Alex Barga lança “Aliança com a solidão” e fala de traumas e torturas sofridas por oito meses no tribunal

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  • Depois de ser encarcerado e acusado de tentativa de golpe de Estado

Encarcerado durante oito meses e acusado de crimes que rejeita com firmeza, Alex Barga saiu da cela com o corpo marcado e a voz mais afiada. Agora prepara-se para lançar “Aliança com a Solidão”, obra que nasceu no escuro da prisão, obra na qual narra torturas, injustiças e a dolorosa ausência de solidariedade entre escritores. Apesar do medo de novas perseguições, garante que continuará a escrever, e que no próximo ano dará à luz os poemas que o resgataram enquanto enfrentava a reclusão. Barga mostrou indignação pela indiferença da Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO) e toda a classe artístisca. Acompanha a seguir os excertos mais importantes.

Elísio Nuvunga

Jornal Evidências – Vai lançar em breve a segunda edição da sua obra “Aliança com a solidão” (publicada em 2016), um acto que, por sorte ou coincidência, acontece logo após a sua saída da cadeia. Quis aliar o título ao episódio vivido?

Alex Bargas – Olhando o contexto em que eu publico o livro e, depois, associando-o a tudo o que eu vivi na prisão, “A Aliança com a Solidão”, de certa maneira, acaba se enquadrando no tempo e no espaço, porque estamos a dizer que estive privado da liberdade, naquele lugar era eu apenas comigo, tinha a solidão da minha fiel companhia. A Aliança com a Solidão é mais do que a própria solidão.

Como descreve a “Aliança com a Solidão”?

– É um livro publicado em 2016, que é composto por vários poemas com componente lírica. São poemas mais virados para o amor. E nesses poemas também encontras aquilo que é a insatisfação do poeta em relação à forma como a sociedade actualmente encara o amor. A solidão nos poemas, eu refiro, digamos assim, ao amor vagabundo, que é o que tanto abunda por aí. E nós, como poetas, somos dados como seres lunáticos porque nós acreditamos no amor em que a sociedade actual, parcamente, já não acredita. Aliança com solidão é um livro que tem muito a ver comigo, os amores vividos, os amores atrás deixados.

Fala também de amor na sua obra. Quando ficou detido, na solidão da sua cela sentiu falta desse amor?

– Eu senti o amor da minha esposa, ok? E, olha, toda vez que ela levava uma refeição à prisão para mim, eu sentia-me muito perto dela, mas ao mesmo tempo distante. Eu estava sentindo que aquele muro constituía a barreira para que eu não pudesse enxergar o rosto dela. Eu sabia que do outro lado eu recebia a refeição. Eu sabia que por detrás daquele muro ali estava a minha alma gémea. Eu fui preso num contexto em que, na cadeia central, o regime era fechado – não se abria as portas para a visita.

Então, a reedição surge exactamente para explicar aquilo que viveu naquele lugar?

– Com certeza. Para explicar um pouco daquilo que vivi e para dizer uma coisa ou outra. Um dia, eu escrevi para ter também esta aliança com a solidão sem ter uma ideia real de como a solidão se manifesta em outros campos. Agora, numa prisão foi ter também outra faceta da solidão. Falei, praticamente, da solidão na vertente de quem está negado o convívio com a sua amada, com a liberdade.  A solidão na cadeia é mais dolorosa ainda.

“Fui abandonado pelos colegas das artes”

No poema “Sem Títulos 6”, fala de saudade, consolo, ausência, fala de muita coisa comovente. Por algum momento, quando esteve lá detido teria sentido algum tipo de abandono?

– Fui abandonado, sim, por um determinado grupo de pessoas. Fui abandonado por aqueles que são falsos amigos. Os meus verdadeiros amigos sempre estiveram comigo: os meus colegas das artes, os meus verdadeiros companheiros de combate. Aqueles que, usando a caneta igual a mim, lutam. Sempre estiveram comigo.

Dentre vários fazedores das artes quem mais esteve presente?

– Esteve comigo o Poeta Militar  (Sérgio Raimundo), José Sá, Melo Munguambe, Poeta Armaia, Miguel Honwana, entre outros. Mesmo estando encarcerado, sempre fizeram de tudo para transmitir algum calor para a figura, para a pessoa de Alex Barga. Os escritores iguais a mim é que me deram suporte. A minha família é que me deu suporte. Mas houve um determinado grupo de pessoas que esteve ausente. Aquele grupo até de que eu esperava mais. Até esperava que pudesse dar-me mais. Mas senti uma indiferença.

