Homens continuam a “fugir” rastreio por medo de toque no ânus

SAÚDE SOCIEDADE
  • Estereótipos e falta de informação dificultam o tratamento do cancro da próstata
  • Especialista esclarece que procedimento é usado apenas em pacientes suspeitos
  • Homens não aderem por terem vergonha, medo e receio de ter um dedo no recto
  • Cancro da próstata é já a segunda maior causa de mortalidade masculina

Dados do Ministério da Saúde sobre o cancro de próstata expõem o quadro negro da doença no país. Só no ano passado (2021), foram registados cerca de 1 700 novos casos, num ano em que a doença foi o quarto maior motivo de internamento no Hospital Central nos serviços de urologia, tendo sido a segunda maior causa de óbitos no mesmo serviço e este é o segundo tumor mais comuns nos homens, o quinto mais mortal no mundo, ficando atrás apenas do cancro de pele. Mas, nem com isso a consciência sobre esta doença cresce entre os homens, porque, segundo urologistas e activista sociais, persistem estereótipos e falta de informação, aliado ao facto de campanhas de sensibilização que banalizam o homem, gerando um efeito inverso. O receio do tacto rectal é outra causa que faz com que muitas vezes os pacientes cheguem ao hospital já em fase avançada.

Renato Khau

Paulo Matimbe é uma das vítimas da doença. Foi forçado a abandonar o trabalho na Beira, província de Sofala, para receber assistência hospitalar em Maputo. Conta que levou tempo para descobrir a enfermidade, pois primeiro procurou assistência no Hospital Militar da Beira por não conseguir urinar, mas, quando explicou, o médico  receitou-lhe comprimidos para diabetes, afirmando que fora isso ele não tinha nada, e que tinha apenas de controlar os níveis de açúcar no sangue. Um erro que lhe custou mais dias de dor, afinal o seu estado de saúde só piorava.

Por iniciativa própria partiu para cidade de Maputo, para junto do Hospital Central de Maputo fazer outros exames, porque para além dos bloqueios já sentia dores ao urinar. Erradamente, o médico que o atendeu disse que ele estava desenvolvendo diabetes, tendo lhe receitado outros comprimidos para diabetes. Mesmo assim só piorava.

Já em 2019, insatisfeito com o cenário, retornou a Beira, onde trabalhava, já com sinais de obstrução da uretra. Na terceira vez a se dirigir à um hospital, onde sem muita demora foi submetido a exames médicos, e foi através do toque rectal que veio a confirmação que tinha o cancro da próstata.

“Eu não fazia ideia do que era isso. Cheguei a pensar que fossem pedras nos rins, mas o médico disse que não era isso”, lembra.

O diagnóstico tardio deixou sequelas

Sem que passasse uma semana após o diagnosticado, Paulo conta que durante uma noite o seu estado passou de mau para péssimo, com a bexiga excessivamente cheia e dilatada conta que precisou ser levado apressadamente pelos colegas ao hospital. Chegado lá, o médico colocou-lhe imediatamente uma algália para extrair a urina acumulada na bexiga.

Por conta deste cenário, teve que voltar a Maputo para, desta vez, junto da sua família, iniciar com o tratamento do cancro da próstata. A sua condição física e estado avançado do cancro o impediram de passar por uma cirurgia. “Fiquei sabendo o que é esta doença exactamente quando tive”, lembra.

Após passar cerca de dois anos sendo assistido pelo médico urologista Nelson Tchamo, foi no final do ano passado que foi transferido aos serviços da oncologia, onde actualmente faz tratamento.

Desde que foi diagnosticado com cancro da próstata, conta que o seu estilo de vida sofreu mudanças, tanto a nível social, como sexual. Sua alimentação é baseada em produtos integrais e não pode perder noites. Sexualmente, ele afirma que “já não é a mesma coisa, mas, mesmo assim, estou grato por ter uma esposa que entende a situação”.

O temido tacto rectal afasta homens dos hospitais, mas não todos

Tal como Matimbe, muitos homens chegam ao hospital praticamente já com a doença em fase avançada, primeiro pelo facto deste género ter menor consciência sobre cuidados de saúde, comparativamente às mulheres, mas também devido a negligência, aliada ao receio de ser submetido ao tacto rectal.

Eugénio Tivane, de 63 anos de idade, residente no bairro Hulene, decidiu fazer diferente. Depois de ouvir falar da doença que afecta homens adultos a partir dos 40 anos, decidiu começar a fazer rastreio de forma regular.

“Eu fui ao hospital fazer o rastreio e não tenho vergonha disso. É a minha saúde e em nenhum momento me senti complexado em ver o médico fazer o exame rectal”, desmistifica, relatando a experiência de um amigo que teve a doença, mas por conta da vergonha não conversava com ninguém e o cancro evoluiu, deixando-lhe imobilizado.

“A maioria dos doentes é assintomática”, explica o urologista

O médico residente de urologia no Hospital Central de Maputo (HCM) e docente do Instituto Superior de Ciências de Saúde (ISCISA), Gomes Cumbe, explica que o cancro da próstata é um tumor maligno que causa crescimento anormal do órgão.

Quanto à manifestação da doença nos pacientes, Cumbe diz que a maioria dos doentes é assintomática, mas pode desenvolver a necessidade frequente de urinar, mas quase sempre com intermitência, ou seja, “ele urina e pára, e volta a fazer força para urinar, e mesmo assim, depois de urinar, vai ter a sensação de bexiga não vazia”.

