Paga-se para ter acesso ao bloco operatório do Hospital Central de Maputo  

SAÚDE SOCIEDADE
  • Enfermeiras e parteiras institucionalizam boladas de partos       
  •      Quem tem 15 mil meticais é levada prontamente para o bloco operatório
  •             Quem não dispõe do valor fica entregue a sua própria sorte
  •             Mulheres relatam o drama que viveram na maior unidade sanitária do país 

Dar parto a cesariana é sinónimo de sofrimento e angústia no Hospital Central de Maputo (HCM). Naquela unidade sanitária, por sinal a maior do país, prospera sob olhar impávido das autoridades um esquema de extorsão às gestantes que se deslocam para ter um parto a cesariana. Ao Evidências, algumas parturientes que passaram pelo bloco operatório do HCM denunciaram maus tratos e violência psicológica pelos quais passaram, antes de se verem obrigadas a pagar para realizarem o sonho da maternidade. A prática é atribuída a um sindicato criminoso formado por enfermeiras, em conluio com parteiros afectos à maternidade. As vítimas ainda estão traumatizadas e aconselham as mulheres a se prepararem financeiramente para “comprar” aquele serviço que em condições normais é gratuito no Sistema Nacional de Saúde.

Texto: Duarte Sitoe e Neila Sitoe

Há alguns anos, o sector da saúde no país decidiu adoptar o lema “O Nosso Maior Valor é a Vida”, num esforço visando humanizar os serviços, no entanto, quando tudo parecia que os maus tratos nas diversas unidades espalhadas por este belo Moçambique já faziam parte do passado, o Hospital Central de Maputo provou o contrário.

Naquela unidade sanitária, segundo denúncias de parturientes, trazer ao mundo uma vida tem sido uma jornada cheia de percalços. Embora, no serviço normal, o parto seja completamente gratuito, as gestantes que têm cesarianas marcadas são obrigadas a pagar valores que chegam a 15 mil meticais para poderem ter um atendimento humanizado.

Quem não tem dinheiro, narram as fontes, arrisca-se a prolongar as agoniantes dores de parto, ouvir insultos ou mesmo perder o bebé, pois o referido sindicato criminoso dá prioridade e primazia a pacientes que conseguem pagar para “furar” a lista para ter um parto a cesariana.

Da boca de quem já esteve com dores do parto à boca do bloco operatório do Hospital Central de Maputo ouve-se, diga-se em abono da verdade, episódios dignos de um filme de terror e histórias para deixar qualquer mortal revoltado.

Amélia Salvador, de 31 anos de idade, mãe de primeira viagem, conta que devido ao trauma gerado pela experiência amarga que teve durante horas nas mãos de enfermeiras do Hospital de Maputo nunca mais voltará a colocar os pés numa maternidade.

Sem conseguir segurar as lágrimas, Amélia revela que teve uma gravidez de risco e durante as consultas pré-natal foi informada que quando chegasse o tempo do parto tinha que se dirigir ao Hospital Central de Maputo ou Hospital Geral José Macamo, uma vez que o seu parto seria a cesariana. Como tal, quando a bolsa estourou dirigiu-se à maior unidade sanitária do país, contudo, sem contar que viveria um dos piores dramas da sua vida.

“Eram 3:40 minutos quando a minha bolsa estourou em casa. Segui todas as orientações que me deram durante o período pré-natal. Cheguei ao Hospital Central por volta das 5:00 horas, mas só fui atendida duas horas”, revela.

Depois de uma longa espera, Amélia Salvador finalmente foi examinada por um médico. Segundo a fonte, o médico observou que não havia dilatação necessária para o parto, tendo pedido a enfermeira que trouxesse comprimidos para induzir o parto, mas, debalde, a maior unidade sanitária do país não tinha a medicação que o médico receitou, o que é comum nos últimos anos nas unidades sanitárias públicas. Embora o governo nunca assumiu, nos últimos dias começou a escassear até um simples paracetamol nas farmácias dos hospitais.

HCM não tem medicamentos de indução de partos

Para solucionar a ausência de medicamentos de indução de parto naquela unidade sanitária, o médico passou uma receita e entregou à gestante para pedir um familiar para comprar numa farmácia privada.

