Especialistas questionam relutância da União Europeia em oferecer armamento letal a Moçambique

DESTAQUE SOCIEDADE
Share this
  • Terá interesse a Europa em ajudar na luta contra o terrorismo em Cabo Delgado?
  • Alinhamento político e peso geopolítico ditam acesso ao apoio letal da UE, defende Cadeado
  • Para Rufino Sitoe o que o país precisa não é só equipamento, é estratégia, disciplina e inteligência.

A estratégia de apoio da União Europeia (UE) a Moçambique no combate ao terrorismo em Cabo Delgado, centrada na formação de tropas e no fornecimento de equipamento estritamente não letal, num contexto em que as Forças de Defesa e Segurança Moçambicanas precisam de reforço do seu poder de fogo para fazer face a um grupo terrorista cada vez mais intransigente e que por vezes ataca com armas mais sofisticadas, continua a gerar debate, com alguns questionamentos sobre o real interesse daquele bloco comunitário no combate ao terrorismo que lavra desde 2017. Enquanto a UE salienta o seu contributo para a capacitação das forças moçambicanas, analistas como Calton Cadeado apontam para complexas razões geopolíticas e de alinhamento histórico que poderão justificar a relutância europeia em fornecer armamento ofensivo. Por outro lado, especialistas como Rufino Sitoe levantam questões sobre a eficácia real desta abordagem no terreno e destacam que o financiamento europeu a forças estrangeiras que actuam na mesma região não visaria, de forma mais pragmática, a protecção de interesses económicos da UE, em detrimento de um fortalecimento soberano e integral das capacidades de defesa de Moçambique.

Evidências

As paisagens de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, outrora conhecidas pela sua beleza natural e potencial económico, tornaram-se, desde 2017, sinónimo de uma crise complexa e dolorosa. Uma insurgência violenta, com filiações jihadistas, desestabilizou a província, ceifando milhares de vidas, deslocando centenas de milhares de pessoas e lançando uma sombra sobre os megaprojectos de gás natural, vistos como a chave para o futuro económico do País. Perante um inimigo esquivo e brutal, e com as suas próprias forças de segurança a demonstrarem dificuldades iniciais, Moçambique abriu as portas ao apoio internacional.

Dentre várias correntes de apoio, a União Europeia (UE) estabeleceu em 2021 a Missão de Treino Militar (EUTM), mais tarde convertida em Missão de Assistência Militar (EUMAM), dedicada a capacitar as Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM).

Paralelamente, através do Mecanismo Europeu para a Paz (EPF), canalizou dezenas de milhões de euros para equipar as unidades treinadas. Contudo, este apoio material tem uma linha vermelha clara: é estritamente não letal. Enquanto capacetes, botas, veículos e equipamento médico chegam, as armas e munições que o governo moçambicano já indicou necessitar não fazem parte do pacote europeu.

Moçambique precisa de armas, mas recebe prumos e botas

Em Março passado, a União Europeia entregou a Moçambique o último lote de equipamento militar não letal, avaliado em 85 milhões de euros, para apoiar as Forças Armadas no combate à insurgência em Cabo Delgado.

Trata-se de um valor redondo, mas que em termos práticos não resolve as necessidades urgentes do exército moçambicano que combate uma resistência armada do grupo terrorista que vem mostrando capacidade de resiliência ao longo do tempo, se reagrupando e reaparecendo de quando em vez para semear terror.

Esta política levanta um turbilhão de questões: é este apoio suficiente? O que motiva a relutância europeia em fornecer meios ofensivos directos? E quais as implicações para a soberania de Moçambique e a eficácia da luta contra o terrorismo? O apoio ao Ruanda para proteger os activos de empresas de países do bloco Europeu, deixando o povo e suas forças sem grande poder para se defender não estará a perpetuar a estratégia de exploração europeia? Será que a relação/cooperação económica entre a União Europeia e Moçambique está baseada no Win Win?

