EN380: a via insegura que desmente o discurso de estabilidade do governo

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  • Terroristas desafiam escolta e reacendem pânico em meio a um discurso triunfalista
  • Há um abismo entre a narrativa oficial e a reintegração em Cabo Delgado
  • Falhas existem não apenas na resposta, mas também na assistência às vítimas

Em plena luz do dia, terroristas ousaram desafiar a escolta militar e emboscar uma coluna de viaturas, forçando o Governo a reforçar o seu efectivo ao longo da estratégica EN380. Nas últimas semanas, a violência recrudesceu em Chiúre, Quissanga, Macomia e Ancuabe, onde as incursões incluem saques, raptos para extorsão e ataques súbitos, que nalguns pontos provocaram centenas de novos deslocados. Entre postos militares improvisados e comunidades devastadas, as velhas feridas do terrorismo reabrem-se, expondo uma administração do Estado inconsequente, que hasteia uma narrativa triunfalista, enquanto o inimigo, que, apesar de aparentar força, enfrenta as suas próprias fragilidades, até na luta por alimento, se agiganta e se torna mais ousado. O Evidências acompanhou o drama real que as vítimas do terrorismo viveram nas matas ou nas mãos destes. No interior das matas de Cabo Delgado, o inimigo que desafia as Forças de Defesa e Segurança (FDS) não vive apenas da força das armas, trava também a sua própria batalha contra a fome, a doença e a morte. É uma guerra dentro da guerra, invisível a quem olha de fora. Entre os que fogem e os que atacam, a linha entre vítima e vilão desfaz-se num cenário onde o Estado raramente chega e onde a religião é usada como véu para justificar o injustificável, enquanto que, de forma contínua, é adiada a exploração do tesouro do século, a exploração do gás de Rovuma, entre outros.

 Nelson Mucandze

Não há segurança garantida. Essa frase pesa como uma sentença sombria sobre as terras dilaceradas de Cabo Delgado, onde o medo tornou-se parte do dia-a-dia e a incerteza assombra até os que são escoltados pelas Forças de Defesa e Segurança (FDS). Nos últimos dias, o terror parece ter ganho novo fôlego, espalhando-se como sombra pelos distritos de Quissanga, Macomia e Ancuabe.

As incursões dos homens armados multiplicam-se, violentas e impiedosas, denunciando o aumento dos focos de ataque depois de uma relativa redução na quantidade e no impacto, levando de volta à realidade amarga a necessidade urgente de escoltas militares ao longo da Estrada Nacional 380 (EN380) que se estende do cruzamento de Silva Macua, em Ancuabe, até a sede de Macomia, e daqui até à localidade de Oasse, no coração do distrito de Mocímboa da Praia.

As escoltas, criadas em resposta ao recrudescimento dos ataques, são como frágeis escudos contra uma tempestade que não dá trégua mesmo que incapazes de confrontar as FDS em ataque directo. Só nos últimos 15 dias, os terroristas efectuaram ataques nos distritos de Macomia, Ancuabe, Mocímboa da Praia e Chiure, mas este último foi o palco de um dos mais brutais ataques recentes, que lançou centenas de famílias na dolorosa condição de deslocados, arrancadas das suas casas e dos seus sonhos.

Ao todo, de acordo com último balanço da Organização Internacional para as Migrações (OIM), publicado há uma semana eram contabilizados mais de 57 mil deslocados desde a última semana de Julho, devido à nova onda de ataques terroristas na província de Cabo Delgado.

Porém, mesmo envoltas em protecção armada, as viaturas não escapam à brutal realidade. No sábado, dia 09 de Agosto, duas delas, escoltadas pelas FDS, foram surpreendidas na localidade de Moja, distrito de Quissanga. O ataque foi violento e inesperado, eram os tiros a cortar o silêncio da estrada. Um homem foi ferido, e danos materiais deixaram marcas visíveis, como cicatrizes de uma guerra que não se declara, mas se vive na pele.