“O médico que receitou o comprimido estava de saída, mas deixou orientação para que se até às 16:00 horas não tiver dilatação necessária para o parto normal, deviam conduzi-la à sala de cirurgia para fazer a cesariana. Mas a informação saiu com o médico. Às 9:00 horas me administraram o comprimido que a minha família trouxe, mas deram-me apenas metade”, relata.

Amélia conta que volvida uma hora depois da administração do comprimido iniciaram as contracções e dores, contudo, tal como havia sido previsto durante as consultas pré-natais, não conseguia ter dilatação suficiente para um parto normal.

“Informei a enfermeira que o médico disse que se até às 16:00 horas não houvesse dilatação necessária o meu parto devia ser a cesariana, mas ela ignorou-me. Terminou o turno dela e chegou outra equipa de médicos que constatou o mesmo problema. Já eram quase 18:00 horas, mas a médica disse que devia esperar a dilatação porque o parto tinha que ser normal, ignorando a informação que vinha na minha caderneta de saúde”, desabafou.

Segundo a sobrevivente, por volta das 20:00 horas veio um médico de nacionalidade chinesa, que constatou que a dilatação continuava longe da exigida para um parto normal, tendo administrado uma vacina e recomendou aos enfermeiros para a levarem ao bloco operário, mas enfermeiros fizeram ouvidos moucos.

“Por volta da meia-noite chegou uma outra médica que olhou para o meu histórico de saúde e disse a equipa para me levar para o bloco operatório, visto que eu não poderia sobreviver a um parto normal e não tinha como o meu parto ser normal, e saiu. No entanto, a enfermeira disse-me que o bloco operatório estava cheio e mandou-me aguardar”, lamentou, suspeitando que a longa espera era uma estratégia para pressioná-la a pagar.

Temendo pela própria vida e do filho que estava no seu ventre, Amélia ficou enfurecida e começou a clamar pelo socorro. Os enfermeiros ignoraram as súplicas da gestante, mas o médico chinês viria evitar o pior, ordenando que fosse imediatamente levada ao bloco operatório.

“Mesmo aos murmúrios, a enfermeira viu-se obrigada a me levar para o bloco operatório. No meio do trajecto ela me acusou de estar a estragar a fila, uma vez que estavam pessoas que já haviam pago para receber um atendimento especial. Na entrada do bloco operatório, uma das enfermeiras disse ‘finalmente pagaste’. Foi aí que descobri que existia um esquema naquele hospital”, relatou o drama.

O parto decorreu sem sobressaltos, porém a criança nasceu com problemas gástricos devido a morosidade no parto e indução mal feita, daí que teve de ser internada.

“Felizmente, tudo correu bem durante a cirurgia, mas a criança ficou alguns dias no hospital porque estava a fazer lavagem gástrica. Depois de alguns dias de ansiedade e angústia pude levar a minha Wanga para casa, mas até hoje continuo traumatizada e só voltarei a uma maternidade no dia que tiver dinheiro para pagar os médicos”, relatou.

A dor de quem viu o sonho de ser mãe adiado por ser pobre

O escritor chines Yutang Lin defende que “entre todos os direitos da mulher, nenhum é maior que o de ser mãe. Entretanto, Fânia Gulumbe viu este direito negado pelas enfermeiras da maternidade do Hospital Central de Maputo.

Gulumbe, de 28 anos de idade, contou ao Evidências que foi diagnosticada com uma gravidez patológica e por ter ficado doente durante a gestação sabia que o seu parto seria a cesariana, mas como não dispunha do valor exigido pelos médicos o bebé nasceu morto. Infelizmente, ninguém foi responsabilizado pela negligência hospitalar.

“Cheguei ao hospital de madrugada e já não aguentava por conta das dores. Encaminharam-me para a maternidade. Depois de uma hora veio uma enfermeira para me observar, olhando para a minha caderneta viu que o meu parto tinha que ser a cesariana. Estando o hospital cheio, ela pediu para que transferisse 15 mil meticais para a conta móvel dela para ser levada prontamente para o bloco operatório”, denuncia a vítima.

