Oportunismo partidário, messianismo político e o perigo da imbecilidade colectiva

OPINIÃO
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John Kanumbo

Nenhum cisma histórico, nenhuma revolução intelectual nasceu de uma vaquinha online. Martinho Lutero não pediu moedas para rachar a Igreja. O socialismo, o anarquismo, os movimentos libertários não passaram a sacola para se erguer. A política moçambicana, porém, vive hoje a sua maior distorção histórica: partidos transformados em startups eleitorais, bandeiras em marcas publicitárias e promessas em produtos de mercado.

A palavra “partido” deriva do latim partitus: dividido, separado. Historicamente, partidos não representavam o todo, mas uma parte organizada da sociedade. No século XVII europeu, com o declínio do absolutismo, partidos surgiram como instrumentos de ideias: liberalismo, conservadorismo, socialismo. A função não era meramente conquistar cargos, mas canalizar projectos colectivos. Eram projectos de filosofia política, não empresas de marketing.

O século XIX consolidou o modelo partidário em sistemas parlamentares. Partidos britânicos, franceses e alemães nasceram como plataformas de classes sociais específicas. O Partido Trabalhista Britânico, por exemplo, emergiu dos sindicatos; já os jacobinos e girondinos, na Revolução Francesa, representavam projectos políticos opostos e não apenas ambições pessoais.

No continente africano, os partidos nasceram como movimentos de libertação: FRELIMO, MPLA, ZANU-PF, ANC. Tinham ideologia, base popular e objectivo único: independência. Mas a transição para partidos de governo trouxe consigo burocratização, centralização e elitização. A política, que antes inspirava sacrifício, tornou-se instrumento de status. Eram organizações ideológicas, com sacrifícios reais. Mas, após a independência, tornaram-se partidos-Estado: elites revolucionárias transformaram-se em aristocracias partidárias, perpetuando desigualdades.

Em Moçambique, desde 1975, a FRELIMO ocupa o poder de forma hegemónica, controlando instituições, tribunais, parlamento e mídia. Assim, “democracia multipartidária” tornou-se apenas uma formalidade, uma eleição onde resultados já são previsíveis.

E hoje, em Moçambique, partidos deixaram de ser estruturas programáticas para se tornarem instrumentos de carreira, centralização e autopromoção. O recente surgimento da ANAMOLA (Aliança Nova para um Moçambique Livre e Autónomo) ilustra essa transformação: uma legenda que pede contribuições ao povo antes mesmo de provar a sua seriedade ou apresentar uma base social concreta.

Startup Eleitoral: O Caso ANAMOLA. ANAMOLA apresenta-se como uma “nova força política”, mas nasce sob a lógica de espectáculo: dependência de vaquinhas online, slogans emocionais e carisma do seu líder, Venâncio Mondlane (VM7). A história política africana mostra que movimentos baseados em idolatria tendem a repetir os erros dos seus antecessores. Contudo, a história africana mostra que tais movimentos frequentemente replicam a lógica dos seus antecessores: promessas grandiosas, centralização de poder, ausência de prestação de contas. Embora proclame ser “a nova força”, a sua estrutura inicial já revela práticas antigas: centralização de liderança, ausência de prestação de contas, dependência de carisma individual. A história ensina que partidos que nascem com culto à personalidade dificilmente se convertem em instrumentos democráticos.

Em Agosto de 2025, em Maputo, o partido realizou um encontro extraordinário para definir a Comissão Executiva: Venâncio Mondlane (presidente interino); Alberto Manhique (secretário-geral); Dinis Tivane (porta-voz); Elsa Ritchua e David Bandeira (mobilização); Nyeleti Brito (conselho nacional); Graciete Vanessa (finanças); Sheila Nhassengo (protocolo). Criaram-se ainda a AMA (Mulher ANAMOLA), AJA (Juventude ANAMOLA) e ALO (Aliança de Ouro). Apesar da retórica de inclusão, a composição revela uma elite urbana, articulada e próxima ao poder. A ausência de representantes directos de bairros periféricos como Chamanculo ou Namicopo desmonta o slogan “ANAMOLA somos todos nós”? Essa frase soa mais como peça de marketing do que como realidade sociológica. Não corresponde ao mosaico social moçambicano, mas reflecte um grupo com acesso político. A alergia à crítica entre simpatizantes reforça isso: quem questiona o partido é acusado de traidor, tal como ocorria no auge da FRELIMO revolucionária.