Nesta reportagem, mergulhamos nas análises de especialistas para descortinar as camadas deste complexo cenário, que mostra, de certa forma, a inclinação do bloco europeu na protecção dos seus activos, através de envios de apoio milionário de cerca de 40 molhões de Euros para o Ruanda proteger interesses da TotalEnergies e conexos em Palma e Mocímboa da Praia, enquanto o povo dos distritos circunvizinhos morre degolado por terroristas que continuam a fazer vítimas perante um exército

O tabuleiro geopolítico e os interesses em jogo

Para Calton Cadeado, académico e especialista em relações internacionais, a chave para decifrar a abordagem europeia reside menos nas necessidades tácticas do terreno e mais nas complexas dinâmicas da geopolítica e nos históricos alinhamentos políticos de Moçambique.

A decisão de fornecer ou não armamento letal, argumenta, é um acto carregado de significado político, dependente de um cálculo de interesses estratégicos e de afinidade entre os parceiros. Moçambique, com a sua herança de relações político-militares estabelecidas com a antiga União Soviética, e mantendo laços com a Rússia e a China (fornecedores tradicionais de equipamento militar), não se enquadra no molde clássico de um aliado estratégico do bloco ocidental (UE/NATO).

“Eu suponho, mantenho as evidências profundas para isso, que para haver o apoio letal é preciso que haja um certo tipo de interesse. E esse interesse tem muito a ver com a dimensão política e geopolítica. A dimensão política tem muito a ver com o alinhamento que o Estado moçambicano faz ao nível internacional. Por exemplo, nós sabemos que o Estado moçambicano tem uma herança de relacionamento na dimensão político-militar com a URSS, com a Rússia, do qual adquire parte significativa do seu equipamento militar. Isso significa dizer que a nossa tecnologia militar está muito associada a esta nossa relação política,” afirmou.

Este legado histórico, explica Cadeado, pode estar a criar uma barreira de desconfiança ou, no mínimo, uma falta de alinhamento profundo que justifique, aos olhos europeus, a transferência de tecnologia militar ofensiva. A ausência de uma aspiração moçambicana em integrar a NATO reforça esta percepção.

O contraste é evidente quando se compara com países como a Arábia Saudita, que, mesmo fora da NATO, recebem armamento sofisticado devido ao seu imenso peso geopolítico no Médio Oriente e à sua capacidade de servir interesses estratégicos ocidentais.

Contudo, a análise não se pode resumir a uma alegada indisponibilidade europeia. Cadeado introduz a noção de um “jogo de interesses” bilateral, em que não se sabe que tipos de contrapartidas a União Europeia pode ter pedido a Moçambique.

No entanto, entende que mesmo que a questão do armamento fosse resolvida, subsiste a dúvida sobre a capacidade financeira de Moçambique para sustentar um esforço de guerra moderno e tecnologicamente avançado, pois, no seu entender, combater o terrorismo moderno exige conhecimentos distintos da guerra de guerrilha tradicional, incluindo meios aéreos, navais, terrestres, ofensivos e defensivos que têm um custo proibitivo.

“O conhecimento que nós estamos a ter agora é fundamental para nós sabermos combater o terrorismo. Mas a experiência prática que nós estamos a ter no terreno é fundamental para combater o terrorismo. Se robustecermos um dia com a capacidade de meios ofensivos e defensivos, será ideal. Mas a resposta directa é que nós estamos a ter conhecimento agora. Faltam-nos os meios operativos”, descreve.

Em Moçambique cresce a convicção de que se Bruxelas desse apenas um por cento dos biliões que gasta com a guerra na Ucrânia, país que recebe apoio militar massivo e letal da UE, podia se escrever outro título à luta contra o terrorismo. Cadeado considera que isso só prova o primado da geopolítica e do alinhamento.

“A Ucrânia é percebida como estando na linha da frente da defesa da Europa contra uma ameaça directa e existencial (a Rússia), e como uma futura parte integrante do espaço europeu. A ameaça em Moçambique, por mais grave que seja localmente, é vista em Bruxelas como mais distante e menos impactante para a segurança directa da Europa, justificando uma resposta de natureza e escala diferentes”, descreve.

“Não estamos a conseguir sentir qualitativamente o impacto dessas tropas treinadas pela EU”

Rufino Sitoe, especialista em Relações Internacionais e Diplomacia, refere que a discussão sobre o apoio externo deve partir de um princípio fundamental: a estratégia de defesa e segurança é uma prerrogativa soberana de Moçambique, e os parceiros, como a UE, deveriam alinhar o seu apoio a essa estratégia nacional.

