Moçambique só coopera se o Líbano salvar interesses da família presidencial

POLÍTICA
  • Explosão no porto de Beirute: Governo acusado de estar a chantagear o Líbano
  • Investigadores acreditam que Moçambique é a chave para esclarecer incidente
  • Mas exige-se “ajuda libanesa em assuntos que constrangem o seu actual presidente”
  • Dono da Fábrica de Explosivos é sócio de um dos filhos do PR e da Monte Binga
  • Parte do produto que explodiu foi fornecido a terroristas na Síria

Dois anos e meio depois da enorme explosão que sacudiu a capital do Líbano, Beirute, causando a morte de mais de 200 pessoas, as investigações sobre o incidente seguem em passo lento, tudo porque as autoridades moçambicanas estariam, literalmente, a chantagear o Líbano, ao condicionar a sua colaboração a uma ajuda libanesa em assuntos que “constrangem” o Presidente da República, Filipe Nyusi. Tudo indica que estaria a ser colocada em cima da mesa uma ficha limpa sobre o Caso das Dívidas Ocultas. Curiosamente, os donos da fábrica usada para encomendar o nitrato de amónio, cuja parte significativa terá sido supostamente usada no fabrico de explosivos na Síria, têm ligações comerciais com um dos filhos do Chefe do Estado, que em 2013, altura em que foi feita a remessa, desempenhava as funções de ministro da Defesa Nacional e mandou criar a Monte Binga, empresa que participava na estrutura accionista da Fábrica de Explosivos de Moçambique. A conclusão é da investigação exclusiva do jornal francês Le Point, publicada este Domingo.

Evidências

Moçambique continua a ser destaque a nível internacional pelos piores motivos. Na sua mais recente investigação exclusiva, com o título “Explosion du port de Beyrouth, que sait vraiment le Mozambique?”, qualquer coisa como “Explosão do porto de Beirute, o que sabe realmente Moçambique?”, o conceituado jornal francês Le Point refere que à medida que o tempo vai passando crescem as suspeitas de envolvimento de pessoas do alto escalão do governo moçambicano na compra do nitrato de amónio que explodiu em Beirute, capital do Líbano, em  Agosto de 2020.

Segundo o Le Point, mais de dois anos depois dos acontecimentos, perguntas básicas permanecem sem resposta: por que esse nitrato de amónio estava no porto desde 2013? Sua presença teria alguma relação com a guerra civil que destroçava a Síria? A pesquisa feita por Le Point sugere que as respostas para essas perguntas podem ser encontradas bem longe de Beirute, em Moçambique.

O referido nitrato de amónio, usado como fertilizante e na fabricação de explosivos e munições,  foi encomendado em 2013 à Gieorgia pela Fábrica de Explosivos de Moçambique, mas que nunca chegou ao país e explodiu no porto de Beirute. Várias linhas de investigação apontam que o explosivo pode ter sido “provavelmente usado em benefício de traficantes que abasteciam os beligerantes do conflito sírio, com o consentimento de altos funcionários em Moçambique”.

Segundo escreve a publicação, este carregamento nunca deveria ter estado em Beirute. Chegada em 2013 da Geórgia, tinha como destino oficial Moçambique, mas o nosso país não fez nada para recuperá-la durante os seis anos anteriores à explosão, e posteriormente recusou todos os pedidos de assistência jurídica mútua feitos pelo Líbano.

Só no ano passado, acredita-se que seja no calor dos processos das dívidas ocultas, é que as autoridades moçambicanas aceitaram colaborar, contudo impondo como condição a protecção do actual Presidente da República de alguns assuntos que supostamente o constrangem naquele país árabe.

“Le Point tem o cuidado de não concluir. No entanto, despachos diplomáticos a que tivemos acesso dão conta de que o actual governo de Moçambique tem informação que até agora se recusou a partilhar com a justiça libanesa, apesar de vários pedidos de assistência jurídica mútua. E Moçambique está literalmente a chantagear o Líbano, ao condicionar a sua colaboração a uma ajuda libanesa, em assuntos que constrangem o seu actual presidente, Filipe Nyusi”, lê-se num dos trechos da investigação.

No texto, não está claro a que assuntos constrangem o actual Presidente da República, Filipe Nyusi, no Líbano, contudo tudo indica que tem a ver com a contenda com o Grupo Privinvest, com quem trava um forte embate judicial na praça de Londres, onde, em sua defesa, altos executivos do conglomerado libanês defenderam ter desembolsado pagamentos em seu nome.

Segundo observadores em Maputo, as autoridades terão tentado um acordo para dissimular o suposto envolvimento de Filipe Nyusi no caso das dívidas ocultas.

Do envolvimento do MDN à proximidade da família Nyusi à empresa importadora

A segunda das suas explosões rasgou literalmente a atmosfera com uma potência equivalente a um décimo da bomba nuclear de Hiroshima, devastou a capital a várias centenas de metros do foco localizado na zona portuária de Beirute.

Não era para menos, estavam armazenados há mais de seis anos mais de 600 toneladas de nitrato de amónio. A empresa importadora, Fábrica de Explosivos de Moçambique, tem fortes relações com a família presidencial, por via de ligações comerciais entre o então representante da Fábrica de Explosivos, Nuno Vieira, e Jacinto Nyusi, filho mais velho do Presidente Filipe Nyusi.