Em Setembro de 2025, o partido realizará o primeiro Conselho Nacional e lançará oficialmente a sua marca política. Até aqui, tudo parece legítimo: organização interna, nomeação de quadros, formalização de estruturas. Mas surge a questão: onde estão as bases populares que sustentam o slogan “somos todos nós”? Onde estão representantes de bairros periféricos, mercados, zonas rurais ou colectivos marginalizados?

A composição revela um partido formado por uma elite urbana, com experiência política prévia e proximidade com instituições. A frase “somos todos nós” soa mais como marketing do que como realidade sociológica. Como bem observou Hannah Arendt, a política autêntica nasce da pluralidade; sem ela, transforma-se em espetáculo.

Venâncio Mondlane: Anti-FRELIMO ou Produto da FRELIMO? VM7 é uma figura paradoxal. Conhecido pela postura combativa contra a FRELIMO, ele é, paradoxalmente, produto político do mesmo sistema que critica. Filho das estruturas do poder sulista, construiu sua trajectória sob a hegemonia cultural e política consolidada desde a derrota de Ngungunhane. Essa elite, segundo historiadores como Allen Isaacman, monopolizou recursos, educação e representatividade nacional.

A sua ascensão política lembra a advertência de Frantz Fanon: elites locais frequentemente assumem a retórica libertadora apenas para suceder o colonizador ou a elite dominante. Em vez de transformação, o país assiste à reciclagem de protagonistas.

Em termos gramscianos, Mondlane é uma fracção da elite que disputa hegemonia, mas não rompe com ela. A sua ascensão reflecte uma luta interna pelo poder, não uma transformação estrutural. A retórica anti-FRELIMO mascara alianças implícitas: a elite sulista permanece no comando, apenas reconfigurada.

A idolatria em torno de VM7 lembra o culto a Samora Machel: líderes convertidos em símbolos intocáveis. A juventude ANAMOLA reproduz a “cultura de partido-igreja”: quem critica o líder é visto como inimigo. O discurso de renovação esconde práticas autoritárias herdadas.

Messianismo político e cultura de partido-igreja. Em Moçambique, líderes são rapidamente convertidos em ícones intocáveis. Mondlane é apresentado como “salvador” da democracia, enquanto a juventude ANAMOLA se organiza em torno de uma devoção quase religiosa. Essa idolatria transforma partidos em igrejas, com líderes-pastores, congressos como cultos de avivamento e discursos carregados de emoção. Como alertou Umberto Eco, esse fenómeno se aproxima do fascismo emocional: quando a política é substituída por fé cega, o espaço público deixa de ser um lugar de debate e passa a ser palco de espetáculo. A crítica, nesse ambiente, é tachada de traição. A juventude, desprovida de formação política sólida, transforma-se em plateia. O partido ganha características personalistas e enfraquece a cidadania.

A adesão emocional a um líder ou partido sem questionamento é um fenómeno histórico. Socrates já dizia: “A ignorância é a mãe de todos os males.” Fanon alertou para o perigo de elites africanas substituírem o colonizador sem libertar o povo. Foucault descreveu o poder como uma rede invisível que se reforça justamente pelo consentimento das massas.

Imbecilidade colectiva: a emoção organizada. O Conselho Nacional marcado para Setembro de 2025 será mais do que um evento organizacional: será um termómetro da maturidade política moçambicana. Tudo indica, porém, que será dominado pela “imbecilidade colectiva”: uma suspensão voluntária do pensamento crítico, onde a emoção substitui a razão e slogans abafam questionamentos.

