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Sobre a inutilidade da educação em Moçambique

Luca Bussotti

O último inquérito sobre orçamento familiar (IOF) traz muitos dados interessantes. O mais revelador, na minha opinião, tem a ver com a educação. Paulo Freire dizia que “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. Uma frase que expressa um conceito fundamental: a educação não é suficiente para transformar a sociedade, mas sem ela a sociedade não poderá sofrer nenhum tipo de alteração.

Nesta frase é possível destacar alguns conceitos. Por exemplo, que a sociedade tem de mudar, para se tornar melhor e, como defendia o filósofo estóico Epicteto, só ela é que liberta a humanidade. O segundo conceito da frase de Paulo Freire é de que a educação representa um dos elementos fundamentais para que tal mudança aconteça. De forma um pouco extensiva, podemos dizer que a educação poderá garantir àquela população que se empenhar nos estudos uma mudança de atitude, mentalidade, abordagem para com a própria vida, até maior possibilidades de sucesso.

Os dados do inquérito ora publicado revelam uma realidade diferente em Moçambique; a questão, portanto, é porque uma boa parte dos moçambicanos (cerca de 3 milhões de indivíduos entre 5 a 24 anos) não frequenta qualquer instituição de ensino.

Podem ser formuladas duas hipóteses: a primeira é de que a sociedade moçambicana não precisa de passar por mudanças. Em termos de estrutura social, ela seria perfeita, ou quase. A outra hipótese é de que esta mesma sociedade precisa sim de transformações, mas para realizar as quais a educação já não seria o veículo principal.

A primeira hipótese resulta ser meramente académica. Com uma sociedade profundamente desigual, e um coeficiente de Gini de 0,54 (um dos mais altos do mundo), é impossível que as pessoas não pautem para uma melhoria das suas condições de vida. Entretanto, a segunda hipótese poderá ser a mais verossímil. Isto significa que a educação já não está sendo considerada como o meio principal para a ascensão social.

Com efeito, os dados do inquérito parecem confirmar esta hipótese: cerca de 30% dos que responderam não estar a frequentar nenhum estabelecimento escolar confessaram que tal opção deve ser motivada pela falta de interesse. Outro 20% apontou que os estudos são demasiado caros para seus bolsos, ou para os bolsos de seus pais. Pode-se concluir que cerca de 50% desta população decidiu não investir tempo e recursos financeiros na educação. Um quadro que só 10 anos atrás parecia impossível…

Para entendermos as razões deste dados é preciso analisar brevemente como é que, em Moçambique, as pessoas conseguem melhorar suas vidas; em palavras mais técnicas, como é que ocorre a mobilidade social no país. Acima de tudo convém recordar que, numa sociedade profundamente desigual como a moçambicana, a mobilidade social é muito limitada. Aliás, parece mais provável alguém piorar a sua posição social e económica do que melhorar. As modalidades de ascensão económica, em Moçambique, reflectem, portanto, esta estrutura social particularmente desequilibrada e fechada. Estudos publicados mesmo dentro do país demonstram que o mais importante, para uma melhoria considerável das existências, são as redes que cada um consegue estabelecer, independentemente do seu grau escolar ou académico. Existem redes fracas e fortes, de maior ou menor inserção social, mas não existe ninguém que tenha conseguido um certo sucesso económico e, portanto, social, sem se ter ligado a redes. A rede do partido no poder é, até hoje, a mais significativa. Quem conseguir entrar nela, mesmo tendo origens humildes e uma formação nem sempre de topo, provavelmente tem chance de melhorar a sua existência. É suficiente dar uma olhada aos dirigentes, nacionais e locais da Frelimo para verificar esta circunstância. O primeiro presidente da república com título académico foi o Nyusi, ao passo que nem Samora Machel, Chissano e nem Guebuza tinham licenciatura. As redes dos outros partidos também garantem uma certa inserção social, principalmente em alguns territórios do país, especialmente no Centro e no Norte, onde as oposições são mais fortes. Nenhum dos chefes da Renamo, por exemplo, frequentou uma universidade, mas isso não lhes provocou nenhum constrangimento na arena política, antes pelo contrário…

Estas redes, porém, se por um lado podem facilitar na procura de melhores condições, e até de privilégios, por outro podem ser instáveis: um contraste com uma pessoa poderosa dentro do partido pode afastar, por vezes de forma definitiva, do próprio partido e do circuito de interesses que rondam a volta dele (ou deles, se considerarmos também as principais formações políticas da oposição).

Outras redes muito significativas são as de tipo étnico e familiar, que por vezes se sobrepõem com as primeiras, relativas às pertenças políticas. Neste caso, a solidariedade étnica ou familística, como diria Putnam, é ainda mais fechada do que ocorre com as redes políticas, as quais devem procurar sempre novos elementos para que o partido não emagreça, até ficar sem aderentes. No caso da etnia e da família, a tendência é fechar o mais possível o circuito, como demonstra, por exemplo, a governação dos Macondes, centrada em redes tipicamente étnicas, ou também de Indianos ou Paquistanianos no comércio em pouco tempo em todo o país.

Existem outras redes que podem ajudar no sucesso e, portanto, na mobilidade social deste ou daquele indivíduo: redes sindicais, de associações e organizações da sociedade civil, religiosas e não, até académicas. Entretanto, tais redes parecem menos decisivas e influentes do que as primeiras três acima e nucleadas.

Se, portanto, são as redes (e aquelas específicas redes acima referenciadas) os instrumentos principais de ascensão social, elas não contemplam a necessidade, ou até a oportunidade, de uma bagagem escolar considerável. Pelo contrário, o que é mais necessário é a capacidade de inserção em tais redes, a fidelidade à organização, o saber estar dentro de uma estrutura complexa de forma certa e sem desafiar os chefes, sejam eles políticos, familiares ou étnicos: neste contexto, a educação tem um papel marginal, a não ser ausente ou, em certos casos, nocivo.

Por isso é que tantos jovens estão a renunciar à sua formação, aos seus estudos, procurando vias alternativas de sucesso e ascensão social; vias que pautam para o ingresso em redes e organizações, mas que não passam através de uma sólida formação académica.

A frase inicial de Paulo Freire assume, assim, um sentido específico olhando para Moçambique: a necessidade da mudança ainda existe, entretanto as modalidades de alteração da pirâmide social no país são tão sedimentadas e consolidadas que dificilmente alguém que esteja “fora do giro” poderá, contando apenas com as suas capacidades e talentos (e com a sua formação académica), emergir para o crescimento próprio, da sua família e do país como um todo. Uma configuração social extremamente perigosa, esta: com efeito, ela, além de marginalizar a educação enquanto tal, faz correr o risco de produzir resignação e ao mesmo tempo raiva em muitos jovens os quais, excluídos dos curcuitos que contam, fora de um percurso escolar regular, vão procurar outros meios muito menos lícitos (tráficos de vária natureza, crime, até terrorismo como desde 2017 verifica-se no Norte) para melhorar suas próprias vidas. Quando a educação deixa de constituir a bússula de uma nação, as probabilidades de ela ter um futuro sombrio aumentam consideravelmente e, geralmente, acabam verificando-se.

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