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Moçambique tem hoje 2,4 mil milhões de dólares em reservas — menos do que em 2015. Mais de 60% da população vive com menos de 1,90 USD por dia. A dívida pública continua acima dos 90% do Produto Interno Bruto (PIB). O novo Presidente, Daniel Chapo, cancelou aviões, avalizou a demissão de conselhos de administração e chancelou a realização de auditorias em ministérios e projectos governamentais. O FMI elogiou, mas nos mercados, nas casas e nos pratos, a crise ainda é visível.
Evidências
Xai-Xai, 5h17 da manhã, numa quarta-feira de 2015. A fila já dá a volta ao quarteirão. Marcelina, 39 anos, enrola a capulana à volta da cintura e tenta distrair o filho mais novo com migalhas de bolacha água e sal.
“Hoje talvez chegue peixe fresco”, murmura antes de rematar “ontem só havia patinhas soltas e caras.”
A semanas que o carapau deixou de ser comprado ao quilo. A 60 meticais por quilo, tornou-se um peixe de luxo. “Agora pedimos os menores. Dividimos por três. Cada um come o seu pedaço e bebe água.”
O peixe, que antes dava para um almoço inteiro, passou a ser medido em bocados, conforme o número de bocas em casa.
E o mesmo aconteceu com as patinhas de galinha. Antes vinham em sacos de dois quilos. Agora, compra-se por unidade: quatro patinhas, uma para cada criança, e nada mais.
“A minha que ainda mama, fica com o leite do peito”, diz Marcelina. “E a energia? Compramos só para dois dias. Depois apagamos tudo.”
A crise não chegou como um trovão. Foi uma erosão contínua: começou no câmbio, atravessou os mercados, corroeu os salários — e instalou-se nas escolhas íntimas de cada casa.
O carapau, a patinha, o óleo em copos reciclados: esses se tornaram os novos indicadores da economia. Muito antes dos gráficos oficiais darem sinal.
A bomba-relógio das dívidas ocultas
Durante anos, as planilhas do Ministério da Economia e Finanças mostravam um país em crescimento: investimento público em alta, obras por todo o lado, e elogios técnicos de Washington a Maputo. Mas por trás dos gráficos havia um segredo guardado a sete chaves — até que rebentou.
Em abril de 2016, a agência Bloomberg revelou que o Governo moçambicano tinha contraído 2,2 mil milhões de dólares em empréstimos ocultos, garantidos pelo Estado, sem conhecimento do Parlamento nem dos principais doadores internacionais. As empresas por trás dos contratos — EMATUM, MAM e ProIndicus — justificavam os valores com promessas de pesca de atum, segurança marítima e vigilância costeira. Mas o mar continuava cheio de piratas e os cofres, vazios. “A confiança evaporou-se em 72 horas”, lembra um ex-funcionário sénior do Ministério das Finanças, hoje aposentado. “Foi como um corte de oxigénio. Ninguém sabia quem mais estava a mentir.”
O Fundo Monetário Internacional suspendeu imediatamente a cooperação com o país. O G14, grupo dos principais doadores, congelou os desembolsos. Países como Suécia, Holanda e Reino Unido cancelaram programas de apoio directo ao Orçamento do Estado. A Noruega suspendeu uma doação de 700 milhões de meticais destinados ao sector da saúde.
E Moçambique ficou só. Sem rede, sem margem, sem divisas. A moeda nacional, o metical, caiu 42% em poucos meses. O dólar disparou. Com ele, o preço do trigo, do combustível, dos medicamentos e, claro, do pão. Na prática, os mais pobres pagaram a factura de contratos que nunca assinaram. O impacto não foi apenas macroeconómico: foi visceral, diário, doméstico.
O impacto invisível: educação, salários, saúde
A crise não se mediu só em pontos percentuais. Mediu-se em silêncios. Silêncio nas escolas sem papel. Silêncio nos centros de saúde sem paracetamol. Silêncio nos gabinetes de professores que passaram a fazer contas antes de corrigir testes.
Em Lichinga, Manuel Rafael, 47 anos, é director de uma escola secundária com 812 alunos. “A folha do mês já não dava para tudo. Tínhamos de escolher entre comer e imprimir testes. Os alunos passaram a fazer exames em folhas usadas, com o verso em branco.”
A crise do câmbio corroeu salários sem que o recibo mudasse. Os aumentos não acompanharam os preços. Muitos professores passaram a dar aulas em três turnos. Outros, a vender recargas de telemóvel no recreio.
“Tornei-me fotógrafo de casamentos aos fins-de-semana”, confirma Manuel, com um sorriso amargo para depois sentenciar: “era isso ou cortar no almoço dos meus filhos”.
O Ministério da Educação perdeu espaço no Orçamento. Entre 2017 e 2020, Moçambique gastou mais com o serviço da dívida externa do que com todo o sistema nacional de ensino.
No Hospital Central de Quelimane, a médica Sílvia Taju, então em início de carreira, lembra-se de semanas inteiras sem antibióticos básicos.
“Receitávamos, mas sabíamos que o doente não ia encontrar. E não tínhamos alternativa no hospital. A única solução era esperar que alguém viajasse a Nampula.”
A suspensão da ajuda orçamental atingiu especialmente os sectores dependentes da despesa corrente: salários, material, logística. Com os doadores fora do jogo, os serviços públicos passaram a operar no limite. Mas o discurso oficial pouco mudou. A retórica de “resiliência” e “gestão prudente” dominava os relatórios. Nos bairros, a palavra era outra: improviso.
