Luca Bussotti
Os tempos que estamos a vivers são complexos, diria Edgar Morin. E as razões são várias, assim como as consequências: crise das ideologias tradicionais, individualização e ao mesmo tempo massificação da sociedade e dos processos culturais e políticos, baixa qualidade da classe política internacional, que não consegue responder aos desafios da contemporaneidade, ao não ser com medidas simplistas, portanto ineficazes.
Isso é visível em boa parte do mundo ocidental, aquele mundo que tem a democracia como seu mito fundador e que quis espalhar tal mito e tal maneira de governar para todo o planeta. Os resultados foram muito aquém das expectativas. Hoje, segundo dados da Intelligence Economic Unit, apenas 24 países podem ser classificados de democracias “plenas”, e 50 de democracias “moderadas”. O resto do mundo vive em regimes “híbridos” ou abertamente autoritários, como no caso de Moçambique e de vários outros países africanos. A tendência, nos últimos anos, é o engrossamento dos regimes autoritários e, dentro do grupo dos países democráticos, a assunção de medidas simplistas para resolver assuntos complexos. À migração mundial se responde erguendo muros, à pobreza se responde mediante um discurso de criminalização da mesma, aos contrastes entre estados com a guerra, finalmente, numa dimensão mais privada, ao crescimento dos direitos e do papel da mulher com mais feminicídios, principalmente em países outrora considerados como o berço da civilização ocidental, tais como Itália, França e Alemanha.
Tais respostas simplistas não só não resolvem as questões, mas as agravam, com uma aparência de força e eficácia. Aparência que, depois de pouco tempo, se revela tal, ou seja, uma mera ilusão…A situação de Moçambique, hoje, é problemática porque, dentro da sua dimensão de país africano com características próprias, aqui também está em curso a transição entre um sistema (relativamente) simples e um mais complexo, que é preciso saber ler e governar. Trata-se de uma transição social e cultural que, diferentemente daquela meramente política que pode ser atrasada ou acelerada, vai continuar, provavelmente de forma cada vez mais célere. Caberá à política dar respostas eficazes a ela, pelo menos em três dimensões:
- Direitos: está mais do que claro que, ao longo dos dois últimos anos, o movimento popular que se autodenominou de “Povo no Poder” e que encontrou em Venâncio Mondlane a sua referência política tem hoje plena consciência dos seus direitos. São direitos em larga medida escritos na Constituição, mas que foram sistematicamente negados ou até violados pelas instituições públicas, mediante mecanismos de violência simbólica (a lógica de “cumprir ordens superiores”) ou até física (respostas repressivas a instâncias populares). É como se o movimento que se formou depois da morte do Azagaia tivesse colmatado o gap entre direitos constitucionais e práticas habituais das instituições. Hoje, quem não está alinhado ao respeito de tais direitos é o próprio Estado. Fazer com que esta primeira dimensão leve a política e as instituições a abraçar o constitucionalismo que o movimento popular já introjectou representa o maior desafio do novo governo, assim como de todo o aparelho do Estado. Trata-se de um desafio enorme, pois a cultura política e administrativa de quem sempre geriu o país é, em larga medida, a das “ordens superiores”, incompatível com o respeito e a prática activa dos direitos constitucionais. E vai levar muito tempo para que ela possa mudar.
- Participação política: o que assinalou o movimento popular que encontrou em Venâncio Mondlane o seu representante político é que as pessoas, principalmente os jovens, querem ter uma palavra importante na tomada de decisões. O resultado foi uma resposta, mais uma vez simplista, dos partidos políticos tradicionais, pelo menos dos dois mais fortes. Por um lado, a Frelimo se demonstrou incapaz de ler a nova complexidade, continuando a dilacerar-se internamente a procura de equilíbrios que pouco ou nada tinham a ver com os anseios da sociedade. Demonizar o adversário (Venâncio Mondlane e o próprio povo que manifestou nas ruas), procurar transmitir – mediante os órgãos públicos de informação, assim como nas redes sociais – a imagem de um país onde as coisas funcionavam razoavelmente bem, finalmente reprimir o dissenso foram respostas simplistas, ineficazes…Por outro lado, a Renamo, que tinha Venâncio Mondlane nas suas fileiras, pensou bem em adoptar medidas de exclusão para que ele não participasse do conselho nacional que elegeu, no início do ano passado, o novo presidente, com a convicção de que o problema seria resolvido desta forma. O resultado foi a pior derrota eleitoral do partido, com uma liderança contestada, e que não tenciona abrir uma discussão franca no seio daquela formação política. Saber canalizar os anseios de participação política dos jovens moçambicanos fora dos moldes tradicionais dos ritos políticos representa o outro grande desafio da actual governação. Pensar em activar instrumentos novos de participação, por exemplo aprovando finalmente o regulamento para o referendum, previsto pela Constituição, mas até hoje inaplicável, representa um elemento essencial para fazer com que a voz de quem nunca teve voz possa ser ouvida dentro do sistema institucional, e não apenas nas ruas;
- Conflito de interesses: nos debates a volta das reformas, que envolvem todas as formações políticas, especialistas, observadores, a questão do conflito de interesses quase nunca foi levantada. Existem muitas formas em que este conflito se manifesta. A mais simplista e evidente, em Moçambique, é a sobreposição quase que perfeita entre esfera política e esfera económica. Isto significa que o Presidente da República, os ministros, os parlamentares, para não falar de seus familiares, desfrutam das suas posições privilegiadas para criar e desenvolver seus negócios. A justificativa que geralmente se dá disto é que eles criam empregos, portanto contribuem para o desenvolvimento da economia nacional. Na verdade, a ausência de uma normativa clara sobre o conflito de interesses só traz estrangulamento económico e impossibilidade para outros sujeitos, não necessariamente ligados aos círculos do poder, de contribuir para o crescimento económico do país. Além disso, distrai quem tem obrigações institucionais do seu foco principal, cuidar dos interesses públicos e não privados. Todos os países com uma base democrática têm leis a volta disto. Mas alguns autoritários também têm, justamente para fazer com que a política não se resolva numa gigantesca oportunidade de negócios para quem tiver a sorte de entrar nela, degradando a qualidade da governação, ou pelo menos da sua eficácia. As modalidades para que a Assembleia da República possa aprovar uma lei sobre o conflito de interesses são muitas: os Estados Unidos são, provavelmente, o país com uma legislação mais avançada neste sentido, uma vez que, ali, os lobbies económicos pressionam continuamente o poder político para tomar esta ou aquela decisão. Daí, a necessidade de distinguir claramente entre compromisso público e negócios privados. A aprovação de tal lei permitiria que quem tiver responsabilidade de governo, a vários níveis, tivesse a obrigação de se dedicar exclusivamente ao bem público, deixando a outros sujeitos emergentes a tarefa de desenvolver negócios privados. Dificilmente haverá separação de poderes e limitação de práticas de corrupção sem a aprovação de uma lei séria sobre o conflito de interesses, pautando pela governação da complexidade e deixando de dar respostas simplistas a um país cada vez mais articulado e, por isso, problemático.

Facebook Comments