Uma marcha ré que expõe fragilidades das FDS

O terror provocou o seu medo e as viaturas que vinham logo atrás foram obrigadas a recuar, desfazendo o caminho já percorrido, até ao ponto inicial em Silva Macua, uma retirada dolorosa e humilhante, um recuo que, mais uma vez, veio expor as fragilidades das FDS, enquanto se enaltecia as forças ruandesas, obrigadas a actuar fora do seu raio de segurança (Palma e Mocímboa da Praia), apontadas como responsáveis da reposição da ordem que deu espaço às FDS para aumentar o seu efectivo na escolta.

Trata-se de um ataque que aconteceu apenas dois dias depois de outro episódio igualmente inquietante, onde um grupo de homens armados interceptou várias viaturas no trecho entre Nangololo (Muidumbe) e 19 de Outubro (Quissanga), exigindo dinheiro de resgate, baptizado por zakat que varia de 10 a 50 mil meticais, como se fosse um tributo imposto pela violência.

Não satisfeitos, os agressores saquearam os alimentos transportados em camiões, destinados a saciar a fome das famílias deslocadas de Macomia. Roubaram não apenas mercadorias, mas também a última esperança de sustento para aqueles que perderam tudo.

A dor desses deslocados, cuja vida virou um exílio forçado, é agravada por dificuldades logísticas e a insegurança permanente, conforme alerta o Instituto de Psicologia Paz de Moçambique (IPPM). Em relatório divulgado esta segunda-feira (11 de Agosto), com dados até 9 de Agosto, o IPPM denuncia a impossibilidade de levar assistência humanitária aos que dela mais precisam, reféns do caos e do medo.

No sul da província, em Chiúre-Velho, epicentro da nova onda de deslocados, a instabilidade persiste e os corpos continuam a ser encontrados, e o inimigo do Estado não são apenas Al Shabaab, estão também os Naparamas, cujas acções incidem sobre as FDS. Embora não se tenham sido registados novos ataques desde o dia 3 de Agosto, a calma aparente é apenas superficial. O distrito permanece um território onde a vida se mantém em suspenso, marcado por um silêncio tenso e por feridas abertas.

Ainda na semana passada, um dia antes de atacar a EN380, houve relatos de ataques nas matas de Mocímboa da Praia, Macomia e Ancuabe.

Outra guerra no meio dos Al Shabaab

Fiema Omar e Marijane Chande (à direita) ficaram como reféns dos terroristas por 10 meses.

No interior das matas de Cabo Delgado, o inimigo que desafia as FDS não vive apenas da força das armas, trava também a sua própria batalha contra a fome, a doença e a morte. É uma guerra dentro da guerra, invisível para quem olha de fora. Entre os que fogem e os que atacam, a linha entre vítima e vilão desfaz-se num cenário onde o Estado raramente chega e onde a religião é usada como véu para justificar o injustificável.

Fiema Omar Suajubu tinha 25 anos quando o mundo lhe foi arrancado de madrugada, em Setembro de 2020. Pangane, o reduto dos terroristas em Macomia, que desafiou o Estado e os seu mercenários, uma aldeia costeira onde nascera e crescera, dormia sob o som do mar quando o estampido das primeiras rajadas cortou o silêncio. Ela e os dois irmãos mais novos dormiam no quintal, ao relento.

“Acordámos com os tiros. Não deu tempo de procurar o resto da família. Já estávamos cercados”, busca lembrar Fiena, do interior de uma memória que a mente tentava enterrar para espantar o trauma.

A fuga foi instinto. Junto com outros moradores, correram até Nhate, também chamada Kunhatino, uma faixa de areia no extremo Sul de Pangane, encostada ao mar, sem saída. Ali, entre o sal e o medo, esperaram pelo amanhecer. Quando o sol nasceu, o ultimato veio com vozes secas e armas apontadas, quem quisesse viver, que se entregasse.

“Eu vi com os meus olhos… quem tentou correr foi abatido ali mesmo, sem palavra”, relata, para depois revelar que durante nove ou dez dias, cerca de mil reféns foram espalhados pela aldeia, divididos entre a escola, a mesquita e casas vazias.

