Elsa Nhate: Uma motorista de “chapa” que se destaca num trabalho dominado por homens

SOCIEDADE
  • Em meio a insultos, assédio, violência psicológica e injúrias

Num mundo completamente dominado por homens, Elsa José Nhate, de 49 anos de idade, venceu o preconceito e, com coragem, abraçou uma das mais desafiantes profissões. Mãe e esposa, a viver maritalmente há 26 anos, Elsa é motorista de “chapa” há 10 anos, quando começou a operar na rota Magoanine/Albazine, de onde lhe vem boas lembranças de pessoas que admiram e elogiam a sua coragem por estar a fazer um “trabalho de homens” em meio a muita agitação e disputa de passageiros. No entanto, não é só de elogios que é feito o seu dia a dia, pois recorda que muitas vezes foi grosseiramente insultada e viveu situações de violência psicológica, assédio e desrespeito, sobretudo por parte dos angariadores de passageiros, conhecidos como “modjeiros”, e alguns motoristas que não a aceitavam como colega de profissão. Mas mesmo assim, com o apoio incondicional do seu companheiro, com quem por vezes trabalha, conseguiu ultrapassar todas as adversidades e é hoje uma mulher realizada.

Renato Cau

Há um mês a operar na rota Zimpeto/Laulane, depois de mais de nove anos na rota Magoanine/Albasine, Elsa Nhate conta que diariamente convive com situações desagradáveis, e em momentos de alguma fraqueza já pensou em desistir, mas com o apoio do seu parceiro, com quem partilha cama e mesa há mais de 26 anos, conseguiu reunir forças para continuar.

“Mesmo lá no Albazine, como você viu, há pessoas que dizem que eu não devia estar a fazer chapa, devia estar a pilotar fogão, mas quando dá para fazer barulho com eles eu encaro e faço também […] e eles quando me insultam eu não retorno, eu calo e faço de contas que não ouvi, enquanto ouço. Às vezes venho contar a ele (marido), descarrego e ele me incentiva a continuar”, relatou.

Elsa reconhece que a profissão que abraçou não é fácil, sobretudo para uma mulher, mas assumiu o desafio e hoje não se vê a fazer outra coisa.

“Sou motorista de “chapa” há 10 anos. Trabalho no meio de muitos motoristas e cobradores homens, que no início se assustavam por ver uma mulher a conduzir um chapa, mas hoje já estão acostumados. No Zimpeto, aqueles modjeiros, muitas vezes, falam coisas e me insultam, mas eu não respondo, só lhes olho”, sublinha.

Tudo começou há 10 anos, quando o seu o esposo adquiriu uma viatura do tipo mini-bus, que passaria a ser usada para fazer “chapa”, tendo entregado as chaves a um amigo seu para que este fosse o motorista. Infelizmente, não correu como planeado.

“Ele voltou do serviço e veio me apresentar um jovem, alegando que era amigo dele e entregou as chaves do carro a ele para trabalhar. O jovem levou o carro e não voltou mais. Nesse dia nem dormimos”, relatou Elsa, para depois revelar que o casal saiu a busca da viatura, tendo a encontrado espatifada, após sofrer um aparatoso acidente.

Sem outra opção, recolheram-na a uma oficina, onde foram feitas as reparações das avarias mecânicas. Feito isto, a viatura foi parqueada, porque o casal já não confiava em ninguém e o esposo não dispunha de tempo para “fazer chapa”.

Foi difícil conseguir o consentimento do marido

Vendo a viatura parqueada, Elsa tomou a iniciativa de pedir autorização ao seu esposo para que pudesse frequentar uma escola de condução, de modo a ter uma carta de condução e assim conduzir o carro. Mas isso não era bem visto pelo marido que por um tempo dificultou.

“Meu esposo, por não acreditar e para não falar disso, acordava e fugia. Quando eu acordava via que ele já não estava para me levar… até que um dia eu fiquei saturada. Um dia liguei para ele e lhe disse que já estava na escola de condução”, mas mesmo assim o marido tentou evitar que ela prosseguisse com as aulas de condução, mas ela não recuou.

Já com a carta em mãos, o seu esposo teve a ideia de colocar a mini-bus na via de Magoanine/Albazine, somente nos dias que ele não trabalhava e os restantes dias o carro ficava em casa. Ousada, Elsa fez proposta ao seu marido para que a deixasse conduzir o “chapa” nos dias em que ele não tivesse tempo. E desta vez ele aceitou.

“Primeiramente, não vou mentir, comecei com pesado, me arrisquei um pouco e ele disse: tens que ter carta profissional […] mas agora quando estava para entrar no Zimpeto, me matriculei de novo. Fiz serviços públicos”, relata a sua história de persistência e superação.

Lidar com assédio, insultos e violência psicológica

Elsa conta que mesmo estando acostumada com a dinâmica dos terminais dos transportes semi-colectivos ainda lhe é difícil lidar com o assédio sexual, dedos apontados a si e insultos proferidos por pessoas durante o seu trabalho.

“Este trabalho dói mais no fim de semana, quando tenho que levar pessoas embriagadas. Às vezes insultam de qualquer maneira entre eles e às vezes juntam a motorista, insultam e fazem muito barulho. Mas como saio de casa a saber disso, ignoro”, revelou.

Em conversa, Elsa deixou ficar alguns episódios que, infelizmente, fizeram com que chegasse tarde e isso chateou o seu esposo, e no meio destas situações ele passou a impor certo tipo de vestes para ela.

