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- Assassinatos bárbaros de mulheres no País continuam sem respostas
- África do Sul é identificada como um dos centros de transplantes ilegais no continente
- Legista diz que ausência de perícias forenses robustas e detalhadas impede que se chegue a conclusões definitivas
- “Não falta tecnologia nem capacidade para reprimir o crime, falta vontade”, – Q. Guirengane
- O último adeus suspenso quando o luto de uma mãe clama por respostas que não chegam
O telefone de Ilda Maria Mboane tocou por volta das nove da noite daquela segunda-feira, 10 de Fevereiro de 2025. Do outro lado da linha, a voz da sua filha, Filomena “Finoca” Mboane, 41 anos, viúva e mãe dedicada de três filhos. Finoca contava que estava na Matola 700, tentando encontrar um “chapa” que a levasse de volta para casa, em Chamanculo, depois de um culto na igreja. Passaram-se minutos de espera infrutífera sob o manto escuro da noite e promessa de uma nova chamada, assim que o transporte surgisse, ficou suspensa no ar, como um último fio de esperança que se esgarçaria na angústia das horas seguintes. Sobre a vida de Finoca, e da sua família, abateu-se um silêncio sepulcral. A preocupação de Ilda transformou-se numa busca desesperada, um calvário percorrido através de buscas nas redes sociais, esquadras, hospitais, morgues. Dias depois, a notícia que nenhuma mãe deveria receber: o corpo de Finoca fora encontrado, abandonado numa mata no bairro Fomento. A identificação, um processo dilacerante, só foi possível para a irmã através de uma tatuagem, um desenho singelo com os nomes dos três filhos que Finoca amava mais que a própria vida. Tal como Finoca, muitas outras raparigas e mulheres na cidade e província de Maputo tiveram o fim de sua vida silenciado por uma teia de predadores que para além de matar suas vítimas, mutilam parte do seu corpo e órgãos, sobretudo genitais, para propósitos até aqui desconhecidos, o que alimenta o receio de Moçambique estar a alimentar uma rede internacional de transplantes ilegais que tem a África do Sul como ponto de conexão de redes transnacionais. As autoridades policiais se mostram incapazes de solucionar essa onda de crimes violentos que tem as mulheres como vítimas preferenciais e a sociedade civil exige respostas urgentes.
Luísa Muhambe
Um relatório da Global Financial Integrity (GFI), um think tank sediado em Washington, DC, focado em corrupção, comércio ilícito e lavagem de dinheiro, estimou que entre US$ 840 milhões e US$ 1,7 bilhão (€ 755 milhões e € 1,5 bilhão) são gerados anualmente pelo tráfico de pessoas para a remoção de órgãos.
O tráfico ilegal de órgãos está crescendo em toda a África. A sofisticada operação movimenta mais de US$ 1 bilhão anualmente e tem como alvo pessoas vulneráveis. A falta de regulamentação e a enorme demanda por órgãos impulsionam o comércio ilegal.
Seguindo um padrão que se tornou uma constante nas cidades de Maputo e Matola, o corpo de Finoca testemunha uma brutalidade indescritível e reacende o temor de Moçambique estar a ser usado como canteiro de uma rede de tráfico internacional de órgãos humanos para alimentar operações ilegais de transplante em países vizinhos.
O pescoço cortado, os braços quebrados, hematomas que narravam uma violência extrema e, o mais perturbador, indícios claros, segundo a irmã, de que órgãos haviam sido extraídos.
“Ela disse que estava na paragem e que não estava a aparecer chapa. Disse que estava parada há 20 minutos”, a voz de Ilda embarga-se ao recordar cada palavra pesando toneladas de uma dor que os meses não aliviaram.
“Eu disse à minha filha que, se não conseguisse apanhar chapa, devia ligar-me para eu sair e ir-lhe buscar”, lembrou a mãe como aguardou, como tantas outras vezes, mas o telefone permaneceu mudo.
“Mas a chamada de retorno nunca chegou. Eu pensei que talvez estivesse a descansar. Eu acabei por apanhar sono, nunca mais me ligou”, relata.
“Eu nem reconheci minha filha”
Com a voz quebrada pela incredulidade e pelo horror, Ilda lembra que teve de fazer um grande alvoroço para poder convencer a abrir a urna para se despedir da sua filha. O caixão permaneceu fechado para a maioria, uma tentativa de poupar os presentes da visão aterradora.
