O processo de pacificação em Angola e as possíveis lições para Moçambique

OPINIÃO

O dia mais sombrio da história de Angola independente é 27 de Maio de 1977. Nesse dia, o Governo de Agostinho Neto e do MPLA deu o pior de si, mostrando uma cara terrível. Tratou-se de uma resposta a uma tentativa de um golpe de Estado, liderado pelo antigo ministro do Interior, Nito Alves, que tinha sido expulso a 21 de Maio do partido e do Governo e que reagiu, juntamente com outros seus simpatizantes, ocupando a cadeia de Luanda para libertar outros apoiantes, e tomando temporariamente o controlo da emissora radiofónica nacional.

Com o apoio da tropa cubana presente em Angola, Agostinho Neto ordenou – ainda não se sabe até que ponto com plena consciência do seu impacto – uma verdadeira chacina que foi muito além da punição extrema contra Alves e as figuras que lideraram a tentativa de golpe. Até hoje o número de vítimas de 27 de Maio continua indefinido, mas as diferentes fontes (entre as quais a Fundação 27 de Maio) apontam para 30.000 a 50.000 pessoas executadas de forma sumária naquele fatídico dia. Em consideração do número elevadíssimo de vítimas, a maioria delas não tinha nenhum relacionamento com a tentativa de golpe, mas caíram na mesma sob a violência brutal do regime de Luanda.

Em ocasião do aniversário desta data infausta, o Presidente, João Lourenço, cumpriu passos decisivos para que a pacificação entre os angolanos que naquela altura estiveram dos dois lados se efectivasse. Acima de tudo, Lourenço pediu desculpas públicas e perdão às famílias enlutadas, consoante uma postura de arrependimento real e de humildade nem sempre comum entre os chefes de Estado africanos. Em segundo lugar, prometeu levar a cabo um rápido processo de localização dos restos mortais e ossadas das vítimas, o que agradou os familiares e a própria Fundação 27 de Maio, na esperança de finalmente conseguir sepultar dignamente seus entes queridos. Silva Mateus, presidente da dita Fundação, apontou que o último passo seria a abertura dos arquivos ainda secretados da DISA (o SISE angolano) para apurar a verdade sobre este episódio terrível da história de Angola e de toda a África.

Entretanto, Lourenço criou, em 2019, a Comissão de Averiguação e Certificação de Óbitos das Vítimas dos Conflitos Políticos, com o objectivo explícito de homenagear todas as vítimas das lutas políticas angolanas desde 1975 até 2002 (quando a guerra civil cessou, com a morte de Savimbi), e com a finalidade mais implícita de estabelecer verdades históricas até hoje incómodas para muitos dos protagonistas de ontem e de hoje, sobretudo do MPLA. Um caminho difícil, que em 2020 tinha levado as organizações da Plataforma 27 de Maio a abandonar a Comissão, devido às resistências em abrir os arquivos da DISA por parte do Governo, ameaçando levar o caso junto às Nações Unidas. Os recentes pronunciamentos de Lourenço parecem dar novo fôlego aos trabalhos da Comissão, na expectativa de todos os intervenientes saírem dela com mais verdades apuradas e mais vontade de pacificar o país de antigas feridas, que ainda estão a sangrar.

Angola não é o único país africano em que, depois de um conflito civil ou de episódios de assassinatos de massa, escolheu a via de uma comissão de verificação da verdade para fins de pacificação nacional. A África do Sul de Mandela fez a mesma coisa depois do fim do Apartheid, assim como o fez o Gana, a Serra Leoa, a Libéria, em parte o Ruanda.

Moçambique, que sofreu uma guerra civil prolongada e sangrenta, é um dos poucos países a não ter levado a cabo nenhuma iniciativa do género…Provavelmente as duas partes que protagonizaram a guerra civil, Frelimo e Renamo, se sentiram satisfeitas com a assinatura dos Acordos Gerais de Paz em Roma; entretanto, tais Acordos se revelaram repletos de limitações e, em certa medida, não executados. Por exemplo, o processo de integração num exército nacional da tropa e dos oficiais da Renamo continua, até hoje, a representar o cerne do problema para os homens que se juntaram a Nhongo. Os oficiais da Renamo assumiram, diferentemente daquilo que aconteceu em Angola com os da Unita, papéis pouco mais que cosméticos na configuração das novas forças armadas ou da polícia de Moçambique, ficando completamente fora do SISE, que representa o outro ponto de discórdia, que o próprio Dhlakama não conseguiu resolver nas suas negociações com Nyusi.

Moçambique é hoje um país não só com duas guerras – a “tradicional” contra a Renamo ou suas partes, e a “nova” em Cabo Delgado -, mas, sim, com conflitos latentes também do ponto de vista de uma história que é preciso voltar a escrever, pois a narração oficial é objectivamente lacunosa e parcial. Talvez possa ser por isso que os ânimos de muitos moçambicanos ainda andam revoltados, com uma sede de verdade e de justiça que não está encontrando uma satisfação pacífica e comum a toda a nação. E que poderia em parte ser ultrapassada mediante uma comissão ad hoc para repensar a história recente do país, com o objectivo de uma pacificação que, antes de desaguar no perdão, tem de passar pelo estabelecimento da verdade.

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