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Luca Bussotti
Ao longo das últimas semanas, Moçambique viveu um dos momentos mais particulares da sua história política: se, por um lado, a morte do rapper Azagaia abriu um quadro novo no seio de um sistema bloqueado e onde cada actor político devia cumprir com o seu papel, incluindo os sujeitos internacionais, agora um movimento inédito, feito de jovens de todas as camadas sociais e de todas as regiões do País, apela para novas modalidades de governação, com maior transparência, inclusão e justiça sociais. Ideais, esses, resumidos pelo lema de “Povo no poder”. Em paralelo, a tentativa de o actual Presidente da República se manter no poder além do período indicado pela Constituição parece ter iniciado a ganhar concretude mediante revisões constitucionais de que a Assembleia da República tem começado a tratar. Esta circunstância também é inédita, pois, se é verdade que mesmo os antecessores de Nyusi procuraram se manter no poder depois do fim do seu segundo mandato, nenhum deles teve a ousadia de iniciar um percurso legislativo e de reformas constitucionais finalizado a mudar um dos princípios fundamentais que regulamentam as instituições moçambicanas, ou seja, o dos dois mandatos consecutivos. A força do partido que sempre governou o País prevaleceu, historicamente, na vontade da pessoa singular de se manter no poder. Hoje, a situação poderá vir a ganhar um figurino diferente, dependendo da capacidade de oposição interna dos grupos que pautam para o respeito da Constituição e o respeito da regra dos dois mandatos. A confluência das duas novidades acima referenciadas está a provocar tensões na sociedade moçambicana, inclusivamente reacendendo antigos conflitos, como o entre Governo e Renamo, que pareciam terem sido resolvidos de uma vez por todas.
Moçambique, porém, não é uma ilha: na mesma altura em que o país está a passar por conturbações em parte novas, em vários países do continente africano está a soprar um vento de protesto e de mudança. Senegal, Quénia, Angola, África do Sul são apenas alguns dos exemplos de como fórmulas que visam restringir o espaço de debate público em países que já tinham alcançado níveis satisfatórios de democracia dificilmente poderão recuar para tipos de governações mais autoritárias.
No Senegal o actual Presidente, Macky Sall, está a encetar estratégias para manter Ousmane Sonko fora das próximas eleições presidenciais, previstas para 2024, além de ele próprio se candidatar de novo para um terceiro mandato. A situação senegalesa é ainda mais complicada da moçambicana. Naquele país da África Ocidental já houve uma reforma constitucional. Ela remonta a 2016. Nesta altura foram revistos elementos fundamentais que dizem respeito à figura do Presidente da República: acima de tudo, seu mandato foi reduzido de 7 para 5 anos; e em segundo lugar foi mantida a limitação dos mandatos presidenciais a dois. Entretanto, Macky Sall e seus aliados alegam que esta regra é válida no geral, mas não se aplica ao caso específico de Macky Sall, pois seu primeiro mandato foi feito de acordo com a antiga lei (e ele teve uma duração de 7 anos) e, portanto, em 2024 ele seria novamente candidatável à sua própria sucessão. Ao mesmo tempo, o que é actualmente considerado como o seu maior antagonista, Ousmane Sonko, está sendo alvo de perseguições por parte das forças governamentais; acusado de violação sexual por uma senhora do centro de massagens de que Sonko costuma se servir, este político senegalês foi preso por alegadamente perturbar a ordem pública, uma vez que milhares de seus apoiantes estavam a manifestar nas ruas de Dakar em seu favor. Mais uma vez, a questão do terceiro mandato, associada ao descontentamento dos jovens quanto à corrupção presente naquele país, desemprego, emigração ilegal e perseguições das oposições constituíram um cocktail explosivo que colocou em xeque uma das democracias mais consolidadas de todo o continente africano.
No Quénia os problemas económicos provocados em parte pela crise pós-COVID juntaram-se a eleições muito renhidas e, segundo o líder da oposição e candidato derrotado com 48,85% dos votos, Raila Odinga, não transparentes, originando assim uma vaga de protestos de rua que culminaram com a morte de três manifestantes e o ferimento de mais de 400. Mais uma vez, questões de tipo económico, tais como o alto nível do custo de vida se associaram a processos eleitorais pouco transparentes e à fraqueza no diálogo entre governo e oposição.
Finalmente, um país como Angola, com uma situação não muito distante à de Moçambique, passou também por eleições pouco transparentes e que desencadearam protestos de rua juntamente com a adesão de movimentos sociais e políticos e de artistas comprometidos como Gangsta ao lema de “Povo no poder”, deixando entrever anos difíceis pela frente e o provável fim do domínio do MPLA nas próximas eleições gerais e presidenciais.
Os exemplos poderiam se multiplicar, entretanto vale a pena, em jeito de conclusão, recordar quanto a União Africana, somente no ano passado, em ocasião da XVI reunião extraordinária da Assembleia daquela organização, recomendou a todos os países do continente, numa moção que foi votada à unanimidade e, por ironia da sorte, na capital do país cujo presidente, Teodoro Obiang, está no poder há mais de 40 anos, ou seja, em Malabo, na Guiné Equatorial: “Condenação inequívoca de qualquer forma de mudança constitucional de governo em África, reiterando a nossa tolerância zero a este propósito”, acrescentando uma importante recomendação acerca de eleições livres e transparentes: “Apreciação para os passos feitos pelos Estados membros na organização de eleições livres, justas, credíveis e transparentes”.
O mais carregado é que tais princípios votados por todos os Estados africanos, são desmentidos quando se trata de lidar com a política interna de cada país, alegando casos específicos que estariam fora de quanto recomendado pela União Africana. Uma postura, esta, que está a provocar protestos e descontentamentos na medida em que governos cada vez mais autoritários têm crescentes dificuldades em responder aos anseios básicos da população.

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