“Não abriram o caixão para todos, mas como eu fiz muito barulho, me deixaram ver, mas não reconheci. Eu fiquei à espera de ela aparecer e dizer ‘mamã, estou aqui’, lembra Ilda, destacando que os meses vão passando, corroendo a negação e forçando uma aceitação que ainda hoje parece impossível.
A resposta das autoridades ou a ausência dela tornou-se um novo fardo na dor de Ilda que alimenta pelo menos a esperança de ver os agressores de sua filha responsabilizados.
“Até agora a polícia não deu nenhum esclarecimento, eu cansei de andar porque não estou a ter resposta em nenhum lado. Eles me deram um número e disseram que iam ligar, mas até agora nada”, relata com a resignação tingindo a sua voz, mas não a sua busca por justiça, por um porquê que seja.
Um coro de gritos silenciados: Mimí e Taty
A história de Finoca, na sua singularidade trágica, não é um pesadelo isolado. Ecoa os destinos de Ámina “Mimí” Mussagy e Tatiana “Taty” Liasse, jovens mulheres cujos nomes se juntaram ao de Finoca no panteão sombrio de vítimas de uma violência que desafia a compreensão e alimenta os piores temores da sociedade moçambicana.
Mimí, com apenas 22 anos, estudante finalista de Relações Internacionais e o sonho vibrante de servir o País nas Forças Armadas, desapareceu a 17 de Janeiro de 2025. Partira de casa pelas 17 horas para um convívio com amigas no bairro Costa do Sol. Às 21h, despediu-se. Depois disso, o enigma. As chamadas da mãe caíam, um ruído estranho, e depois o silêncio total do telemóvel. As amigas, inicialmente, tentaram encobrir um possível encontro amoroso.
“Liguei a segunda vez, escutei um ruído e a chamada caiu. A terceira vez, já não chamava,” contou a mãe, procurando buscar respostas no labirinto do seu sofrimento.
Só mais tarde, a confissão tardia. As amigas, que imaginavam estar a encobrir um encontro amoroso, tomaram a coragem de revelar que, afinal, “na verdade, mãe, a Mina saiu daqui às 21 horas e disse que ia para casa”.
A angústia transformou-se em horror na noite seguinte, 18 de janeiro, quando fotos a circular no Facebook revelaram o impensável. Mimí fora assassinada, o seu corpo descartado num beco escuro em Mavalane, a mais de 15 quilómetros de onde fora vista pela última vez. À distância, o estado do corpo, tudo apontava para algo sinistro e planeado.
“Nós ficámos muito chocados, até hoje é difícil aceitar”, lamenta uma fonte próxima, falando sob anonimato, antes de rematar que “o mais difícil é explicar o que realmente aconteceu, se queriam os órgãos, se foi um assalto, se foi o tal namorado e isso só aumenta a nossa dor. O pior é que até agora o caso não parece ter solução”.
Recuando um pouco mais no tempo, a 18 de fevereiro de 2023, o nome de Tatiana “Taty” Liasse, de 26 anos, inscrevia-se neste padrão inquietante. Desapareceu numa noite de sábado após receber uma chamada e sair de casa.
Quatro dias de buscas e uma angústia crescente culminaram na descoberta do seu corpo perto de casa, irreconhecível, o odor a denunciar a tragédia, antes mesmo da confirmação visual. A identificação só foi possível pelas roupas e pertences.
“Tivemos conhecimento de que alguém a trouxe à casa e depois se foi embora. Depois recebeu outra chamada e voltou a sair. Nunca mais voltou”, relatou a irmã na altura.
A família, inconformada com a inércia das autoridades, tentou procurar respostas por meios próprios, mas, segundo o Observatório das Mulheres, o qual acompanha o caso, viu-se obrigada a recuar perante inúmeras ameaças.
A Sombra insidiosa do Tráfico de Órgãos
Finoca, Mimí e Taty, três nomes, três vidas brutalmente interrompidas, cujas mortes, envoltas em mistério e marcadas por mutilações suspeitas, alimentam a teoria de uma rede de tráfico de órgãos a operar em Moçambique.