“Meu marido não aceita que saia de casa para conduzir o chapa enquanto pus saia ou vestido. Aqui é só calça, blusa ou camisete. Acordo cedo vou ao ginásio […], até às 6:00 volto, me preparo e às 6:30 estou a sair de casa. E não volto muito tarde, mas houve vezes que eu demorei a chegar. Eu, às vezes, chegava às 21 horas ou 22, ele zangava, mas não falava. Mas eu conseguia ver que ele estava chateado… mudamos isso para eu poder passar a chegar cedo a casa. Agora, no máximo até 19:30 estou a entrar em casa”, relata.

Mesmo assim, conta que o casal sempre encontrou formas de fazer prevalecer o equilíbrio, razão pela qual a sua relação conjugal “está a 100%, até nos chamam de casal Liloca e Bowito, porque estamos quase sempre juntos, aqui só falta casarmos. É o meu grande sonho”.

E quando o assunto é Polícia de Trânsito (PT), ela diz ter boas relações com todos os agentes porque tem toda a documentação completa e tem arrancado, muitas vezes, elogios e palavras de encorajamento dos agentes da lei por estar fazendo aquele trabalho.

“Os agentes que me conhecem me respeitam e me dão o meu lugar”, descreve, ajuntando se sentir muito sortuda porque durante o tempo em que vem trabalhando por vezes troca o banco de motorista com seu esposo. Na sua opinião, isso ajudou muito a se enquadrar no ambiente e os demais colegas que outrora a estranhavam, hoje a protegem, para além de que este factor a blindou contra o assédio.

“Ela é como outras senhoras que saem de manhã para trabalhar e voltam de noite” – marido

Formado em gestão de empresas, com habilitação em finanças, Henriques Mathe, 49 anos de idade, marido da Elsa, é funcionário no Ministério da Economia e Finanças. Diz-se feliz e destaca a boa cooperação, entendimento e muita confiança como sendo a chave do sucesso entre o casal. Aliás, conta que ver a sua esposa conduzindo um chapa é gratificante.

Mas nem sempre foi assim. Conta que no início teve muito receio que a ideia da sua esposa ser motorista de um chapa fosse dar certo. “Graças a Deus ela nunca me deu problemas […], sempre trabalhou naturalmente”, sublinha, confessando que no princípio chegou a se deixar consumir pelo ciúme, mas nada que não seja próprio de quem ama e protege.

Em conversa, conta que já ouviu comentários maliciosos sobre a sua esposa, de pessoas que não sabiam que era sua parceira. Por mero preconceito, algumas pessoas mal intencionadas inventaram inverdades sobre ela.

“Uma vez, no chapa, enquanto eu conduzia, um passageiro falava da minha esposa e dizia que ela matou o marido e ficou com os bens”, relata Henriques, que diz ter ficado incrédulo no que ouvia, tendo imediatamente retorquido, revelado ao passageiro que a mulher em causa é sua esposa. 

Mas o desafio também existiu no meio familiar. Conta que no seio familiar e na vizinhança houve divisão de opiniões, porque houve quem criticava a sua escolha, mas havia homens que o congratularam pela esposa que tem. Alguns até cobiçavam ter uma esposa igual. 

Quando questionado sobre como ele encara o facto da sua esposa estar desempenhando uma actividade que é normalmente tida como sendo para homens, Henriques mostra-se um homem tranquilo.

“Nós já consideramos aquilo como um trabalho normal. É a nossa empresa e queremos, a partir deste carro, comprar outros para fazer transporte. Ela é como outras senhoras que saem de casa de manhã para trabalhar e voltam de noite, mas geralmente nos domingos e feriados ela não trabalha, para poder ficar em casa e descansar”, destaca.

Mostrando-se admirador do trabalho da esposa, rasga elogios. “Ela faz o trabalho normalmente e até conduz melhor que muitos homens”.

Elsa provou aos colegas que “há espaço para todos”

O testemunho de quem no dia-a-dia trabalha com Elsa é de grande admiração e aprendizado. Rui Guirrugo, motorista de chapa na mesma rota que Elsa opera, lembra que foi um dos que estava reticente em relação ao seu desempenho, no início.   

“Quando ainda trabalhávamos naquela rota de Magoanine, fui ter com ela e perguntei: por que estás a fazer chapa enquanto tens marido?”, recorda, para depois acrescentar que como resposta, Elsa disse que não tinha nada melhor por fazer em casa.

Guirrugo, hoje, admira a sua colega, embora considere que este trabalho seja algo muito desafiador aconselha as mulheres que queiram seguir a mesma profissão que assim o façam.

“Há espaço para todos, mesmo a minha esposa, se quisesse ser motorista, eu havia de lhe deixar, basta ela estar firme que vai aguentar como a dona Elsa. Não é fácil, mas ela mostrou que é possível”, afirmou.

Para o sociólogo

Para o sociólogo João Miguel, a história de Elsa representa um sinal claro de evolução na luta com vista à igualdade de gênero nos postos de trabalho e explica que a estranheza com que ela é vista tem a ver com a forma como a sociedade encara as actividades que cada pessoa deve desempenhar.

“Em Moçambique, infelizmente, ainda vivemos em uma sociedade que definiu papéis sociais que são para mulheres e outros para os homens. Por isso, para o caso da Elsa, que é motorista, isso causa estranheza porque ainda não estamos preparados para ver as mulheres a fazerem trabalhos que são tidos como sendo de homens”, anota.

Mesmo assim, observa que as coisas tendem a mudar e a determinação das mulheres tem contribuído para quebrar alguns estereótipos.

“Tem tudo a ver com os estereótipos que sempre colocaram o homem como provedor, aquele que deve ter mais renda em relação à sua esposa, e a mulher como aquela que deve ficar em casa cuidando das crianças […], mas as coisas hoje tendem a mudar porque já existem muitos casos em que em casal os dois trabalham, mas a mulher é que recebe mais. Então, isso requer uma mudança de paradigmas”, acrescenta.

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