Helicópteros surgiam ao longe, há fortes indícios de que se tratava de helicópteros da Dyck Advisory Group (DAG), mercenários sul-africanos contratados pelo governo, que ao contrário do grupo russo Wagner (que actuou entre 2019 e meados de 2020) tinham restrições para disparar indiscriminadamente, e os insurgentes punham panos brancos nas mãos dos civis, forçando-os a erguer o sinal de não combatentes.

“Éramos o escudo deles. Nunca sabíamos se o próximo tiro vinha de fora ou de dentro”, narra a jovem a jovem que ficou nove meses com terroristas nas matas.

Quando o cerco se desfez, Fiema tentou regressar para casa da avó. Escondeu-se debaixo de uma cama com os irmãos. Não durou. Os terroristas vasculhavam casa por casa. Ao encontrá-los, levaram-nos para Mucojo; dali para Quiterajo; depois, num barco, para Mocímboa da Praia, já tomada pelos insurgentes.

“Parecia que cada lugar estava mais longe de casa e mais perto do fim”, narra, enquanto luta pela sobrevivência com a irmã, que com ela foi raptada.

Em Nanquidunga, iniciou-se a separação. Crianças entregues a um combatente, mulheres a outro. Fiema viu a irmã mais nova ser levada e interveio.

“Eu disse que não ia deixá-la. Eles mostraram o chamboco. Disseram que iam bater até eu aceitar”,  resistiu seis dias, mas no fim cedeu.

A vida nas bases era feita de repetição. Um mês em Nhica do Rovuma, outro em Pundanhar, depois regresso à mata. Sempre em deslocação, escondidos, a temer que o próximo passo fosse o último. Os “bunkers”, buracos cavados no chão, eram refúgios improvisados contra drones e aviões. A violência era tão visível quanto calculada e previsível. Fiema viu mãos cortadas como castigo por roubo.

“Depois fritavam no óleo, para que todos vissem. Era uma lição para os outros. Os jovens raptados eram levados para treinar. Os mais velhos ficavam sob vigilância cerrada. A fome era todos os dias. Comíamos só mandioca, sem sal. Às vezes, nem isso conseguíamos”, lembra.

No início de 2021, as fissuras começaram dentro do próprio grupo. Uns queriam regressar a Mocímboa, outros manter posição em Nangade. Nessa altura, quatro reféns conseguiram escapar. O destino deles, Fiema só soube por rumores, talvez tivessem sido salvos pelas tropas ruandesas que avançavam logo na primeira semana que chegaram em Moçambique.

Em Julho, quando os ruandeses se aproximavam, o guardião mais velho, um homem alistado na fileira dos Al Shabaab à força, avisou-os. Na fuga apressada, levaram a irmã mais nova de Fiema, deixando-a para trás com a filha de um dos insurgentes. O velho entregou-se aos soldados e indicou a localização dos reféns.

O resgate foi rápido, mas a libertação, segunda ela conta ao Evidências, foi lenta. De Mocímboa, Fiema foi levada para Nanil, no distrito de Mueda, e só depois reencontrou a família. O reencontro não apagou o vazio.

“Registaram o meu nome em vários programas, mas nunca recebi nada. Nenhum psicólogo. Nenhuma ajuda”, afirma, sem pranto, como quem já conhece a dor.

Hoje, a guerra continua nas memórias. Fiema sabe que, tal como ela sobreviveu, muitos continuam na mata, entre a fome e a fé imposta. “Eles também têm medo. Mas ainda estão lá. E ninguém sabe até quando”.

A noite em que Atua Juma correu pela vida

As memórias de quem esteve nas matas são diferentes, mas todas elas expõe a mesma dor, o mesmo retrato e as dificuldades do Estado em distinguir os terroristas das vítimas, uma ausência total na assistência as vítimas, e por vezes, confundem-se em dar comida um dia, com assistência, ignorando o trauma da vítima.

Atua Juma lembra-se bem do som da noite em Mucujo Nambo, no distrito de Macomia. Era 2019 quando deixou a aldeia pela primeira vez, fugindo para Balama. Um ano depois, a guerra obrigou-a a continuar a fuga até Pemba. O ataque veio sem aviso. Era noite, e ninguém percebeu imediatamente a presença dos homens armados, de armas à catana.

