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Nilza Dacal
A crença de que a transformação social começa pela mudança das mentalidades individuais é um mito sedutor, mas enganoso. Embora a renovação pessoal seja valiosa, ela é insuficiente sem a reforma dos sistemas que moldam o comportamento humano. Um sistema corrupto é como um solo envenenado: por mais virtuosas que sejam as sementes plantadas, elas murcharão antes de florescer. Reformar estruturas falidas é uma tarefa monumental, muito mais complexa do que transformar indivíduos, mas é a única via capaz de produzir mudanças profundas e duradouras.
Sistemas moldam comportamentos
A lógica é implacável: sistemas disfuncionais corrompem até os mais íntegros. Um sistema que recompensa a corrupção, privilegia lealdades políticas e pune a transparência cria incentivos perversos, que moldam atitudes e acções. A ciência política reforça essa ideia. Douglass North, ganhador do Nobel de Economia, argumentava que instituições — as “regras do jogo” de uma sociedade — determinam os incentivos que guiam o comportamento humano. Quando essas regras são viciadas, até os mais bem-intencionados sucumbem às pressões sistémicas.
Na África do Sul, o fim do apartheid em 1994 trouxe a promessa de uma nova era. A eleição de Nelson Mandela simbolizou esperança, mas o sistema herdado permaneceu intacto: uma burocracia inchada, redes de clientelismo e instituições frágeis. Líderes como Cyril Ramaphosa, que assumiu a presidência em 2018 com a aura de reformador, viram-se enredados em escândalos, como o caso Phala Phala, não apenas por falhas pessoais, mas porque o sistema continuou a operar sob lógicas de favorecimento e opacidade. Sem reformas estruturais, a esperança pós-apartheid transformou-se em desilusão.
Angola segue um roteiro semelhante. A transição de José Eduardo dos Santos para João Lourenço em 2017 foi recebida com optimismo, com promessas de combate à corrupção. Contudo, o sistema político, centrado em redes de patronagem e dependente de receitas petrolíferas, permaneceu inalterado. Apesar de algumas prisões de alto perfil, a percepção de clientelismo persiste. A lição é clara: mudar líderes sem transformar as estruturas é como rearrumar cadeiras em um navio que afunda.
O Zimbabwe reforça essa narrativa. A queda de Robert Mugabe em 2017 trouxe Emmerson Mnangagwa ao poder, com promessas de renovação. No entanto, o mesmo aparato repressivo e corrupto com instituições judiciais cooptadas e uma economia capturada por elites manteve-se intacto. Esses casos mostram que substituir rostos no poder sem desmantelar as engrenagens do sistema é um exercício fútil.
Além dos partidos: A necessidade de reformas sistémicas
O problema transcende partidos ou lideranças. Sistemas viciados criam um círculo vicioso em que a corrupção se torna a norma, e a integridade, uma excepção arriscada. A teoria das instituições sugere que sistemas são mais do que a soma dos seus indivíduos, eles estabelecem as condições que moldam escolhas colectivas. Um juiz honesto em um sistema judicial corrompido enfrenta pressões para ceder, um político ético em um regime clientelista é marginalizado. Assim, a mudança real exige desmontar essas estruturas e reconstruí-las com base em transparência, accountability e mérito.
Essa transformação não é tarefa apenas dos governantes. É uma responsabilidade colectiva, que exige a convergência de líderes, cidadãos, partidos e sociedade civil. A história recente da América Latina oferece um exemplo complementar. Na Guatemala, a Comissão Internacional contra a Impunidade (CICIG), apoiada pela ONU entre 2007 e 2019, demonstrou como reformas institucionais podem romper ciclos de corrupção. A CICIG investigou e desmantelou redes de corrupção que envolviam elites políticas e económicas, levando à prisão de figuras de alto gabarito. Embora a iniciativa tenha enfrentado resistência e sido eventualmente extinta, ela mostrou que mudanças estruturais podem criar um ambiente onde a ética prevalece.
O Ruanda: um Modelo imperfeito, mas instrutivo
O Ruanda oferece um contraponto poderoso. Após o genocídio de 1994, que deixou o país em ruínas, Paul Kagame liderou uma reconstrução baseada em reformas estruturais. Ele implementou um sistema de governação com tolerância zero à corrupção, fortalecendo instituições como o Gabinete do Ombudsman e investindo em digitalização para aumentar a transparência. Segundo o Banco Mundial, o Ruanda subiu de uma renda per capita de US$ 200 em 1994 para US$ 930 em 2023, com crescimento económico médio de 7% ao ano. A corrupção, embora não eliminada, foi drasticamente reduzida, com o país alcançando a 49ª posição no Índice de Percepção de Corrupção de 2024.
O modelo ruandês, porém, não é isento de críticas. A centralização do poder em Kagame levanta questões sobre autoritarismo, e a repressão a dissidentes revela um lado sombrio. Ainda assim, o caso demonstra que reformas estruturais podem redesenhar a cultura política, incentivando comportamentos éticos e alinhando mentalidades às novas regras. Quando o sistema recompensa a integridade, as pessoas se adaptam; a honestidade deixa de ser um sacrifício heróico e torna-se uma prática viável.
Mentalidades seguem sistemas
A crença de que mudar mentalidades precede a reforma estrutural inverte a causalidade. As pessoas não operam no vácuo, elas respondem aos incentivos e constrangimentos dos seus ambientes. Um sistema que valoriza o mérito e pune a corrupção cria um círculo virtuoso, onde a ética se torna a norma. Por outro lado, um sistema que premeia a desonestidade perpetua a desconfiança e o cinismo, minando até as melhores intenções.
A reforma estrutural não é apenas uma questão técnica; é um projecto moral e político. Exige líderes dispostos a enfrentar interesses entrincheirados, cidadãos engajados em exigir transparência e uma sociedade civil vigilante. Sem esse compromisso colectivo, as transições políticas serão meras trocas de poder, incapazes de romper o ciclo de desilusão.
Um chamado à coragem colectiva
Enquanto as nações adiarem reformas em nome da estabilidade ou da lealdade partidária, estarão condenadas a repetir os mesmos erros. A verdadeira transformação não nasce de discursos inflamados ou promessas eleitorais, mas de instituições robustas, capazes de proteger o bem comum mesmo sob pressão. Um sistema ético e resiliente é aquele que resiste aos piores impulsos humanos, garantindo que a integridade prevaleça.
A mudança estrutural é o alicerce do progresso genuíno. Ela cria as condições para que cidadãos não apenas sonhem com um futuro melhor, mas tenham as ferramentas para construí-lo. Essa é a revolução que importa — e ela exige coragem de todos: líderes que desafiem o status quo, cidadãos que cobrem accountability e sociedades que rejeitem a complacência. Somente assim poderemos transformar não apenas os sistemas, mas as próprias mentalidades que eles moldam.

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