Não há dúvidas que o nosso País enfrenta uma encruzilhada crítica na história da sua existência e que esta crise pós-eleitoral pode, sem dúvidas, se transformar num divisor de águas. O País precisa, urgentemente, de uma reforma política que restabeleça a confiança nas instituições democráticas, um diálogo inclusivo entre as várias facções e uma intervenção construtiva da comunidade internacional. Daniel Chapo, eleito presidente nas eleições de 9 de Outubro terá uma dura tarefa de estabelecimento de um “novo pacto social” com o povo moçambicano, já saturado das promessas não cumpridas por parte dos sucessivos governos do Partido Frelimo. Ele está ou deve estar ciente da necessidade de restauração da paz e estabilidade e que, para que isso aconteça, será necessário um compromisso firme com a reforma do sistema eleitoral, o fortalecimento das instituições e a promoção de uma cultura política baseada no diálogo e no respeito às diversidades.
As lições de outros países africanos como República Democrática do Congo (RDC), Libéria, Quénia, Zimbabwe e mesmo da vizinha África do Sul são claras: a falta de soluções políticas e a continuação de uma governação corrupta e não inclusiva podem condenar o nosso País a mais décadas de instabilidade e sofrimento.
Começo este artigo com estas propostas de solução da crise política e social que o nosso País enfrenta desde as últimas eleições, como uma forma de rebater a cada vez maior preocupação de muitos moçambicanos sobre a necessidade de intervenção militar, alegadamente, para a restauração da ordem e segurança públicas que tem sido constantemente ameaçadas com as manifestações ainda em curso. Trago estas propostas porque, pessoalmente, não concordo e não vou pela via de intervenção militar ou, se quisermos, pela via de um golpe de estado.
Os moçambicanos devem saber que o papel dos militares em tempos de desordem interna é, essencialmente, de garantir a segurança e restaurar a ordem pública e não, necessariamente, de intervenções políticas, aliás, a nossa constituição refere que as Forças Armadas de Defesa de Moçambique são apartidárias. Embora seja verdade, porém, que, em países com instituições frágeis, como Moçambique, a linha entre a manutenção da ordem e a intervenção política possa ser tênue. Se a intervenção militar for feita de maneira controlada, subordinada ao governo e respeitosa aos direitos humanos, ela pode ser uma ferramenta útil para a estabilização.
No entanto, quando a intervenção ultrapassa os limites constitucionais e entra na política, ela pode ser altamente prejudicial para a democracia, promovendo um ciclo de violência, repressão e enfraquecimento das instituições civis. A chave para garantir a estabilidade em Moçambique, e de qualquer outro País, está no reforço da governação participativa, limitando, assim, a intervenção militar para contextos bem definidos e sempre dentro dos parâmetros legais. De facto, reconheço que o papel dos militares em tempos de desordem interna, como as crises pós-eleitorais ou em situações de instabilidade política e social, é um tema complexo, pois envolve questões de governação, segurança e os limites da intervenção militar na política.
No nosso País, onde as elites das Forças Armadas, nomeadamente, os generais e outros, têm um histórico estreitamente vinculado ao poder político, entender esse papel é essencial para compreender as dinâmicas de poder e as possíveis consequências para a democracia e a estabilidade nacional.
De resto, o papel tradicional-republicano dos militares em tempos de crise pode ser desdobrada em duas vertentes, nomeadamente, (1) Intervenção em defesa da ordem constitucional, sobretudo em democracias consolidadas. Aqui, o papel das Forças Armadas de Defesa de Moçambique é defender o País de ameaças e agressões; garantir a soberania, a integridade territorial e a liberdade dos cidadãos; assegurar o funcionamento das instituições em todas as circunstâncias; proteger organismos, instituições e meios civis; participar em ações de manutenção da paz e respeito ao direito internacional; contribuir para a defesa e segurança da região e do continente e defender o território nacional de todo o tipo de ameaça, incluindo o terrorismo, entre outros, mas sempre sob o comando civil e em respeito à Constituição.
Neste sentido, quando uma crise interna ameaça a ordem pública, a intervenção militar visa restaurar a paz e garantir a segurança da população. Porém, a sua autonomia deve ser preservada, ou seja, os militares devem agir sob o comando de autoridades civis e nunca substituir o governo ou assumir o controle político do país; (2) Intervenção política ou Golpe de Estado, um cenário que, normalmente, ocorre em países com instituições frágeis ou com uma história de regimes autoritários, onde os militares podem, em alguns casos, tentar tomar o controle do governo, muitas vezes sob o pretexto de restaurar a ordem. Isso ocorre especialmente quando o governo é considerado ilegítimo, incapaz de controlar a crise ou se distanciar do interesse popular. Nos piores cenários, os militares podem agir como um substituto do governo civil, o que frequentemente resulta em militarização do regime e no enfraquecimento das instituições democráticas.
Em Moçambique, a situação é particularmente sensível, dado o papel histórico das Forças Armadas na luta pela independência e na guerra civil (1977-1992). O Exército moçambicano, assim como outras instituições do Estado, é tradicionalmente ligado ao Partido Frelimo, que governa o País desde a independência. Isso significa que as Forças Armadas têm uma função política significativa, com uma estrutura hierárquica que é frequentemente alinhada com os interesses do governo e por via disso, do Partido.
Para uma intervenção militar nesta situação específica de Moçambique teria de haver uma alta traição por parte das elites militares, o que não me parece provável, visto que os generais são, regra geral, bem tratados e alinhados com o sistema vigente. Embora os escalões inferiores estejam a enfrentar desafios e uma cada vez mais crescente insatisfação devido, nomeadamente, a falta de condições e, mais recentemente, ao envolvimento dos ruandeses em assuntos internos do País, não me parece que estes tenham a força, a coragem e as condições suficientes para o efeito. Por outro lado, a quem entregariam o poder depois da sua tomada? Ao Venâncio Mondlane? Tirando a sua suposta ligação com Bertolino Jeremias Capitine, ex Vice-Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas de Defesa de Moçambique, não me parece que Venâncio Mondlane tenha uma legitimidade e aceitação dentro das elites militares do País, salve outra indicação contrária. Esse facto, de per si, é revelador de que, mesmo se isso vier a acontecer, o mais provável, é a devolução do poder à uma outra figura dentro do mesmo Partido, a Frelimo.
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