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Luca Bussotti
Um dos fundadores das ciências sociais modernas, Émile Durkheim, defendia que as sociedades humanas evoluem do mais simples até ao mais complexo. Durkheim levou a cabo vários estudos para demonstrar esta sua teoria, desde o clássico As formas elementares da vida religiosa até A divisão do trabalho social. Quer na religião, quer na sociedade no seu todo, Durkheim teorizava que o caminho para a complexificação das expressões sociais era o elemento constitutivo da modernidade. Nesta afirmação, tinha muito de eurocentrismo, uma vez que ele aplicava esta distinção ao paralelismo entre sociedades “primitivas” (as africanas, naturalmente…) e as desenvolvidas (as europeias, como não podia deixar de ser…). Mas, embora cientes desta abordagem hoje inaceitável, o que ele realçou foi de que cada sociedade tem de saber lidar com as dinâmicas que originam novas complexidades. Como dirá mais de um século depois Edgar Morin, o processo constante de adaptação às emergências e à formação de um novo e mais aceitável (e inclusivo) equilíbrio é típico de um sistema maduro e flexível que transforma inovações em oportunidades. O percurso do sistema político de Moçambique pode ser lido mediante este tipo de paradigma: complexidade, resistências e lutas entre quem pretende conservar o status quo e quem procura construir um novo país (sem nenhum juízo de valor: o novo não é necessariamente melhor do que o antigo).
O que é possível observar é de que o sistema político moçambicano foi simples desde a sua independência. A primeira tentativa foi de torná-lo demasiadamente simples, inicialmente, mediante o monopartidarismo. Tentativa que, poucos meses depois de 25 de Junho de 1975, já tinha fracassado, uma vez que forças endógenas e exógenas pretendiam ter uma voz no seio da nação moçambicana em via de constituição. Formou-se, então, um bipartidarismo no lugar do monopartidarismo. Na primeira fase, este bipartidarismo foi imposto pela Renamo mediante a força (guerra civil), depois (em seguida aos Acordos Gerais de Paz de 1992) com processos democráticos. Mas o paradigma de referência era sempre o mesmo: duas formações a dominarem o cenário político nacional, com a benção da comunidade internacional (leia-se: ocidental).
Este sistema relativamente simples começou a entrar em crise com o aparecimento de uma nova formação política entre 2008 e 2009: o Movimento Democrático de Moçambique (MDM). O sistema simples e sólido que tinha governado o país até então teve de reagir a esta nova e inesperada ameaça: com várias medidas centradas nos processos eleitorais (lembrem-se da exclusão do MDM na maioria dos círculos eleitorais nas eleições gerais de 2009). Este novo partido foi limitado, procurando-se incorporá-lo no sistema segundo um critério de tolerabilidade. Isso fez com que que esta nova formação política conseguisse governar algumas cidades importantes – tivesse assentos na Assembleia da República, mas já não constituísse uma ameaça séria para o funcionamento do próprio sistema. Houve, portanto, um processo de mera adequação, mas não de inovação política para gerir o risco-MDM, tanto mais que os dois maiores partidos, Frelimo e Renamo, continuaram com seus percursos internos de escolha dos candidatos (presidenciais, assim como para os outros cargos electivos), como reflexo das suas culturas políticas: o partido no poder através de processos formalmente democráticos, mas cada vez mais ligados a lobbies e suas influências nos organismos dirigentes; a Renamo mediante a personalidade carismática do Dhlakama, que nem precisava de congressos, assembleias ou outros formalismos para que ele próprio fosse escolhido como candidato presidencial, uma vez que ele era a Renamo. O contorno deste prato eram eleições nunca transparentes, mas sempre ganhas pela Frelimo, com mais (1999 e 2014) ou menos contestações por parte da Renamo, e a benção dos doadores ocidentais.
O sistema parecia aguentar e se auto-reproduzir; entretanto, houve pelo menos duas variáveis imprevistas: por um lado, uma sociedade civil cada vez mais formada e informada, consciente e insatisfeita com este sistema político simples, que não reflectia a complexidade da modernidade moçambicana. Por outro lado, as performances muito modestas dos vários executivos da Frelimo, em queda constante em todos os sectores da vida pública, desde a saúde até à educação, desde a redistribuição equitativa das riquezas do país até ao sistema dos transportes e por aí fora. O resultado foi um aumento ao mesmo tempo da pobreza e do nível de consciência e formação dos Moçambicanos. O sistema estava-se fechando diante de uma complexidade nova, que não conseguia compreender.
