Share this
- Mais de 70% dos graduados estão desempregados ou em empregos precários;
- Para Ferrão, academia não está preparada para enfrentar os desafios impostos pela sociedade e pelo Estado;
- De nada serve ter tecnologia, se ela não for integrada na pedagogia”, aponta;
- “Temos cursos que não respondem ao mercado e que, em muitos casos, continuam a formar para sectores saturados”.
Em Moçambique, o sistema de ensino superior enfrenta uma encruzilhada complexa. De um lado, milhões de jovens buscam na universidade a promessa de um futuro melhor, mas acabam por se deparar com o desemprego. Do outro, o mercado de trabalho clama por profissionais com competências práticas, domínio digital e capacidade empreendedora. Nesta edição, o académico e ex-governante Jorge Ferrão, com a sua visão 360º sobre o sistema de ensino superior moçambicano, desmistifica a ideia de que a universidade é uma solução mágica para a falta de emprego. Ele alerta que a academia não está preparada para enfrentar os desafios impostos pela sociedade e pelo Estado, que exigem transformações profundas e não simples reformas.
Luísa Muhambe
Inquéritos recentes e estudos sobre o desemprego em Moçambique indicam uma forte desconexão entre o ensino superior e o mercado de trabalho; uma pesquisa da Universidade Eduardo Mondlane revelou que 74% dos graduados estão desempregados ou em empregos precários, um outro inquérito de 2019 apurou que, embora 40% dos finalistas conseguissem emprego de imediato, 23% permaneciam desempregados e muitos dos que encontram trabalho não estão em posições que exijam a sua formação superior. Além disso, dados de 2017 mostraram que cerca de 03 milhões de jovens estavam em situação de NEET (Nem Empregados, Nem a Estudar, Nem em Formação Profissional). A transição para o mercado de trabalho é difícil, com graduados a levarem até 18 meses para conseguirem o primeiro emprego. O que se segue é um mergulho profundo nas causas deste problema e nas possíveis soluções para que as universidades moçambicanas se tornem relevantes para o país.
Como académico e ex-governante, o senhor tem uma visão 360º sobre o sistema de ensino superior moçambicano. Na sua análise, o desalinhamento entre o que se ensina e o que o mercado procura é o maior desafio actual? Porquê?
O tema é complexo. A universidade não é um local de certezas, mas de indagações, questionamentos, desacertos e uma busca incessante pela verdade. Então, nem sempre existem respostas, sobretudo quando o país tem milhões de jovens desempregados e julgamos que passar pela Universidade seria uma solução mágica para tudo. Não é e nunca será. No mundo e noutros países, a universidade confronta-se com uma situação complexa. Várias crises, legitimidade, institucionais e financeiras. Por outro lado, são-lhe feitas exigências cada vez maiores por parte da sociedade e do próprio Estado, no caso dos jovens que nós graduamos. Duplamente desafiada pela sociedade e pelo Estado, a universidade não parece preparada para enfrentar os desafios, tanto mais que estes apontam para transformações profundas e não para simples reformas parcelares. Esta seria a impreparação, conjuntural e estrutural, pois as respostas levam o seu tempo e não sabemos como alterar esses padrões. Enfim, temos alguma aversão à mudança rápida e de seguir os tempos.
A maioria das empresas reclama da falta de competências práticas nos recém-graduados. Qual é a responsabilidade do sector privado em comunicar as suas necessidades e quais são, hoje, as competências que as empresas moçambicanas mais procuram e que as universidades não estão a fornecer?
– As empresas procuram cada vez mais jovens com competências práticas, capacidade de adaptação, domínio de ferramentas digitais e espírito empreendedor. No entanto, muitas vezes as universidades ainda formam estudantes apenas para repetir teorias. Falta prática laboratorial, experiência de estágio, contacto com situações reais de trabalho e, sobretudo, competências transversais como comunicação, resolução de problemas e trabalho em equipa.
Até que ponto o currículo universitário em Moçambique está preso a modelos teóricos descontextualizados? Como mudar isso na prática?
Grande parte dos currículos foi herdado de modelos estrangeiros e pouco dialoga com as necessidades do país. Temos cursos que não respondem ao mercado e que, em muitos casos, continuam a formar para sectores saturados. A mudança passa por rever currículos regularmente, envolver o sector produtivo na sua elaboração e criar mecanismos de flexibilidade, para que as universidades moçambicanas se adaptem rapidamente às transformações da economia e da sociedade.
O governo, enquanto regulador, também tem um papel crucial. Que tipo de políticas públicas poderiam incentivar essa colaboração entre a academia e o sector privado e garantir que os novos cursos sejam de facto relevantes para o país?
