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Arão Valoi
Moçambique caminha a passos largos para um feito que, não fosse trágico, seria quase cómico: a falência de uma empresa monopolista. Um caso de estudo para as ciências económicas ou áreas afins. As Linhas Aéreas de Moçambique (LAM), durante décadas símbolo de soberania e mobilidade nacional, estão hoje reduzidas a um esqueleto administrativo pesado e quase inútil. A ironia é dolorosa: mesmo sem concorrência, com o céu praticamente livre para explorar, a empresa conseguiu atingir o fundo do poço. E o que poderia ser um estudo de caso em má gestão virou, na verdade, uma crónica de desleixo nacional.
Não se trata de falta de mercado. Moçambique é um País vasto, com longas distâncias entre as principais cidades. A aviação não deveria ser um luxo, mas, sim, uma necessidade para a integração territorial, para os negócios, para o turismo e para a própria unidade nacional. Ainda assim, a LAM é incapaz de responder a essas necessidades básicas. Pior: obriga os cidadãos a recorrer a soluções absurdas, como viajar ao exterior – muitas vezes a Joanesburgo – para conseguir voar de uma cidade moçambicana para outra. Um contrassenso logístico que, infelizmente, se tornou rotina.
Escrevo este artigo a partir da Beira, para onde viajei através da Air link, a partir de Maputo, escalando Joanesburgo. Ou seja, precisei de passaporte para viajar a uma Província do meu próprio País. E é intrigante quando, doutro lado do País, os oficiais dos serviços de migração questionam qual é o motivo de sair de Maputo a Joanesburgo para ir a Beira. Sendo patriota, dá-me vergonha de responder que o fazemos porque a nossa companhia de bandeira, a LAM, não está em condições de voar, regularmente, devido a dificuldades de diversa ordem.
Mas como explicar a origem dessas dificuldades? Embora seja difícil e embaraçoso falar para estrangeiros, sabemos que a resposta é tão simples quanto revoltante: a corrupção, o clientelismo e a incompetência institucionalizada. A LAM foi transformada numa verdadeira “vaca leiteira” dos camaradas do partido no poder. Políticos e altos funcionários usam a empresa para drenar dinheiro (lembram-se da história dos POS}, viajam sem pagar, acumulam dívidas impagáveis, e agem como se os recursos da empresa fossem um prolongamento dos seus privilégios. Não há prestação de contas, não há fiscalização efectiva, e o resultado é o colapso de um serviço público essencial.
A situação da empresa é, hoje, insustentável. Uma frota reduzidíssima ou quase inexistente, voos cancelados frequentemente, passagens com preços exorbitantes e um nível de serviço que beira o desrespeito ao consumidor. Além disso, há uma massa laboral inchada, muitas vezes mais preocupada em manter os próprios empregos do que em fazer a empresa voar – literalmente. O custo fixo da estrutura não é compatível com a realidade operacional da companhia, e qualquer tentativa de reforma esbarra em resistência política e interesses obscuros.
Mas não nos enganemos: a quase falência da LAM não é apenas o colapso de uma companhia aérea. É o sintoma de um problema muito mais profundo: o fracasso de um modelo de Estado. Um Estado que concentra poder, sufoca a concorrência, despreza o mérito e protege elites políticas à custa do sofrimento do povo. Em qualquer País sério, uma empresa monopolista que falha desse modo geraria uma crise política, inquéritos, demissões, responsabilização. Em Moçambique, tudo segue como se fosse normal. E isso é ainda mais grave.
Muito recentemente, a LAM celebrou um contrato com a Sul-africana CemAir, a qual fazia voos, ligando diferentes partes do nosso belo Moçambique. Mas ao que tudo indica, por incumprimento do acordo por parte da LAM, a contraparte sul-africana acabou, de forma unilateral, rescindindo o contrato, deixando o País de tangas e gerando um caos inimaginável. Sem aviões e sem solução à vista, a LAM é, hoje, obrigada a transportar carga por via terrestre para aliviar a pressão, o que é uma situação ridícula na aviação e para uma empresa que se pretende impor no sector (se é que pretende).
Neste momento, o que se exige agora no sector da aviação em Moçambique não é apenas uma reestruturação técnica da empresa, mas uma mudança completa de paradigma. É preciso libertar o sector aéreo moçambicano do cativeiro do monopólio. Abrir o espaço aéreo à concorrência, atrair companhias privadas, criar incentivos para novas rotas e exigir, de todas as operadoras, um padrão mínimo de qualidade e acessibilidade. Isso não é apenas uma questão económica – é uma questão de justiça social e de soberania real.
Mas estas coisas de má gestão em Moçambique, não são surpreendentes. Um País que não consegue gerir o único estádio nacional de futebol, como é que conseguiria gerir uma companhia aérea? Nestes termos, privatizar seria o caminho ideal. Mas privatizar, por si só, não seria a solução mágica. O que se precisa é de uma privatização com regras, com fiscalização, com objectivos claros de interesse público. O exemplo da LAM mostra que o modelo público, com alto pendor estatal, está falido, mas também alerta para os perigos de privatizações malconduzidas, que podem apenas substituir um grupo de privilegiados por outro.
O foco deve estar sempre nos usuários – os cidadãos comuns, os trabalhadores, os empresários que precisam de voar, os doentes que precisam de transporte rápido, os estudantes que se deslocam para estudar. É para eles que um serviço aéreo deve existir.
Moçambique está num ponto de inflexão. Pode continuar a insistir no erro, sustentando uma empresa moribunda em nome de um nacionalismo vazio, ou pode fazer história pela razão certa: reformar profundamente o seu sector aéreo e mostrar que aprendeu com os seus próprios fracassos.
A queda da LAM, se inevitável, que sirva pelo menos para abrir os olhos de quem ainda acredita que empresas públicas podem sobreviver eternamente à custa do povo. Se a LAM cair, que não caia em silêncio. Que a sua falência seja tratada como o escândalo que é – e como a última oportunidade de um País que precisa, urgentemente, deixar de voar com as asas partidas da incompetência.

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