O médico explica ainda que com o avanço da doença o paciente “apresenta urina ou esperma com sangue, disfunção sexual eréctil (perda de erecção) e retenção urinária, e numa fase mais grave os doentes ficam magros, fracos, com pernas bambas e dores ósseas (na coluna e região da bacia)”.

Quando questionado sobre a possibilidade de se fazer um auto-exame, tal como no cancro da mama, o médico disse que “infelizmente para o cancro da próstata não há um auto-exame. A única coisa que o paciente pode fazer é vigiar o período de rastreio ou prestar atenção nos sintomas que possam surgir”.

Embora persistam muitos medos, estereótipos e até desinformação, o médico explica que há uma crescente consciência sobre a doença, razão pela qual, comparativamente aos anos anteriores, há um aumento do número de pessoas que buscam fazer o rastreio de forma voluntária, mas lamenta o facto de muitos destes pacientes procurarem o médico já com o cancro desenvolvido ou já no estágio grave.

“Eles não vêm porque sabem que chegada uma idade devem fazer o rastreio, mas sim quando já precisam fazer força para urinar. E muitos aparecem quando já têm urina e esperma com sangue e emagrecidos”, sustenta.

Cumbe acredita que as campanhas de sensibilização, como o Novembro Azul, contribuem para que mais pessoas tenham consciência da doença e por via disso busquem informações sobre o cancro, o que contribui para o aumento do número dos que aderem ao rastreio.

“Mas existem ainda casos de pessoas que não o fazem simplesmente por terem vergonha, medo ou simples receio de ter um dedo tocando o seu recto”, reconheceu o médico, esclarecendo que não são todos os pacientes que são submetidos ao toque rectal. Este procedimento é destinado apenas a pacientes com maior suspeita de terem a doença.

Conheça as causas de um inimigo silencioso

O consumo excessivo de sal, o sedentarismo, a suplementação alimentar a base de cádmio e magnésio aumentam significativamente as chances de um indivíduo desenvolver o cancro da próstata.

Os pacientes já diagnosticados com o cancro da próstata obedecem uma escala de 0 à 10 em função do grau de gravidade da doença, sendo que os que estiverem até na escala 6 ainda são passíveis de ser operados, de acordo com a sua condição física para garantir a sua recuperação.

“Os na escala 7 são considerados intermédios e toda intervenção hospitalar requer uma autorização da equipe médica junto do paciente e sua família e; os na escala 8, 9 e 10 não são operados. Estes são submetidos a vários tratamentos e em alguns casos são submetidos a radioterapia, que é semelhante a quimioterapia”, explica Cumbe.

“Infelizmente, há campanhas de sensibilização que banalizam o rastreio”

De acordo com o activista social Gilberto Macuácua, a fraca adesão de homens ao rastreio do cancro da próstata é que faz com que muitos casos resultem em mortes, associadas ao diagnóstico tardio.

Activista Social focado no Engajamento de Homens e Rapazes na Promoção da Igualdade de Género e combate a VBG, Macuacua destaca que muitas vezes a relutância está relacionada à pressão social que o homem sofre para que seja visto como másculo e viril, deixando em segundo plano a sua saúde.

“Os homens não vão aos hospitais porque têm vergonha ou porque não querem ser vistos como fracos, não querendo se submeter a procedimentos que, na sua percepção, atentam contra a sua masculinidade, neste caso o toque no ânus. Um simples toque no recto pode ser traduzido como agressão a sua condição fisiológica, fazendo com que mesmo que tenha algum problema ou alguma anomalia na sua saúde procure manter-se na posição de que é forte e não vai atrás do devido tratamento e isso aumenta a vulnerabilidade”, sustenta.

O activista diz que qualquer anomalia ligada à saúde sexual do homem faz com que este procure omiti-la. “Se perguntar se ele está bem ou não ele sempre dirá que está bem, mas sabendo que não está”.

Refere que diversas vezes o homem tem procurado a medicina tradicional através de curandeiros e outras formas que estão fora do sistema nacional de saúde antes de ir à unidade sanitária, enquanto isso a doença vai se tornando grave.

“O homem pensa sempre que tem tudo sob controle e não se abre para ninguém e não tem abertura de falar sobre si e do que o inquieta para outras pessoas, muitas vezes sofrendo calado”, explanou Gilberto Macuacua.

Aponta as deficiências existentes na comunicação social e mídia na forma como tratam as questões ligadas ao rastreio do cancro da próstata. Segundo diz, é muito mal feita, pois não segue o que chama de comunicação positiva.

“É só ver as publicidades que são mostradas quando chega Novembro, mostram um dedo que tem que entrar no ânus. Essa comunicação não ajuda muito, banaliza e acaba tornando difícil este homem procurar os serviços de saúde”, observa.

Estereótipos elencados pelo activista social Gilberto Macuacua convergem com os dados tornados públicos pelo MISAU recentemente. As altas taxas de mortalidade associadas ao cancro da próstata em Moçambique estão ligadas à falta de consciencialização pública sobre o cancro da próstata, a falta de treinamento dos profissionais de saúde para reconhecer atempadamente os sinais e sintomas do cancro, a falta de estruturas de saúde fora dos grandes centros urbanos, a falta de serviços de rastreio e a falta de acesso à intervenção médica especializada.

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