Estes casos, amplamente mediatizados, são, teme-se, apenas a ponta de um iceberg macabro. Relatos de outras mulheres desaparecidas ou assassinadas em circunstâncias semelhantes, cujas vozes nunca ecoaram na praça pública, e testemunhos chocantes de familiares que alegam ter encontrado entes queridos com sinais de extracção de órgãos em hospitais, sem nunca obterem explicações satisfatórias, pintam um quadro alarmante.
O tráfico de órgãos é uma realidade global sombria, movimentando, segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 1,2 mil milhões de dólares por ano. Rins, fígado, córneas e coração estão entre os mais cobiçados. A rapidez é crucial: um rim sobrevive até 24 horas fora do corpo; fígado e coração, poucas horas.
A proximidade geográfica de Moçambique com a África do Sul, identificada como um dos centros de transplantes ilegais no continente e ponto de conexão de redes transnacionais que operam entre África, Ásia e Médio Oriente, torna o território moçambicano estrategicamente vulnerável.
Estudos apontam para o envolvimento sul-africano em transplantes ilegais em Durban e Joanesburgo, com ligações a países como Israel, Brasil e Índia, onde vítimas vulneráveis são aliciadas ou violentadas para alimentar este mercado negro.
Embora não se possa afirmar categoricamente que os casos de Finoca, Mimí e Taty estejam ligados a uma rede de tráfico de órgãos, os indícios são perturbadores e não podem ser ignorados.
Segundo a explicação técnica do médico legista que falou sob anonimato ao Evidências, as características das lesões encontradas nos corpos em casos como estes, podem evidenciar se se trata de algo mais do que violência comum.
“Lesões produzidas com intenção cirúrgica geralmente apresentam bordas lineares, regulares, tendem a seguir planos anatómicos que demonstram conhecimento. Cortes amadores, por outro lado, frequentemente exibem irregularidades, múltiplas tentativas ou cortes hesitantes. O instrumento costuma ser de gume afiado e apropriado, como um bisturi, deixando um traçado mais ‘limpo’. A localização precisa das incisões é crucial; cortes que correspondem a acessos cirúrgicos padronizados para determinados órgãos, mesmo que mal executados, sugerem uma intenção cirúrgica”, detalha.
A ausência de perícias forenses robustas e autópsias detalhadas nos casos moçambicanos impede, no entanto, que se chegue a conclusões definitivas, perpetuando a incerteza.
Um silêncio ensurdecedor e o luto sem fim
Face a este cenário, a inércia institucional e a falta de respostas concretas por parte das autoridades são denunciadas veementemente pela sociedade civil. Quitéria Guirengane, secretária executiva do Observatório das Mulheres, tem sido uma voz incansável nesta luta.
“Recebemos casos com indícios claros de extracção de órgãos. Este é um fenómeno crescente, difícil de provar, mas há uma rede que continua impune. Até hoje, nem o caso da Tatiana, nem os casos recentes tiveram respostas concretas das autoridades,” afirma.
Guirengane sublinha o padrão de vulnerabilidade que atinge principalmente mulheres jovens, muitas vezes desacreditadas, e as armadilhas, como falsas promessas de emprego ou encontros marcados através das redes sociais, que frequentemente culminam em tragédia. A sua crítica é directa:
“Temos que investigar unidades sanitárias suspeitas e publicar os nomes dos condenados. Aqui neste país não falta tecnologia nem capacidade para reprimir o crime, falta apenas vontade.” Ela aponta ainda para a proximidade com a África do Sul e o “aparente silêncio ou morosidade na resolução desses casos” como factores preocupantes.
Evidências tentou, sem sucesso, obter uma entrevista junto do Gabinete de Comunicação no Comando-Geral da Polícia da República de Moçambique (PRM) para compreender o trabalho em curso visando o esclarecimento destes assassinatos em série que permanecem sem nenhum esclarecimento.
Para as famílias de Finoca, Mimí, Taty, e para tantas outras que choram as suas perdas no anonimato, a ausência de respostas transforma o luto numa ferida que teima em não cicatrizar. As investigações parecem arrastar-se indefinidamente, as autoridades mantêm um silêncio que aprofunda a desconfiança, e a sombra de uma rede organizada continua a pairar, ameaçadora. O mistério prolonga-se, alimentando o medo e as teorias que corroem o tecido social.
Enquanto a vontade política e a capacidade institucional não se traduzirem em acções concretas, em investigações sérias e transparentes, em justiça para as vítimas e suas famílias, a pergunta continuará a ecoar, carregada de dor e indignação: Até quando?

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