“Nunca pensei que ia deixar a minha casa assim… correndo. Quando nos demos conta, já era tarde demais.”, conta, em conversa com a reportagem do Evidências, descrevendo como com um bebé de apenas um ano ao colo foi apanhada junto com outras quatro mulheres.

Eram cinco reféns e cinco insurgentes. Caminharam pela noite adentro, pés descalços na terra fria, até por volta das quatro da manhã, quando chegaram a Cobre, uma base secundária antes da principal. Ao alcançarem a aldeia de Hilala, o grupo dividiu-se: três terroristas desceram até Inguane, a seis quilómetros, para buscar cabritos e encontrar-se com outros combatentes.

Era já tarde. Teriam de passar a noite ali. O cansaço e a distracção abriram uma fuga de esperança.

“Olhei para a minha amiga e dissemos agora ou nunca”, disse Atua, descrevendo como as duas aproveitaram a escuridão para fugir. Correram até as pernas já não responderem. Ao ouvirem tiros, esconderam-se entre moitas. Ao amanhecer, retomaram o caminho, famintas e desidratadas.

Chegaram a Nagulue, no posto administrativo de Mucojo, sem saber onde estavam. A comunidade recebeu-as e alertou as autoridades. Um homem levou-as de bicicleta até à aldeia.

“Só pensava no meu filho… e em chegar viva. Quando olho para ele, lembro-me daquela noite. E nunca quero que ele viva o que eu vivi”, desabafa.

Das políticas descontinuadas, à farsa de reintegração

“Eu nunca vi jovens em idade de combate virem espontaneamente pedir reintegração. O que chega até eles são, na maioria, mulheres que estiveram nas matas, algumas na condição de cúmplices, e crianças. Os poucos jovens homens que encontrámos estavam, quase sempre, na condição de reféns. Talvez em Nangade a realidade seja diferente, mas daqui, de Palma, é isso que vejo”, explica o técnico de Cáritas, que pediu anonimato, quando convidado a falar de reintegração em todas suas cadeitas, afinal o Governo, no passado, levou a cabo uma campanha de sensibilização para que os jovens abandoassem as matas com promessas de perdão.

A situação é mais complicada do que parece. Não é apenas um problema de logística ou segurança, é também um problema de confiança. Não é apenas confiança nos órgãos do Estado, mas na própria comunidade.

“E quando se fala em reintegração, há outra pergunta inevitável. A comunidade está preparada para recebê-las de volta? Não há programas consistentes, desenhados para que a reintegração seja possível. Tudo depende de como a comunidade enxerga a vitimização do indivíduo, se o vê como vítima, há mais abertura; se o vê como agressor, o retorno é quase impossível”, disse a fonte que explica que o Estado em todos esses níveis não tem mecanismo de controlo sofisticados, afinal há inocentes que já foram sacrificados e vice-versa. Os casos de jornalistas e empresários locais são o mais comum.

A nossa fonte segue afirmando que quando se entregam, a maioria é presa. Os menores têm um tratamento diferenciado, com alguns programas específicos, mas os adultos, quase sempre, enfrentam o cárcere.

Apesar disso, ainda é possível encontrar jovens dispostos a regressar à vida civil. Muitos, em algum momento, tentaram levantar a voz para que o poder os ouvisse e valorizasse, mas sentiram que gritaram no vazio. A frustração, somada à falta de escolaridade e de perspectivas, empurra-os para uma visão imediatista, viver o presente, sem horizonte. Nesse contexto, a promessa de alguns milhares de meticais por mês torna-se um convite irresistível, mesmo que signifique voltar às matas.

Outros, porém, recusam-se. Dizem que o que viram é impossível de esquecer e não querem repetir a experiência. Tentam recomeçar em outros lugares, mas a sobrevivência é incerta e, sem alternativas, acabam cedendo à tentação de voltar.

“Há quem suspeite que parte dos combatentes vive entre nós, na cidade, durante o dia, cidadãos comuns; à noite, outra coisa. Isso explicaria os períodos de estranha calmaria, como se houvesse uma trégua tácita. No Ramadão, por exemplo, tudo parece parar, e a guerra silencia, mas é apenas um silêncio provisório, carregado de expectativa e medo”, desabafa.

 

Continua

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