democracia, nem justiça, nem paz.
Provavelmente, Cabo Verde é o país africano que mais se pauta pela integração de democracia, justiça e paz. O elo fraco pode ser considerado a justiça, uma vez que, segundo dados já um pouco antigos (2019), os últimos disponíveis – o coeficiente de Gini deste país é moderadamente elevado. Entretanto, é expectável que ele tenha baixado um pouco ao longo dos últimos anos, o que faz de Cabo Verde um país verdadeiramente democrático, como demonstra a sua história eleitoral a partir da década de 1990, absolutamente pacífico e à procura de uma maior justiça social.
Parecem interessantes as experiências de vários países do Sahel, acerca da segunda tipologia aqui identificadas. Trata-se de países (e de lideranças) que, para muitos africanos, representam modelos a serem seguidos, devido à sua postura firme contra vários países ocidentais (França e Estados Unidos em primeiro lugar), julgados como exploradores de recursos preciosos e de políticas neocolonialistas. A referência principal, aqui, é a experiência de Ibrahim Traoré no Burquina Faso, mas também de Assimini Goita no Mali, ou Mamadi Doumbouya na Guiné-Conakry. Trata-se de lideranças que resultaram da queda de regimes anteriores mediante golpes, que estavam explicitamente a servir os interesses das grandes potências ocidentais e de suas multinacionais e de que as populações locais estavam cansadas e decepcionadas. Não restam dúvidas de que estas novas lideranças de governos militares estão à procura de melhorar as condições de vida dos seus concidadãos, assumindo posicionamentos até ousados, como no caso de Traoré, que está a expulsar diplomatas e investidores ocidentais, apostando no antigo dito dos anos Setenta e Oitenta, de “contar com as próprias forças”. Fora da componente simbólica e utópica destas medidas, não restam dúvidas de que o esforço de combate a antigas práticas corruptivas internas e à dependência do Ocidente do ponto de vista externo é sincero, gozando de uma larga simpatia popular. Entretanto, o que está em jogo é a componente democrática, a que estas novas lideranças parecem estar muito pouco interessadas. No caso da Guiné-Conakry, por exemplo, Mamadi Doumbouya já anunciou que as eleições previstas para este ano serão adiadas, sem ainda uma data marcada. A impressão que se tem é de que a aposta destas novas lideranças, concentradas no Sahel, seja a de um período (naturalmente indefinido) de transição, em que a consolidação das juntas militares siga paralelamente à melhoria das condições materiais de vida, de justiça social e de paz, sacrificando a dimensão da democracia. Que, provavelmente, pouco interessa às populações locais, se justiça e paz forem garantidas. Não é por acaso que a referência externa deste grupo de países é a Rússia de Putin, uma figura certamente pouco democrática, que comunga com este grupo de países africanos, além deste elemento, a inimizade com o Ocidente.
A África do Sul representa o melhor exemplo de aposta na democracia e na paz, em detrimento da justiça social. Os ensinamentos de Nelson Mandela, juntamente com outras figuras icónicas do renascimento africano, tais como Desmond Tutu e outros, evitaram um previsível banho de sangue depois do fim do apartheid. Este milagre foi acompanhado por uma aposta sincera na democracia, tão que, hoje, a África do Sul – segundo dados da Freedom House (https://freedomhouse.org/country/south-africa/freedom-world/2025) – tem uma pontuação de 81/100 dos indicadores sobre as liberdades, a de tipo político, em primeiro lugar. Entretanto, a justiça social representa o calcanhar de Áquiles deste país, uma vez que ele tem o coeficiente de Gini mais elevado do mundo, portanto é o país mais desigual de todos, com índices de violência extremamente altos.
Da última tipologia – com deficiências na democracia, na justiça e na paz – fazem parte muitos países. Trata-se de países que, de momento, estão mergulhados numa crise estrutural, não têm uma identidade nem um projecto nacional definidos, fora das retóricas pomposas e vazias das suas classes dirigentes, assim como fica difícil perceber o rumo do seu futuro próximo. Em termos gerais, são países em que um único partido sempre governou, tais como Angola, Moçambique, Zimbabwe, Tanzânia. Naturalmente, no meio deste grupo de países, as situações são diversificadas, entretanto os três elementos centrais aqui considerados estão em falta. No caso de Moçambique, por exemplo, o país já foi classificado como sendo abertamente autoritário (segundo The Economist Magazine), principalmente depois das eleições autárquicas de 2023 e as gerais de 2024. A este défice de democracia se associa uma justiça social fraca, tão que Moçambique é, hoje, um dos países mais desiguais do mundo, não se vislumbrando nenhuma estratégia eficaz para reduzir o gap entre os mais ricos e os mais pobres. Finalmente, Moçambique é um país em guerra, apesar de o governo nunca ter declarado tal condição. Guerra em Cabo Delgado desde 2017, guerrilha urbana difusa durante a crise pós-eleitoral de 2024, que levou a algumas centenas de mortes, e uma incipiente, nova frente no Centro do país, provavelmente devido ao descontentamento dos antigos guerrilheiros da Renamo em relação ao processo do DDR e à liderança de Ossufo Momade.
No caso das primeiras três tipologias de países, existe um projecto de nação futura. Podemos concordar ou não com ele, mas ele é visível e foi explicado às populações locais. No último caso, a grande questão é a ausência de um projecto. Uma vez que todos os três elementos do trinómio (democracia, justiça e paz) assinalam carências significativas, as suas classes dirigentes deveriam pelo menos clarificar qual (ou quais) deles escolherem como o eixo privilegiado de desenvolvimento. E depois proceder consequentemente. O que fica evidente é que governar países tão complexos e diversificados, como os do quarto agrupamento, desprovidos de democracia, de justiça social e de paz vai-se tornar um exercício desgastante, em que o mero autoritarismo vai triunfar, tendo como único objectivo a perpetuação do poder, em detrimento dos interesses das populações. É o que, mais ou menos, aconteceu nos últimos anos da União Soviética. Quando a justiça social, que representava o marco identitário daquele enorme país, deixou de ser garantida, devido à incapacidade de produzir e redistribuir riqueza e trabalho para todos, o país implodiu, passando para um novo modelo. Por isso, um país que não consegue garantir nenhum dos elementos do trinómio democracia, justiça e paz, tarde ou cedo é destinado a entrar numa crise definitiva, cujas saídas são, hoje, imprevisíveis.

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