Ele reconhece a utilidade do apoio não letal europeu, como na área da saúde militar, mas expressa um cepticismo considerável quanto à capacidade de se avaliar objectivamente o impacto das tropas treinadas pela EUTM/EUMAM no teatro de operações. A simultaneidade com outras intervenções (SAMIM e Ruanda) torna quase impossível isolar a contribuição específica da formação europeia para eventuais melhorias ou retrocessos na situação de segurança.

“A União Europeia tem que apoiar, Moçambique deve ter estratégia. Este é o princípio fundamental de soberania e de autonomia de um Estado. Obviamente que a gente pode se perguntar: depois destas pessoas terem sido treinadas, o que mudou no campo de operações? Infelizmente, é difícil de aferir porque, pelo menos com a ajuda da SAMIM (após a sua saída), nós vimos o recrudescimento dos ataques militares, nós, até aqui, não estamos a conseguir sentir qualitativamente o impacto dessas tropas treinadas.”

Sitoe pondera as possíveis razões por detrás da política restritiva da UE quanto ao armamento letal. Sugere que, numa fase inicial, a incerteza sobre a natureza exacta do conflito em Cabo Delgado, aliada a preocupações com o histórico de alegadas violações de direitos humanos por elementos das FDSM, possa ter gerado uma cautela excessiva em Bruxelas. No entanto, ele próprio admite a fragilidade deste argumento face ao financiamento concedido à intervenção ruandesa.

Principal foco na protecção de interesses europeus

No que toca ao financiamento da força ruandesa, Sitoe levanta uma hipótese pragmática e potencialmente controversa: poderia ser a forma mais expedita e eficaz, na perspectiva europeia, de garantir a protecção dos seus vultosos interesses económicos ligados ao gás natural em Cabo Delgado, delegando a tarefa a uma força militar considerada mais capaz e evitando o envolvimento directo de tropas da UE, que enfrentariam constrangimentos políticos e legais para intervir.

“Por que dar a Ruanda e não a Moçambique? Não sei, mas também é preciso olhar para a questão energética, a protecção dos recursos dos investimentos europeus. Então, pode ter sido a melhor maneira de encontrar uma força com uma melhor capacidade de resposta para proteger também os seus interesses, a própria União Europeia não pode intervir. Então, a Ruanda age no quadro do apoio a missões. Então, é um dispositivo próprio, mas tudo são especulações, porque não está claro, mas pelo nível de interesses que existem em Cabo Delgado, assumimos que escalar é uma melhor forma para eles de proteger os seus interesses”, sublinha.

Independentemente do tipo de apoio externo, Sitoe é taxativo quanto às limitações internas de Moçambique. A capacidade de conter e derrotar a insurgência não depende apenas do equipamento, seja ele letal ou não. Exige uma combinação complexa de estratégia militar coerente, disciplina operacional, capacidade de recolha e análise de inteligência, logística eficiente e moral das tropas, factores que, segundo ele, Moçambique ainda luta para consolidar.

Entre a dependência e a autonomia

A análise aprofundada da cooperação entre a União Europeia e Moçambique no combate ao terrorismo em Cabo Delgado revela um cenário intrincado, onde as boas intenções e o apoio substancial se confrontam com cálculos geopolíticos, limitações de capacidade e dilemas de soberania.

As perspectivas de Calton Cadeado e Rufino Sitoe, embora com nuances diferentes, iluminam a complexidade da situação: a UE parece condicionar a natureza do seu apoio a factores que transcendem as necessidades imediatas do campo de batalha, enquanto Moçambique luta para desenvolver uma capacidade de defesa autónoma e eficaz, num contexto de recursos escassos e desafios estruturais profundos.

A restrição ao fornecimento de armamento letal, o financiamento a forças de um terceiro país (Ruanda) e as dúvidas sobre o impacto real da formação ministrada criam um quadro de dependência e questionamento. Será a abordagem actual da UE a mais adequada para ajudar Moçambique a vencer esta guerra e a garantir a sua própria segurança a longo prazo? Ou será que perpetua uma fragilidade estratégica, mantendo o País dependente de arranjos externos complexos e potencialmente lesivos da sua soberania? As respostas não são simples e envolvem decisões difíceis para ambas as partes.

Promo������o
Share this

Facebook Comments