Ambos têm, desde 2012, uma sociedade numa empresa ligada a marketing e eventos, denominada The Gafe. Vieira viria a obter nacionalidade moçambicana em 2015, apenas alguns meses depois de Nyusi se tornar presidente, e ele tem permanecido perto de sua família.

Mas as ligações estranhas não param por aí. Em 2012, um pouco antes de se tornar sócio do Filho de Nyusi, já fazia negócios com o pai, enquanto ministro da Defesa. Vieira teve acesso ao núcleo castrense e passou a ser parceiro do Estado. Tornou-se sócio da Monte Binga (empresa do Ministério da Defesa) e dos serviços secretos do país, tendo fundado a fábrica Munições Moçambique (Mudemol), um fabricante de munições e explosivos estatal que fornecia aos militares moçambicanos, mas que acabou sendo encerrada sem qualquer explicação.

Ligações do carregamento moçambicano ao terrorismo na Síria

Em 2020, o Projecto de Investigação ao Crime Organizado e Corrupção, do original Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP), na língua inglesa, teria publicado um relatório sobre a explosão do nitrato de amónio no Líbano, denunciando que a Fábrica de Explosivos de Moçambique (FEM) já foi investigada por suspeitas de fazer parte de uma rede que apoia terroristas.

Esta acusação ganha corpo quando se tem em conta que, no caso concreto desta compra, a FEM não reclamou, pelo menos publicamente, quando viu a sua importação não chegar, afirmando que fez outra compra.

Alia-se, também, a isto o facto de o Governo ter, nos dias seguintes à explosão, declarado desconhecer essa importação. Ao OCCRP, a FEM, que produz explosivos comerciais, disse que tinha encomendado o nitrato de amónio, mas não tentou recuperá-lo após a apreensão do Rhosus.

O nitrato de amónio pode ser usado como fertilizante ou para o fabrico de explosivos e a quantia encomendada pela empresa moçambicana encontrava-se armazenada no porto de Beirute, depois de o navio em que era transportado, de acordo com autoridades libanesas, ter sido apreendido por falta de pagamento e por violação de leis marítimas, por parte da companhia proprietária do cargueiro.

75% da investigação está concluída

Uma fonte próxima do processo explicou ao Evidências, há cerca de um ano, que as autoridades libanesas apuraram que apenas um terço do que foi carregado na Geórgia chegou ao Líbano e outros dois terços podem ter ido para o Estado Islâmico, uma organização jihadista que opera sobretudo no Médio Oriente, mas que já levou a cabo atentados terroristas em vários pontos do mundo, e já tem ramificações que estão por detrás de acções terroristas em Cabo Delgado.

Esta abordagem alinha com as conclusões do relatório do FBI, órgão investigador da Polícia Federal dos Estados Unidos, que em Outubro de 2020 constatou que nem todo o nitrato de amónio embalado explodiu, mas apenas 552 toneladas, um quinto do que o navio carregava.

Não se sabe o que aconteceu com o resto, mas, de acordo com as autoridades libanesas, pode ter sido roubado antes da explosão. Aliás, são citadas fontes a afirmar que o nitrato de amónio “roubado” foi contrabandeado para a Síria e usado pelo governo do presidente Bashar al-Assad como explosivos.

Há também quem defenda que a Síria foi, desde o início, o país receptor do embarque de explosivos. Uma investigação jornalística indicou que três empresários sírios ligados ao governo de Bashar Al-Assad podiam estar por detrás do carregamento e que a empresa de Moçambique só foi usada como fachada.

Aliás, o relatório de HRW também não descarta a possibilidade de Beirute ter sido o destino primário, apesar da confirmação da compra pela FEM, em Moçambique.

“Levantam-se questões sobre se o nitrato de amónio estava destinado a Moçambique como os documentos de embarque da Rhosus (navio) declararam ou se Beirute era o destino pretendido para o material”, até porque, “na verdade, o Rhosus foi alugado para transportar cerca de 160 toneladas de equipamento explosivo quando já estava sobrecarregado e não equipado para este carregamento”.

A Fábrica de Explosivos de Moçambique tinha comprado os explosivos por intermédio de uma empresa intermediária, Savaro Limited, sediada no Reino Unido, no mesmo endereço das empresas pertencentes a Haswani e os irmãos Khorio, sancionados pelos Estados Unidos por serem próximos do presidente sírio. Quer isto dizer que Savaro era apenas um disfarce para esconder os verdadeiros compradores dos explosivos.

São perguntas que só podem ter respostas na investigação da justiça libanesa, mas sem a cooperação de Moçambique parece ser ainda difícil, embora até ano passado apontava-se que 75% da investigação estava concluída.

Nos dois relatórios publicados sobre o incidente, o papel de Moçambique, que no princípio assumiu uma postura contraditória, não é destacado. Desde a altura dos acontecimentos, o Governo nunca confirmou que o país era o destinatário do nitrato de amónio. Tanto a empresa gestora do porto da Beira, assim como o Ministério dos Transportes e Comunicações negaram ter algum conhecimento do assunto, apenas a FEM, empresa importadora, confirmou o destino à Beira, depois de muitas especulações.

Facebook Comments