The day after

OPINIÃO

Luca Bussotti

O icónico filme realizado por Nicholas Meyer – “The Day After” – descrevia uma guerra nuclear entre Estados Unidos e União Soviética nos anos Oitenta. A batalha começou na Alemanha na altura dividida entre Oriental e Ocidental, desaguando no lançamento mútuo de bombas termonucleares entre as duas antigas potências mundiais. Na segunda parte do filme, o foco está na vida de alguns indivíduos que conseguiram sobreviver aos ataques nucleares, mostrando as consequências catastróficas deste tipo de guerra. O que sobrou, portanto, foi destruição, com alguma esperança de vida por parte de quem sobreviveu.

O “day after” de Moçambique se parece com os cenários do filme de Nicholas Meyer: destroços e ruinas do que tinha ficado do sonho de um estado de direito, democrático e respeitoso da vontade popular, que depois das eleições autárquicas de 11 de Outubro desmoronou, embora deixando algumas luzes no fundo do túnel.

As pergunts são mais numerosas do que as respostas. De forma sintética, elas podem ser assim resumidas:

  1. Qual será a credibilidade das instituições, depois do dia 11 de Outubro? As instituições são adjetivadas de “públicas” por pertencerem a todos os cidadãos, independentemente das suas orientações políticas. Elas devem pautar por princípios universais, reconhecendo na Constituição e nas demais leis os elementos norteadores do comportamento de qualquer funcionário público. Vice-versa, a ideia que se instaurou em muita parte da função pública de Moçambique, inclusive naquelas corporações que devem exercer o monopólio legítimo do uso da força no país, é de que vale mais a ordem do chefe (a quelquer nível) do que o respeito para os princípios constitucionais. Em boa verdade, esta postura é típica de um Estado que ainda não completou a sua transição para um modelo racional e moderno, em que as figuras institucionais de maior destaque não são legibus solutus (ou seja, soltas, isto é, acima da lei), mas sim subjecta lege. A lei (a partir da Constituição) representa o pacto sagrado entre governados e governantes, e são os princípios patentes nela que deveriam orientar o funcionamento da administração pública, de forma imparcial. Esta argumentação é ainda mais válida para aqueles órgãos que deveriam garantir a imparcialidade em processos complexos e que constituem a base de qualquer forma de democracia, mesmo uma ainda não madura como a moçambicana. A referência é a organismos tais como a CNE e todos os órgãos de justiça que entram na avaliação do processo eleitoral. Se eles falham no sentido de não respeitar o pacto constitucional entre governados e governantes, qualquer credibilidade institucional é retirada, e o país vira um caos. É justamente isso que está a acontecer neste momento em Moçambique: diante de instituições não credíveis não existe nenhuma possibilidade de controlo de possíveis violências, guerrilhas urbanas, actos de vandalismo que sempre devem ser condenados, mas cuja lógica se explica com o rompimento do supremo pacto de cidadania por parte de quem o deveria custodir em primeira instância. Como recuperar esta fratura é difícil de dizer; talvez se o Conselho Constitucional assumisse uma postura imparcial, olhando para as consequências não apenas imediatas (presidentes de municípios que irão governar apesar do voto contrário dos cidadãos), mas sim duradoiras da situação que se deu depois das eleições de 11 de Outubro, isso poderia representar um pequeno passo pela frente na recomposição do pacto constitucional entre governados e governantes. Mas isso, se por acaso acontecer, e nas formas legais disponíveis para o Conselho Constitucional, não será suficiente. Como enfrentar as próxims eleições gerais nestas condições? Com organismos tão pouco imparciais e influenciados e influenciáveis por elementos externos, alheios aos princípios constitucionais? A estas perguntas, até hoje, não existe nenhuma resposta.
  2. Destroços visíveis podem ser observados também analisando o que está a acontecer dentro do partido que sempre governou o país, a Frelimo. A deriva autoritária do país (e do partido que o libertou do colonislismo português) não é de hoje; entretanto, a prova de força que a Frelimo quis dar com as eleições de 11 de Outubro deve ter deixado muitos dos seus simpatizantes e activistas com incertezas e amarguras. Se o objectivo deste partido sempre foi libertar o país, no respeito e interpretando a vontade popular, fica difícil, hoje, justificar como é que este mesmo partido resolveu negar, inclusivamente de forma grosseira, aquela vontade popular que representa a sua razão genética de surgimento. Vozes dissonantes já se levantaram a este propósito: a primeira foi a do antigo presidente, Chissano, a que seguiu-se a de Samora Machel Júnior, e ultimamente a de Teodato Hunguana. Entretanto, a questão de fundo é a seguinte: como pensa a Frelimo em governar o país – um país que desde a sua Constituição de 1990 aceitou o modelo democrático e eleitoral – desrespeitando a vontade dos eleitores? A única, possível resposta seria a de um retorno a um regime monopartidário. Uma saída que, hoje, é completamente anacrônica, e que a sociedade moçambicana, a partir dos jovens, não poderá aceitar. Neste caso também, as dúvidas ultrapassam as respostas.
  3. Outro relacionamento que está a atravessar uma crise evidente é o com os parceiros internacionais. Qual a credibilidade internacional de Moçambique, diante do sombrio cenário pós-eleitoral? Esta questão poderia ter pouca importância se Moçambique fosse um país autónomo e realmente soberano. Infelizmente não é assim: Moçambique depende em larga medida da ajuda externa, principalmente dos países ocidentais (a USAID é o primeiro doador bilateral), dos investimentos externos (de vários países, a começar pelo gás com cujas receitas o governo projectou reequilibrar o orçamento do Estado para os próximos anos), e inclusive de exércitos estrangeiros. O papel do Ruanda (e em parte da SAMIM) em Cabo Delgado é tão notório que nem precisa aqui de destacá-lo com mais pormenores. Moçambique, portanto, precisa ter uma credibilidade internacional, ainda por cima neste momento, em que está a desempenhar um papel histórico, o de membro não permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Credibilidade significa respeito pelas leis, pelos princípios constitucionais, pela vontade popular, a partir de quanto os eleitores expressam nas urnas. Significa que, uma vez escolhido o modelo democrático de governação, ele deve ser perseguido com vigor e convição, e que os recuos devem ser menores e menos frequentes do que os avanços. Vários países já fizeram intervenções públicas expressando sua preocupação a este propósito: por exemplo, os embaixadores do Canada, Noruega e Suíça declararam abertamente “a sua preocupação sobre as irregularidades eleitorais relatadas, particularmente no dia da votação e durante o processo de apuramento dos votos”. Declarações parecidas foram feitas por parte do Reino Unido. Assim como, internamente, várias entidades, a partir da Ordem dos Advogados, tomaram um posicionamento firme, condenando a gestão dos processos eleitorais de 11 de Outubro. Como Moçambique possa retomar uma credibilidade internacional já largamente comprometida com o escândalo das dívidas ocultas fica difícil de dizer. Entretanto, este elemento continua sendo estratégico para um país ainda dependente da ajuda e dos investimentos externos para ter o mínimo necessário para garantir serviços, salários e pensões aos seus cidadãos. Um país – convém recordar aqui este dado – que, segundo o World Economic Forum, está no lugar 129 de 133 países a nível mundial quanto à sua competitividade económica, e que irá levar muito tempo para conquistar aquela autonomia económica que todos os Moçambicanos desejam.
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