O governo, mesmo com tantas dificuldades e carências financeiras, pode oferecer incentivos fiscais para empresas que acolham estagiários, invistam em investigação aplicada ou (co)financiem laboratórios universitários. Além disso, pode criar fundos competitivos de inovação, onde projectos que unam empresas e universidades tenham prioridade de financiamento. É importante também reconhecer formalmente as empresas que investem em formação e investigação, criando um selo de mérito nacional.
Há exemplos em Moçambique ou na região que possam ser escalados?
Sim, há boas práticas. Em Moçambique, experiências como o programa “Um estudante, e uma família”, e outros, pois este eu conheço bem, que aproxima a formação académica da realidade social, e eles podem ser adaptados ao sector empresarial. Também existem casos em que faculdades de engenharia colaboram com empresas de energia e construção em pequenos projectos de investigação aplicada. Temos discutido com a Gigawatts sobre como operacionalizar este modelo. Na região, países como a África do Sul e o Ruanda têm modelos interessantes de incubadoras ligadas às universidades, que poderiam inspirar Moçambique.
Como integrar tecnologia e digitalização nos cursos sem aumentar substancialmente os custos?
É preciso criatividade. Não se trata apenas de comprar equipamentos caros, mas de usar os recursos disponíveis de forma inteligente. O ensino pode incorporar plataformas digitais de baixo custo, software livre, bibliotecas virtuais e parcerias com empresas tecnológicas que já operam no país. Também é essencial capacitar os docentes para usar essas ferramentas, pois de nada serve ter tecnologia, se ela não for integrada na pedagogia.
Qual o papel das universidades na formação empreendedora e na criação de emprego próprio?
As universidades devem ensinar os jovens a criar soluções e não apenas a procurar emprego. Isso significa incluir no currículo disciplinas de empreendedorismo, incubadoras de startups, concursos de inovação e programas de mentoria. O empreendedorismo não deve ser visto como um “plano B”, mas como uma via legítima para gerar riqueza e emprego no país.
Como medir se uma reforma curricular está a resultar (que indicadores usar)?
O melhor indicador é a empregabilidade dos graduados. Quantos conseguem emprego na sua área de formação e em quanto tempo. Outros indicadores são a satisfação dos empregadores, a taxa de estudantes que criam negócios próprios, e a quantidade de projectos de investigação aplicada que chegam ao mercado. É preciso criar observatórios de empregabilidade em cada universidade para acompanhar esses resultados.
Que passos imediatos recomendaria a uma reitoria que queira começar a alinhar oferta formativa com o mercado?
Começaria por ouvir as empresas, os empregadores e os próprios estudantes. Esse diagnóstico inicial deve ser seguido de uma revisão curricular urgente nas áreas mais críticas. A seguir, criaria gabinetes de estágios obrigatórios e fortaleceria o acompanhamento dos graduados. O diálogo contínuo com o sector produtivo é a chave. As nossas universidades que se fecham em si mesmas perdem relevância. Mas não o fazem de forma propositada. O mercado de trabalho muda bem mais depressa que a mudança curricular. Por isso teremos de nos ajustar a um mundo em rápida mudança e nunca esquecer a Inteligência artificial e as novas propostas digitais.
Como evitar que a ênfase nas competências técnicas sacrifique o pensamento crítico e a cidadania?
O equilíbrio é fundamental. Formar para o mercado de trabalho não deve significar formar apenas “técnicos de botão”. É necessário que os jovens saibam pensar criticamente, questionar, ter valores éticos e compreender a realidade social do país. As universidades moçambicanas, sobretudo que possuem fundos públicos e os institutos politécnicos, devem formar profissionais competentes, mas também cidadãos conscientes, capazes de contribuir para a democracia e para o desenvolvimento sustentável. Nem todos os cursos poderão fazer, mas os técnicos e ligados ao STeM (S – Science, T – Technology e – conectando as áreas como M– Mathematics), ou seja, uma abordagem educacional que integra os conceitos e práticas de Ciência, Tecnologia e Matemática de forma interdisciplinar e aplicada, podem e devem ajudar neste desiderato.
Que papel a diáspora e as empresas estrangeiras podem ter nesse processo?
A diáspora é um recurso precioso. Muitos moçambicanos que trabalham fora acumulam experiência em contextos avançados e estão disponíveis para partilhar conhecimento e abrir portas. O país deve criar programas de mobilidade e incentivos para trazer essa experiência de volta, nem que seja temporariamente. Já as empresas estrangeiras, quando se instalam em Moçambique, devem ser incentivadas a investir na formação de jovens locais e a estabelecer protocolos claros.

Facebook Comments