Disse que alguns colegas o abandonaram. Terá sentido o calor da AEMO (Associação de escritores Moçambicanos)? O que a organização fez em prol da sua Liberdade?

– Não fez absolutamente nada. Mas não fico surpreso com o posicionamento da Associação de Escritores Moçambicanos por uma razão: anda praticamente a reboque do regime. Então, se anda a reboque do regime, praticamente querem monitorar tudo o que é publicado. Então, para um “tipo” como eu, esperar pelo acolhimento da AEMO seria sonhar. Então, isto não doeu, porque eu já esperava essa atitude.

Na sua leitura, porque a AEMO ficou “indiferente”?

– A AEMO não publicaria praticamente uma obra de poesia de combate igual à minha. É daí que se viu aquela indiferença toda que se testemunhou durante a minha prisão. Há muitos escritores que vieram me abordar, que ´era para nós recorrermos à Associação de Escritores Moçambicanos, mas tristemente não fomos acolhidos´. Então, isso era de esperar.

Que mudanças espera da AEMO?

– Tem que haver uma vontade para que ela se efective. Mas não vejo essa vontade por parte dos dirigentes da AEMO.

Considera que as artes moçambicanas estão partidarizadas ou politizadas?

– Para quem assim deseja porque agora nós temos várias editoras. A ideia era exatamente esta: politizar. Mas, com o surgimento de editoras independentes, é praticamente impossível politizar, porque temos outros caminhos para publicar. Agora, se o único caminho fosse a AEMO, tenho a certeza que diríamos categoricamente que as artes estão politizadas. Diríamos isso.

É membro do AEMO?

– Nunca fui membro da AEMO. Talvez se fosse membro da AEMO ia por lá tentar forçar a mudança, mas há muita incompatibilidade de comportamentos que me impede de fazer parte.

Acha que há alguma cedência por parte de alguns escritores para a interferência do regime?

– A arte de alguns, dos que têm problemas de estômago, é que acaba sendo politizada. Os que fecham os olhos para certas realidades moçambicanas. Os que fecham os olhos são os que têm problemas de estômago. Então, o problema de estômago acaba falando mais alto que o espírito patriótico. E, daí, distanciam-se de escrever sobre aquilo que é o sentimento comum do povo, que é um sentimento de revolta, de cansaço. Esse povo não quer muito. Se esse governo fosse atento àquilo que são as necessidades básicas deste povo, acredito que não haveria nenhuma onda de manifestações. Mas no dia em que o governo der pão ao seu povo que pede pão, eu te digo que não haverá nenhum fogo de manifestação de muitos.

“’Quando a Morte é Alternativa à Sobrevivência’, colocou-me no centro das atenções do regime”

Há alguma obra que teria influenciado para a sua “perseguição”?

– Os escritores que se pautam pela intervenção social, como ficou provado nos meus escritos quando publiquei Quando a Morte é Alternativa à Sobrevivência”, colocam-se no centro das atenções do regime, o que terá sido também determinante para a minha prisão.

Qual deve ser o papel do escritor moçambicano num país marcado por desigualdades, perseguições, medo e silêncio?

– O poeta é a voz do povo. O que acontece é o poeta não querer assumir o seu lugar. Não é por temer essas perseguições. O poeta está a fugir do seu lugar porque teme a morte. A maioria foge. Agora vai aparecer o Alex Barga, vai aparecer o Poeta Raimundo, os que dão peito às balas pela causa da maioria. Então, outros preferem fechar as realidades, preferem oxigenar a alma, trazendo ficção, mundos imaginários, não pisar o chão, ficar pendurado sobre um muro, levitar.

Há quem ganhe com o silêncio?

– Ganham sim, porque são os tais que são presenteados, são os tais que merecem alguns estatutos na sociedade, são privilegiados, têm muitos benefícios. Há quem ganhe por isto.

Há muitos exemplos de pessoas que fingem que não estão cientes da realidade que se vive, e saem sempre falando asneiras, criticando sempre as pessoas que têm opinião diferente, querendo dar a entender que aquele grupo de pessoas é que está errado, os certos são eles, com todas as evidências claras.

Considera que actualmente ser escritor frontal, de combate, que discute os desafios dos moçambicanos é um acto de coragem?

