Moçambique: uma normalidade excepcional

OPINIÃO

Luca Bussotti

A última decisão em mérito ao segundo recurso de Venâncio Mondlane contra o seu próprio partido, a Renamo, deu razão, mais uma vez, ao primeiro. O congresso da Renamo vai ser realizado, no mês de Maio, devido ao facto deste partido não ter conseguido demonstrar que não havia meios financeiros para organizar o evento. Assim, mesmo se de forma estrampalhada, a normalidade da vida política interna de um partido, do segundo maior partido de Moçambique, foi reposta.

Os esforços que Mondlane fez para chegar a esses resultados foram hercúleos, e fora da “normalidade”. E o que mais admira, além da persistência do recorrente, é, por um lado, a pertinácia do partido-Renamo (ou do restrito grupo que o dirigiu durante os últimos anos) em querer resistir a um processo normal de convocação da sua própria assembleia para renovar os organismos dirigentes, e por outro o silêncio dos muitos militantes e dirigentes diante deste cenário. Talvez o que mais preocupa é justamente este último elemento: se os demais tivessem sido mais activos, conscientes e até menos calculistas, juntando-se às instâncias de Mondlane no sentido de celebrar o congresso, segundo os estatutos do partido, não teria sido necessário alguém recorrer à justiça para que a Renamo voltasse à normalidade da vida de qualquer partido político. Na falta disto, Venâncio Mondlane se tornou um herói, bastante solitário como qualquer outro herói, que explorou caminhos até hoje inexplorados da política moçambicana, ao mesmo tempo inovadores, mas preocupantes, pois todo este processo demonstrou que ainda precisamos destas figuras singulares, desafiadoras, que travam combates para repor o que deveria ser normal.

Muitos não apreciaram as iniciativas de Mondlane: nas redes sociais, e até na imprensa, existem comentários contra o que Mondlane andou a fazer. Foi chamado de “confuso”, “ambicioso”, etc.; o que pode ser verdade, entretanto a luta interna à Renamo esconde algo de muito mais profundo do que um simples confronto entre quem detém o poder (Momade) e não quer larga-lo, e quem não o detém (Mondlane) e pretende adquiri-lo. Estas duas figuras têm um elevado valor simbólico: elas são uma fotografia daquilo que a Renamo é (e também era) e daquilo que a Renamo ainda não é (mas provavelmente será).

A Renamo de Momade era (ainda é, por enquanto) o partido de Dhlakama sem duas características: a primeira é a ausência de Dhlakama, líder carismático e reconhecido por parte de todos os membros da Renamo; a segunda são as armas que Dhlakama tinha, e que Momade, dando continuidade ao projecto do seu antecessor, entregou com o último acordo de paz de 2019, pondo uma palavra final à Renamo como partido-exército. O que ficou foi um grupo bastante pequeno pertencente à ala militar do partido que foi, que não conseguiu garantir a transição da Renamo militar à Renamo partido político. Sem a iniciativa de Mondlane a Renamo teria continuado no limbo de uma transição inacabada, tornando-se simples sparring partner da Frelimo, e não o seu primeiro competitor.

A Renamo de Mondlane (se ele será eleito presidente do partido, como tudo parece indicar) representará uma profunda descontinuidade com relação à Renamo anterior. Com Mondlane, a época de Dhlakama (que, convém não esquecer disso, o chamou pessoalmente para entrar no partido, quando Mondlane era membro do MDM) vai-se fechar de forma definitiva, mas, paradoxalmente, com pelo menos dois elementos de continuidade: por um lado, este partido terá uma nova liderança carismática. Esta continuidade ideal, naturalmente, não pode esconder diferenças profundas entre os dois, tais como de formação, proveniência geográfica e étnica, postura política, leitura das transformações da sociedade moçambicana; mas com em comum uma ideia de país, uma visão de longo prazo, a capacidade de mobilizar massas consistentes de jovens, que só líderes carismáticos conseguem ter. Por outro lado, Mondlane tem tudo para completar a transição – de que Dhlakama estava profundamente convencido, nos últimos anos da sua vida – da Renamo-exército, que usava as armas para conseguir dividendos políticos, à Renamo-partido político “normal”. Só esta descontinuidade, que assenta na capacidade de a Renamo desafiar a Frelimo no terreno da proposta política, dos programas e do posicionamento internacional do país, poderá garantir a continuidade com os ideais (actualizados) de Dhlakama; e só alguém com uma cultura política diferente da de Dhlakama, como Venâncio Mondlane é, terá a oportunidade de completar a transição necessária da Renamo, tornando esta formação política algo de moderno e ao passo com os tempos.

O caminho que iniciará com o congresso de maio será muito longo e complicado, e provavelmente não permitirá à Renamo de ganhar as próximas eleições. Aliás, o risco é que da actual Renamo possa originar-se uma cisão da ala mais próxima a Momade, andando a formar o enésimo, pequeno e inútil partido da oposição. Entretanto, este caminho representa uma lufada de ar fresco não apenas dentro da Renamo, mas sim para toda a política moçambicana, refratária às inovações, e satisfeita da “guerra de trincheira” entre os dois maiores partidos, em que cada um tende a conservar as suas posições, sem querer assaltar as fortalezas do outro. Agora a própria Frelimo terá de sair da sua comfort zone para procurar elevar a sua proposta política, dando substância a promessas de frequente vazias, representadas por um pessoal político mais ligado ao passado do que ao futuro. Quiçá se a (provável) eleição de Mondlane à presidência da Renamo não empurre a Frelimo a procurar dentro de si as energias mais jovens, inovadoras e preparadas que poderiam transformar Moçambique num país normal, pelo menos do ponto de vista das dinâmicas políticas…

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