O retorno: o FMI e os remendos
O FMI voltou, mas com extintores pequenos. Durante a pandemia de COVID-19, Moçambique recebeu um pacote de emergência de 309 milhões de dólares. Foi anunciado como medida para reforçar a saúde pública, mitigar o impacto social da crise e estabilizar a economia.
Na prática, o valor mal chegou para cobrir três meses da folha salarial do Estado. “Só a função pública custava 90 milhões de dólares por mês. Isso sem contar com compras urgentes de medicamentos ou apoios à agricultura”, explica uma fonte do Banco de Moçambique. “O défice global era de quase mil milhões. O apoio do FMI foi importante, mas era como tentar apagar um incêndio florestal com um balde de água.”
As condições do empréstimo eram brandas, mas o gesto do Fundo vinha com recados velados: necessidade de reformas estruturais, contenção da despesa e reforço da transparência. Numa frase: austeridade com outro nome.
Em 2022, o país assinou um novo programa trianual com o FMI — o Extended Credit Facility (ECF) – no valor de 456 milhões de dólares. O montante, distribuído em tranches condicionadas a metas macroeconómicas, representava menos do que o País havia pago em juros da dívida nos dois anos anteriores.
O novo programa previa reformas administrativas, contenção salarial e ajustes no sistema de subsídios. Três revisões foram cumpridas com nota positiva. Mas a quarta travou — já durante os primeiros meses do Governo de Daniel Chapo, que pediu renegociação.
“O problema não é o FMI voltar. É voltar com a mesma receita e esperar um resultado diferente”, diz Carlos Mahalambe, economista e investigador em Maputo. “A crise actual não é apenas financeira. É de confiança, de modelo, de quem decide para quem.”
Chapo entra em cena: reformas ou reciclagem?
Daniel Chapo chegou ao poder com o discurso certo na hora certa: ruptura, transparência, moralização. Um contraste evidente com os anos em que a palavra “reforma” servia apenas para justificar cortes.
Nos seus primeiros cinco meses de mandato, o novo Presidente disparou acções que surpreenderam até os mais cépticos:
– Cancelou a polémica compra de dois aviões para a LAM, no valor de 38 milhões de dólares.
– Demitiu todo o Conselho de Administração da companhia aérea.
– Lançou auditorias funcionais em nove ministérios.
– Anunciou critérios de mérito para a função pública, com exames públicos de acesso e promoções com base em desempenho.
“Não podemos continuar a fingir que governamos enquanto o País paralisa por dentro”, disse num dos primeiros Conselhos de Ministros transmitidos pela televisão pública. O gesto (inédito) foi lido como um sinal de viragem.
Este mês Bo Li, Sub-Director-Geral do FMI, visitou Maputo e elogiou as reformas. “É um passo corajoso e necessário”, declarou após uma reunião com Chapo. A revisão do programa do FMI, suspensa desde Dezembro, foi reactivada. As conversas com parceiros bilaterais também ganharam novo fôlego.
Mas fora do círculo diplomático, o entusiasmo foi mais contido. “O que Chapo fez é importante, mas ainda estamos a viver com o esqueleto de um Estado falido”, diz Eunice Matavele, activista e economista de Nampula. “A dívida está lá. As escolas continuam sem papel. E os hospitais, sem anestesia.” Nas redes sociais, as críticas alternam entre cepticismo e ironia. “Mudou o condutor, mas o autocarro ainda não tem travões nem combustível”, escreveu um usuário no X (antigo Twitter).
O futuro do prato
Na periferia de Nampula, uma criança segura uma patinha de galinha como se fosse um brinquedo. “Hoje deu para comprar cinco”, diz a avó, Maria Ussene, 62 anos. “Uma para cada neto. A mais nova ainda mama, fica com o leite.” Ela sorri sem dentes, mas com orgulho. A vida ensinou-a a não desperdiçar vitórias pequenas.
O País também sorri, nas estatísticas. As reservas internacionais recuperaram ligeiramente: 2,4 mil milhões de dólares, ainda abaixo dos níveis de 2015. A inflação abrandou, e o metical estabilizou. O FMI voltou, os doadores regressaram à mesa. E o novo Presidente fala em recomeço, mas nos mercados, nas escolas e nos hospitais, pouco mudou. “O País cresceu, sim, mas não cresceu até nós”, resume Eunice, a economista. “Ainda estamos a pagar dívidas que não fizemos, com um sistema que não nos serviu”.
Nas esquinas, o preço do carapau ainda flutua, conforme o humor do dólar. As patinhas já não vêm em sacos. O óleo continua a vir em copos reciclados. O professor ainda imprime testes no verso de panfletos. E nas farmácias, a ausência de antibióticos é explicada com um gesto resignado: “não há”.
Moçambique sobreviveu:
– À implosão da confiança externa;
– Ao colapso cambial;
– À pandemia;
– À guerra em Cabo Delgado.
Sobreviveu com resiliência, criatividade e sacrifício invisível. Agora, com novos ventos em Maputo e velhos credores de volta, resta saber se a história mudou de capítulo ou apenas de rótulo. A pergunta, afinal, permanece: Vai mesmo mudar? Ou é só mais um ciclo de relatórios, cortes e aplausos técnicos: enquanto dividimos o carapau por três?

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