Guerra e guerrilha: uma questão de tempo

OPINIÃO

Luca Bussotti

Existe ao menos um elemento em comum entre a guerra que se está a travar neste momento na Ucrânia e o conflito em curso em Cabo Delgado desde 2017: a variável representada pelo tempo. Em ambos os casos as forças aparentemente mais consistentes (a OTAN que flanqueia o governo de Zelenski e as tropas de Moçambique e seus aliados do Ruanda e da SADC que lutam contra insurgentes de matriz supostamente jihadista ) já não têm muito tempo, ao passo que quem resolveu atacar pode gerir este precioso recurso sem menos pressão.

As razões disto são diversificadas, mas claras. Por um lado, Putin – que provavelmente mal calculou a resistência da Ucrânia e dos aliados da OTAN – dispõe dos dois factores fundamentais que um povo precisa durante um conflito: alimentos e energia, além das armas, naturalmente… A Rússia é o maior exportador de trigo no mundo (de que controla 20% da produção), e entre os dez maiores exportadores de uma série essencial de grãos, entre os quais trigo, cevada, aveia, milho e centeio. Em termos energéticos, Mosca é o maior exportador e o segundo maior produtor de gás no mundo, bem como o segundo maior exportador e terceiro maior produtor de petróleo. Com os gasodutos construídos a partir dos seus campos de produção, e que passam pelo Leste da Europa, chegando a países da União Europeia, tais como Alemanha e Itália, a Rússia desenvolveu um sistema de dependência – mais ou menos implícita – dessas nações dos seus recursos energéticos. O quadro é completado com a grande disponibilidade de armas. Segundo o report da Global Firepower, a Rússia detém o segundo exército mais poderoso do mundo, depois do americano, embora nalgumas especialidades supere o de Washington, como na frota da marinha. Em suma, comida, energia e armas nunca vão faltar à Rússia; se se soma a isto o facto de Putin conseguir controlar, aparentemente sem grandes sobressaltos, a situação política interna, e que a guerra se desenrola fora do território nacional, o quadro está completo.

Em Moçambique, os insurgentes gozam da mesma vantagem, em termos de gestão do tempo, que a Rússia tem com relação à Ucrânia – cuja resistência está a mostrar sinais de dificuldade – e aos países da OTAN – que registam várias dissidências internas e sobretudo uma situação de subida dos preços e de disponibilidade energética que está a se tornar insustentável. Naturalmente que os insurgentes não têm uma disponibilidade (e uma qualidade) de armas comparáveis com a dos três exércitos que estão a combater em Cabo Delgado, o moçambicano, o ruandês e o da SADC. Assim como não têm recursos alimentares infinitos, como no caso da Rússia. Entretanto, o tempo joga em seu favor. Com efeito, o conflito que eles engajaram – como bem explica, numa recente entrevista num semanário local o ex-general da Renamo, Hermínio Morais – não é um conflito que visa à conquista de territórios alheios, ou do poder central em Maputo, como no caso da guerra de Putin. Pelo contrário, trata-se de uma guerrilha cujo objectivo central é desestabilizar o país. Com que finalidade? Provavelmente nenhuma em particular, fora daquela da destruição da incipiente economia daquela província e de todo o país. Assim sendo, o pessoal engajado nesta luta tem consciência da sua inferioridade militar, se comparado com os três exércitos contra os quais combate; mas isso não constitui problema, pois a sua táctica se baseia em emboscadas, ataques de pequenos grupos que logo depois de terminar uma ação se retiram em esconderijos dificilmente identificáveis, mesmo com meios tecnológicos sofisticados, devido à mata que caracteriza Cabo Delgado. Se calhar se trata de grupos espalhados, sem uma precisa coordenação centralizada (e esta é uma das grandes diferenças com a guerrilha da Renamo), que se alimenta graças aos seus ataques, mas ainda mais à cumplicidade de parte da população local que, por medo ou por convicção, desde o início sempre tem vindo apoiar os insurgentes. Uma cumplicidade que se estende a segmentos importantes do Estado, como temos visto semana finda com a captura de funcionários da migração de Sofala, acusados de favorecer a entrada de cidadãos somalis e quenianos, ligados ao tráfico de droga e ao terrorismo em Cabo Delgado.

Em paralelo, as tropas da SADC e do Ruanda não têm um tempo indefinido: elas estão no terreno moçambicano para rapidamente resolver o assunto e voltarem para suas casas. O primeiro problema tem a ver com o financiamento: até quando Ruanda (com uma crise político-militar com o Congo que poderá desaguar num novo conflito) e SADC irão aguentar a permanência de uma tropa tão numerosa em Moçambique? Até quando Moçambique poderá sustentar um esforço bélico assinalável, que drena recursos preciosos que poderiam ter sido alocados para outros sectores nevrálgicos, neste momento difícil da vida do país? O segundo aspecto tem mais a ver com questões políticas internas: Moçambique irá enfrentar o duplo turno eleitoral de 2023-2024 com a situação em Cabo Delgado (e talvez em outras províncias do norte) ainda instável e sem perspectivas de ser melhorada. E isto poderá afectar a imagem do partido no poder, que vai entregar aos eleitores um país em guerra, mergulhado numa crise económica sem precedentes e com níveis de pobreza crescentes. Se a isto acrescentar-se-á o anúncio do abandono definitivo de alguns dos principais projectos de gás de Cabo Delgado (como o da Total), o quadro será completo, deixando um país em desconforto e à procura de soluções que, de momento, não aparecem num horizonte temporal razoável…Mais uma vez, questão de tempo. 

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