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O legado do rei-Azagaia

Luca Bussotti

Se a morte é igual para todos, nem todas as mortes são iguais. Como escreveu Paulina Chiziane, morreu um rei, o rei da música rap moçambicana e Lusófona,  mas também o rei dos marginalizados, dos desafortunados, numa palavra do “povo”. E um rei tem de ser homenageado dignamente. O caso do Azagaia representa um unicum na história de Moçambique. Não se recorda uma participação popular tão grande e sobretudo espontânea em seguida a morte de um compatriota. Só no caso de Samora Machel, provavelmente, houve uma mobilização parecida, com a diferença de que Samora era presidente da República, e portanto teve todo o aparato do estado a trabalhar na organização do seu evento fúnebre. O que no caso do Azagaia não aconteceu.

Azagaia, podemos dizer, não era ninguém. Ninguém que ocupasse cargos institucionais, políticos, nem era homem de negócios, portanto não detinha nenhum poder económico. Ninguém que pudesse decidir sobre os destinos do país, de nenhuma forma possível. Entretanto, tornou-se um rei de uma massa de pessoas com ideias diferentes, da Frelimo e da Renamo, do MDM e de outros partidos menores, cristãos e muçulmanos, com sempre o “povo” por detrás dele.

Apesar de tentativas de silencia-lo e desacredita-lo mediante acusações baseadas no suposto uso de suruma, o que, além da sua música, lhe garantiu notoriedade eterna foi a sua postura ética. Sempre coerente com aquilo que andava cantando nas suas canções, nunca ostentando uma riqueza fora do normal, inclusivamente porque não a tinha, e sobretudo continuando a indignar-se diante das injustiças que cada vez mais se fazem sentir em Moçambique.

Era o Azagaia uma das poucas reservas morais de Moçambique. Agora, com um país eticamente além de artisticamente mais pobre, fica o legado. Um legado que está na mesa do simbolismo político nacional, e que alguém vai tentar colher. Dificilmente este alguém será quem pertence às forças governamentais, que Azagaia criticou duramente ao longo da sua vida, e que parecem estar em dificuldades até diante da sua morte. Funerais de Estado? Posicionamentos explícitos do Governo no sentido de agradecimento ao maior músico moçambicano contemporâneo? Um dia de luto? Nada disso parece estar nas intenções das autoridades moçambicanas, que, portanto, limitar-se-ão a gerir uma situação desagradável, procurando manter a ordem pública, como se costuma dizer.

Mas será que Renamo, MDM e outras forças políticas de oposição irão conseguir agarrar-se ao legado do Azagai, e transformar a sua palavra de ordem, do Povo no poder, num programa político inovador e radical?

Nesse caso também as dúvidas são muitas…na verdade, até hoje quem ficou com o legado do Azagaia é o povo, os milhões de jovens e menos jovens que o acompanhavam e que viam nele uma referência consolatória a uma situação cada vez mais complicada. O que está certo é que o legado do rei-Azagaia continuará como memória coletiva de uma consciência popular inconformada e insubmissa, que procurará na sua música as razões para um comprometimento ético, social e político diferente do cenário actual.

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