O valor pedido era proibitivo para Gulumbe, que, por sua vez, tentou contactar o esposo para ver se conseguia aumentar os três mil que tinha na ponta da capulana, mas ele também não dispunha do valor solicitado no Hospital Central de Maputo para ter acesso a sala de operações.

“Disse a enfermeira que só tinha três mil meticais, mas ela disse que o valor era pouco. Depois de algumas voltas veio dizer-me que com 10 mil podia ir ao bloco operatório em menos de duas horas. Implorei para ela aceitar os três mil, mas, com um olhar sarcástico, ela disse que ainda iria sentir muitas dores”, lembra.

Desesperada e já sem forças, Fânia Gulumbe viu a luz sobre o fundo do túnel quando houve mudança de turno. Gulumbe contou que foi observada por um médico que disse que voltaria para autorizar a sua transferência para o bloco operatório.

“Naquele momento renasceu a esperança de ter o meu filho nos braços. Comecei a fazer força para o bebé sair, mas infelizmente nada aconteceu. O médico voltou e deu aval para que fosse transferida para o bloco operatório. Para o meu espanto, as enfermeiras me levaram e deixaram-me sozinha, e ficaram num canto a conversar. Continuei a fazer força, quando senti que o meu filho estava a sair gritei como louca e as enfermeiras apareceram”, relatou com voz trêmula, para depois acrescentar que o bebé nasceu morto e foi acusada pelas enfermeiras pela tragédia, por não ter aceite pagar suborno.

“Quando gritei, as enfermeiras vieram na companhia de uma médica, mas uma parte do bebé já estava fora. Ajudaram a tirar a parte do bebé que faltava. O meu filho não chorou e percebi que ele não estava bem. Depois de uns minutos entregaram-me o meu filho para eu o ver e disseram que nasceu morto. Não quis acreditar no que ouvi e, para acrescentar a minha dor, a enfermeira que me cobrou dinheiro veio esfregar na minha cara que iria para casa com os braços a abanar por ser ‘canguinha’ e as outras puseram-se a rir. Como pode uma mulher rir da desgraça de outra mulher? Meu Deus, não quero voltar a passar por isso, nunca mais quero ter filhos e aconselho as mulheres grávidas ou as que pretendem ter filhos para se organizarem financeiramente, primeiro”, desabafou.

A sorte de ter um familiar no HCM

Tatiana Manuel conseguiu fintar o protocolo e entrar no bloco operatório sem ter tirado nenhum centavo, graças à influência de um familiar que é médico na maior unidade sanitária do país. A fonte declarou que o parto decorreu sem sobressaltos. Contudo, por não ter tirado o dinheiro de “refresco”, não recebeu o tratamento especial.

“Quanto ao parto não tenho razões para reclamar, decorreu sem sobressaltos, mas senti por aquelas mulheres que encontrei enquanto aguardavam para ser operadas. Depois do parto, fiquei indignada, uma vez que disseram que iam me saturar usando o sistema de laser, mas não foi o que aconteceu. Fui mal saturada e tive que voltar ao hospital por não aguentar com as dores”, relata.

Ciente dos dramas que se vivem naquela unidade sanitária, Tatiana pede ao Ministério da Saúde e à direcção máxima do HCM para colocar um travão a este esquema que tem matado muitas mulheres e crianças.

“Podíamos até marchar para exigir os nossos direitos, mas o Governo já mostrou que não é apologista deste tipo de iniciativas. Pedimos aos nossos dirigentes para humanizar o nosso Sistema Nacional de Saúde. Não se justifica a vergonha que se tem assistido no Hospital Central de Maputo”, rematou.

HCM promete investigar o caso, mas…

Contactada pelo Evidências, a Direcção do Hospital Central de Maputo, através do seu gabinete de comunicação e imagem, avançou que vai investigar o caso juntamente com os responsáveis pela maternidade, contudo adiantou haver possibilidade de não se pronunciar sobre o assunto.

“Vamos falar com os responsáveis da maternidade para perceber o que terá acontecido. Só depois disso é que podemos indicar uma pessoa para falar sobre o assunto. Não posso te garantir que o HCM vai se pronunciar sobre o assunto, mas como temos o vosso contacto qualquer coisa vamos informar”, declarou a fonte que se identificou pelo nome de Fernanda.

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