O ANAMOLA mostra sinais disso: críticas são mal recebidas; Mondlane é visto como “o escolhido”; a juventude é mobilizada como plateia. Essa imbecilidade colectiva, como fenómeno sociopolítico, é perigosa: legitima decisões sem debate, normaliza a centralização de poder e cria terreno para autoritarismos.

Como definiu Hannah Arendt, a banalidade do mal surge quando decisões absurdas se tornam normais ao serem aceitas em massa. Moçambique vive esse risco: partidos repetem velhos erros, líderes centralizam poder e a juventude adere cegamente.

No lugar de ideologias, partidos modernos se comportam como startups: criam marcas, slogans e campanhas de arrecadação. A dependência de “crowdfunding popular” sem prestação de contas é preocupante. Revoluções históricas: a Reforma Protestante de Lutero não pediu esmolas para lançar as 95 teses. O Socialismo Utópico, o Anarquismo não começaram pedindo esmolas. Elas nasceram de ideias radicais, organização intelectual e coragem política.

Hoje, partidos pedem ao pobre para financiar a luta contra outro pobre que está no poder. É a inversão completa do contrato social: cidadãos sustentam elites que, no poder, esquecem-se de quem os apoiou. A RENAMO fez o mesmo: dizia representar todos, mas concentrou benefícios em um círculo restrito.

Imaginemos: se cada deputado, directores, secretário do Estado, Professor, médico moçambicano destinasse 5.000 meticais de seu salário mensal para projectos sociais, quantas escolas poderiam ser construídas? Quantas famílias seriam apoiadas? A resposta mostra a distância entre discurso e prática. A política tornou-se um negócio lucrativo e a ANAMOLA, até aqui, não demonstra ser excepção.

A pobreza, já usada como justificativa política, agora vira capital financeiro para startups eleitorais. Em um país com fome e desemprego, isso é mais exploração do que participação democrática. Hoje, partidos pedem ao pobre que financie a luta contra outro pobre que está no poder. A pobreza, já usada como justificativa política, agora se torna capital financeiro para startups eleitorais. Em um país de fome e desemprego, isso é exploração, não participação democrática.

Activismo social vs. militância partidária. Activismo social luta por causas universais e independentes de partidos. Militância partidária serve uma estrutura de poder, mesmo que bem-intencionada. Em Moçambique, partidos cooptam activistas, transformando causas legítimas em trampolins eleitorais. A entrada de jovens activistas na ANAMOLA pode enfraquecer a autonomia dos movimentos sociais, essenciais à democracia.

Moçambique vive hoje uma febre política disfarçada de debate democrático. Em todo o canto, analistas, pastores, reitores e intelectuais se expõem com posicionamentos explícitos em favor deste ou daquele partido, sem qualquer pudor. O que deveria ser um espaço de lucidez crítica e equilíbrio intelectual tornou-se um campo de disputa ideológica e propaganda velada. A academia moçambicana, que deveria estar acima da histeria eleitoral, já se transformou em mais um braço do partidarismo nacional.

A neutralidade intelectual é uma ficção. Quando reitores, analistas sociais e figuras religiosas escolhem abertamente “lados” políticos, em nome de supostos valores ou afinidades, a sua credibilidade académica se dissolve. Não se trata de negar o direito de cada um à opinião; trata-se de denunciar o uso do prestígio intelectual para sustentar bandeiras partidárias. Muitos se dizem apenas “simpatizantes”, alegando uma diferença entre simpatia e filiação, mas na prática actuam como militantes de campanha.

A sociedade civil moçambicana também se partidarizou. ONG, colectivos, movimentos culturais, tudo tem lado, bandeira, cor. Há quem diga que é impossível ser neutro; mas o problema não é escolher lado, é usar o título de académico, pastor ou activista social para legitimar uma guerra de partidos travestida de luta pelo povo.

