Luca Bussotti
Moçambique é um país bastante atípico quanto à formação de suas classes dirigentes. Na sua história, as lideranças sempre foram escolhidas consoante processos internos aos partidos maiores, Frelimo e Renamo, desconsiderando as experiências que provinham dos níveis locais. Nunca se deu o caso de o presidente do município de Maputo, Beira, Quelimane ou Nampula, pelo menos, candidatar-se à luta para a presidência da República. A única excepção foi Daviz Simango do MDM, que entretanto foi ao mesmo tempo fundador e presidente do partido e presidente do município da Beira. Assim, se é verdade que ele não começou do nível local, também é preciso lembrar que ele sempre teve a habilidade política de privilegiar, ou nunca negligenciar o seu papel de administrador municipal.
Em todos os outros casos foram os aparatos dos partidos a seleccionar as principais lideranças nacionais, geralmente através de um demorado e hierárquico percurso interno, com todo o ritualismo do caso.
Em outras partes do mundo não existe esta fratura entre os organismos dirigentes dos partidos e o pessoal que exerce papéis de nível local em nome desses mesmos partidos. Por exemplo, António Costa foi presidente da Câmara de Lisboa antes de ser eleito primeiro-ministro, ao passo que nos Estados Unidos foram muitos os governadores que conseguiram ascender à Casa Branca, por exemplo o democrático Jimmy Carter ou o republicano George Bush. Na França, Jacques Chirac foi presidente do município de Paris antes de ser eleito presidente da República, e mesmo em países não exactamente democráticos, como a Turquia, uma figura política como Erdogan passou pela experiência de presidente do município de Istambul antes de se tornar chefe de estado do seu país.
Em todos esses casos, e em muitos outros, os respectivos partidos estavam abertos a receber quem se comprometesse a nível local, trabalhando em prol do partido, administrando cidades ou províncias. Em Moçambique, parece haver uma barreira insuperável entre quem vai administrar os territórios e as elites dirigentes dos partidos, que no entanto podem ser chamadas de verdadeiras nomenclaturas.
Porque seria importante que alguém com experiência de governo local pudesse tentar gerir o país inteiro? A resposta é dupla. Com efeito, por um lado, gerir uma província ou ainda mais uma cidade requer um compromisso diário, contínuo, paciente para com os cidadãos. Inteirar-se das questões que tocam directamente o cidadão, em qualquer âmbito da vida pública, representa uma bagagem incomparável de experiência política e administrativa que poderá ser desfrutada aquando da gestão de um país inteiro. Por outro lado, a pessoa que passa por esta experiência adquire um conhecimento dos procedimentos burocráticos e administrativos extremamente complexos, que poderá encontrar de novo na gestão central da coisa pública. Em suma, utilizar o melhor pessoal local como futura liderança para os níveis centrais seria uma mais-valia não apenas para os partidos que enveredassem para está via, mas para a população inteira. Seria muito diferente lidar com um presidente com competências já adquiridas através da gestão local do que com um que vem do partido, mas que nunca tocou com mão os problemas dos cidadãos e suas possíveis soluções.
As eleições autárquicas do próximo Outubro deixam entrever disputas renhidas em muitas cidades de Moçambique, assim como um pessoal político de alto nível como candidatos. O exemplo mais claro vem da Renamo: todos os seus líderes principais a nível local, desde actuais presidentes no cargo, como Vahanle e Araújo, até figuras de grande peso como Venâncio Mondlane para Maputo e António Muchanga para Matola, foram indigitados como candidatos. Não se percebe o porquê, depois de um deles terminar o mandato na cidade que irá governar, ou de que participará da vida política como membro da assembleia municipal, não possa depois concorrer para se candidatar na corrida à presidência da República, como até hoje nunca tem acontecido.
O mesmo pode ser dito acerca da Frelimo. Este partido escolheu também candidatos de peso e com o critério de uma evidente renovação geracional. Foi assim para Maputo, Matola, Beira, Pemba, entre outras cidades. E também nesse caso não se percebe por que tais lideranças, ainda mais se lhes couber de governar tais cidades, não poderão depois concorrer para escalar a presidência da República, fortes da sua experiência no terreno local.
Será este um dos principais significados das eleições municipais de Outubro: possibilitar a formação de uma nova classe dirigente local, com pretensões de se abrir um espaço de manobra para as presidenciais dos próximos anos. O desafio interno aos principais partidos já iniciou, resta ver como é que se desenrolará no seio dos mais importantes partidos políticos.
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