A crise definitiva do sistema registou-se com a morte de Dhlakama. Quando o líder da Renamo faleceu, a ilusão da Frelimo foi de recuar para um sistema efectivo de tipo monopartidário, apesar dos formalismos democráticos patentes na Constituição. O processo de aniquilação da Renamo foi feito mediante instrumentos pacíficos por excelência, um novo acordo de paz e um novo DDR, combinado mediante os três sujeitos “tradicionais”: elites da Frelimo, da Renamo e comunidade internacional (o principal mediador foi o enviado das Nações Unidas, Mirko Manzoni). Entretanto, partes consistentes da sociedade moçambicana não concordaram com este novo reducionismo político: foi assim que emergiram figuras novas, tais como Venâncio Mondlane ou Manuel de Araújo. Numa primeira fase, tais figuras actuaram dentro do espectro político disponível, primeiro o MDM e depois a Renamo. Entretanto, tais figuras se aperceberam que a ideia era de o sistema querer englobá-las dentro das suas antigas e desactualizadas lógicas. Sobretudo a Renamo jogou a cartada da gestão de Venâncio Mondlane mediante o recurso ao dom do carisma, que era típico de Dhlakama, mas não do seu sucessor, Ossufo Momade. Momade procurou governar a Renamo segundo os cânones de Dhlakama, ou seja, sem democracia interna, com a diferença de que Dhlakama, graças à sua personalidade, nunca precisou de recorrer aos organismos de partido para enfrentar os adversários internos. E, quando eles apareceram, foram gentilmente mandados embora pela porta de trás. Isso aconteceu com Raul Domingos, assim como com Daviz Simango. E ninguém, no partido, teve grandes objecções acerca destas escolhas. Tais circunstâncias enalteceram a figura carismática de Dhlakama, mas enfraqueceram não apenas os organismos internos ao partido, mas sim toda a democracia moçambicana, apresentando um paradoxo: o segundo o qual o maior partido da oposição, que lutou com armas para impor a democracia não era, na verdade, um partido propriamente democrático, mas sim monocrático.
Esta influência foi decisiva para compreendermos a Renamo de hoje. Momade quis gerir as novas figuras emergentes que se tinham aproximado à Renamo da mesma forma: a péssima gestão do “caso” Venâncio Mondlane (que não queria ter um lugar confortável dentro daquele sistema consolidado, mas sim quebrá-lo para modificá-lo mediante processos eleitorais transparentes) foi a primeira demonstração das formas de resistência do sistema, sem que este conseguisse propor nenhum tipo de inovação.
O “caso”-Mondlane, juntamente com o movimento do “Povo no Poder” abanou todo o sistema, não apenas a Renamo, que sofreu mais directamente, mas a Frelimo também. Eleições internas muito complicadas para a escolha do candidato presidencial, eleições gerais sem credibilidade institucional, repressão de manifestações que estavam para desaguar numa enésima guerra civil, tudo isto é a demonstração de como a Frelimo procurou conter a força da inovação que se fez patente depois da morte do Azagaia. E que a Renamo utilizou nos dias passados, ao chamar a UIR para reprimir a oposição interna.
Hoje, o resultado é que o sistema antigo já não existe: a Renamo – apesar da sua força eleitoral muito limitada – continua pensando que a base do país tenha de ser representada pelo bipartidarismo tradicional, não vendo, ou não querendo ver, que isso poderá levar à sua destruição total. A Frelimo teve de recorrer a medidas excepcionais, com a ajuda do melhor capital social do país, não necessariamente ligado a este ou aquele partido (Severino Ngoenha, Óscar Monteiro, Carlos Martins e pouco outros), para evitar o colapso definitivo do sistema. Isso significa que a própria Frelimo já não consegue governar sozinha um país muito complexo, apesar de ter formado um executivo monopartidário. E significa também que todas as maiores organizações do país estão a passar por processos transicionais complicados, em que o elemento mais crítico é representado pelas eleições internas: CTA, partido Podemos, sem falar da Renamo. Cada vez que em Moçambique tem uma eleição, quem detém o poder procura conservá-lo, usando armas impróprias e mudando as regras durante o jogo, ao passo que quem aspira a conquistá-lo encontra dificuldades enormes, recorrendo com cada vez mais frequência à justiça, como demonstram os três casos acima citados, e na ilusão de que os tribunais consigam resolver assuntos internos a organizações em princípio livres e autónomas.
Quer no caso da Frelimo e do diálogo inclusivo, provavelmente a única via, hoje, para evitar um novo conflito civil, quer no caso da Renamo e das outras organizações que mal conseguem gerir as suas dinâmicas internas, o que resulta é que não existe nenhuma entidade, hoje, em Moçambique, que consiga reduzir a si própria a complexidade social do país. Recorrer a elementos externos para solucionar questões dirimentes de um país não é sinal de força, nem de fraqueza: é a inevitabilidade de um processo de transição do simples ao complexo que vai ter de desaguar num novo equilíbrio, cujo eixo central será a maior inclusividade dos cidadãos comuns. Será a luta entre forças conservadoras contrárias às mudanças e forças inovadoras que lutam para que o cenário político de Moçambique reflicta a complexidade social a determinar o futuro de um país que, de momento, está na sua mais complicada e inacabada fase de transição.

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