Em meio a este cenário, surge um novo partido ou movimento, ou “plataforma de mudança”, como preferem chamar. Essa confusão semântica não é casual; é parte de uma estratégia para ganhar simpatizantes sem os comprometer como militantes. Mas, afinal, o que é um partido?

Partido político é uma organização estruturada, com estatutos, direcção, ideologia formalizada e objectivos eleitorais claros. Um partido existe para disputar o poder do Estado dentro de um regime institucional.

Movimento revolucionário vai além: é uma força social que busca transformações estruturais, muitas vezes ignorando as regras do sistema e rejeitando o “jogo democrático”. Ele não vive de eleições, mas de rupturas.

Simpatizante é alguém que se identifica com uma causa ou ideologia sem filiação formal; membro é quem assume responsabilidade política, estatutária e prática dentro de uma organização.

Hoje, muitos preferem se apresentar como simpatizantes de movimentos políticos para manter a imagem de neutralidade, quando, na realidade, já actuam como militantes activos, mobilizando redes, influenciando o debate público e desestabilizando rivais.

A sociedade civil em transe político. Essa partidarização generalizada mostra que Moçambique ainda não amadureceu no conceito de democracia. Analistas e académicos confundem opinião com militância; líderes religiosos abraçam partidos como novos púlpitos; ONG se tornam plataformas de campanha. A sociedade civil, que deveria ser vigilante e independente, tornou-se um exército informal de propagandistas, todos travestidos de defensores da “mudança”.

Isso não é democracia. É um teatro onde cada actor veste uma máscara de neutralidade, mas carrega a bandeira do seu partido favorito. O povo, mais uma vez, é usado como escudo ideológico.

O partido nascente não é apenas um novo actor político; é também uma narrativa: a de que uma “nova revolução” está em marcha. Mas revolução não é simplesmente substituir as caras do poder; revolução é transformar a estrutura do poder, desmontar privilégios, criar uma nova ética política. O que temos hoje não é revolução, mas um mercado político competitivo, onde novos partidos usam a insatisfação popular como trampolim eleitoral.

Enquanto isso, o discurso do “simpatizante” serve como refúgio para intelectuais e activistas que querem parecer neutros, mas trabalham activamente para os seus aliados.

Uma academia capturada. O maior prejuízo dessa partidarização não é apenas político, mas intelectual. Quando a academia deixa de ser um espaço de debate independente para se tornar uma extensão de partidos, ela perde o seu poder de crítica. Professores viram cabos eleitorais, pastores tornam-se militantes, analistas sociais transformam-se em propagandistas. Se o conhecimento não é livre, a democracia é apenas uma ilusão.

Política é negócio do ciclo africano de frustrações. Desde a independência, partidos libertários africanos transformaram-se em aristocracias políticas. FRELIMO, MPLA, ANC e ZANU-PF passaram de bandeiras de luta a máquinas eleitorais, perpetuando desigualdades. Moçambique segue este roteiro: eleições previsíveis, instituições capturadas e uma política transformada em mercado. ANAMOLA corre o risco de ser mais um capítulo dessa história: uma nova marca, com os mesmos vícios.

Por uma nova cultura política. Moçambique não precisa apenas de novos partidos; precisa de uma revolução ética e intelectual. Como lembrou Arendt, política autêntica nasce da pluralidade, não do culto ao líder. A verdadeira mudança exige líderes com carácter e cidadãos questionadores. Sem transparência e prestação de contas, partidos que pedem esmolas antes do poder jamais o farão depois de conquistá-lo.

A ANAMOLA pode optar por ser um instrumento de mudança ou mais uma empresa política disfarçada de revolução. O cenário actual indica o segundo caminho: centralização, marketing emocional e ausência de debate real. A revolução não se compra. Não se pede em moedas. Ela nasce do pensamento crítico, da coragem e do carácter, virtudes ainda raras na política moçambicana contemporânea.

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