– É um acto de coragem. É ser um suicida. A morte poderá bater-te à porta a qualquer momento.

É exemplo disso?

– Sim. Aquando da minha prisão, os indivíduos que me prenderam foram claros: mesmo que eu saísse da prisão, eles viriam atrás de mim. E eu, quando ando pela rua, ainda não me sinto seguro, hoje, de todos os lados. Há em mim trauma. Há também trauma nos meus filhos.

De concreto, o que ditou a sua prisão e o qual foi a justificativa das autoridades?

– Não houve nehum mandado de prisão. A minha prisão foi injusta. Houve uma tentativa de inventar provas que não existiam. Tardiamente, em Julho recebemos uma nota de acusação, fui preso em Janeiro enquanto já havia expirado o prazo para a prisão preventiva, o que, mais uma vez, constitui atropelo à lei. Na minha prisão, a lei foi pontapeada várias vezes: Fui torturado, as minhas primeiras interrogações foram feitas na ausência de um advogado. Fui na legalização a 17 de Janeiro com sequelas claras de tortura, mas o juiz fechou os olhos para essa realidade.

Após o julgamento, qual foi a conclusão da sua detenção?

– A acusação que veio depois está associada à acção criminosa, conspiração contra a segurança do Estado, tentativa de golpe do Estado. Para o meu conhecimento, os que fazem golpes são militares no activo. A não ser que a tal arma seja a minha caneta, que, através dela, queria protagonizar o golpe. Se for nessa vertente, sim.

Na sua obra, há um poema intitulado “Noite Memóravel”. O que mais te marcou naquele recinto? 

– A coisa que mais me marcou foi a soltura de Vitano Singano. Eu celebrei a soltura de Vitano Singano como se fosse a minha soltura porque aquele acto fez renascer em mim uma grande esperança: o Vitano estava a ser acusado de crimes mais ou menos similares aos meus. Eu sabia que nunca houve prova nenhuma e que toda narrativa que se criou foi com o intuito de nos incriminar.

Tem ideia do título do próximo livro?

– É um conjunto de poemas baptizados com o título “Resgatado das garras do Leão”. Não vai fugir muito daquilo que é Alex Bargas na sua escrita e pensamentos.

“Vitano Singano saiu da prisão sem nenhuma intenção de envolver-se em convulsões”

Partilhou alguns momentos com o político Vitano Singano. Como o descreve?

– Um grande homem. Alguém que amou  essa pátria até ao ponto de morrer por ela. Perdemos um grande homem.

O Vitano Singano teria partilhado consigo os seus planos futuros assim que fosse restituído à liberdade?

– Vitano Singano quando foi restituído a liberdade já nem tinha intenção nenhuma de envolver -se em nenhuma convulsão. Já assumia a sua idade, o seu estado de saúde. Saiu da prisão com a ideia de um pacificador, tinha planos de unir-se com diferentes forças políticas, com todos, inclusive com o Presidente Chapo. A ideia dele era cuidar do seu filho, não foi dado a oportunidade de viver esse momento. O povo moçambicano tem uma grande dívida com o Vitano Singano. É um dos poucos políticos sérios que temos nesse país. Podia dar show barato na televisão, mas era um homem de convicção, homem sério, homem que sentia dor.

Na obra há um poema denominado “Procura-se por uma palavra”, que palavra espera da justiça?

– Num contexto da justiça, daquilo que eu vivi, pelo tempo que fui privado, pela tortura, indemnização algo assim… Eu não espero nada. Não espero nada porque nenhuma das pessoas que foram presas no contexto das manifestações tiveram destino diferente. As pessoas foram mortas pela polícia durante as manifestações e não foram ao banco dos reus. Eles é que roubaram, mas como têm todo material bélico, máquina da justiça ao seu poder usam para nos subjugar. Da justiça dos homens não espero nada, mas, da justiça divina, eu espero. Deus vai fazer justiça por mim e para todos irmãos.

E quais são os planos futuros, o que se pode esperar sob o ponto de vista literário?

– Tenho planos de lançar um livro: um livro de poemas escritos na prisão. Tenho planos de lançar no próximo ano se ainda estiver vivo “Resgatado das garras do Leão”.

Depois de tudo o que aconteceu, não teme alguma represália de seguir firmemente como antes?

– Não vou deixar de ser o que sou, independentemente de tudo. A minha vinda ao mundo é norteada por uma missão. Sou o mais feliz dos homens porque descobri a minha missão.

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