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- Suicídio continua a ceifar vidas dos moçambicanos
 
Nos últimos anos, Moçambique assistiu a um crescimento exponencial de casos de suicídio, tornando-se um fenómeno preocupante e complexo, que afecta sobretudo jovens, com alguma incidência preocupante para agentes do Estado, particularmente da Polícia da República de Moçambique (PRM). Em diversos pontos do país, muitos casos de suicídio têm ocorrido em contextos de forte pressão emocional, dificuldades económicas e, no caso dos agentes da Polícia, por envolvimento em jogos de azar como se tem reportado. Segundo o sociólogo moçambicano, Lénio Lisboa, o aumento de casos de suicídio no país está profundamente enraizado em processos de desintegração social, desregulamentação e anomia, particularmente nas cidades, onde os indivíduos são mais susceptíveis a pressões sociais intensas, isolamento e fracasso na integração social, para além de ostentação nas redes sociais. Enquanto isso, para o proeminente psicólogo Bóia Júnior, as causas do suicídio são múltiplas e complexas, incluindo factores ambientais, socioculturais e existenciais, apontando dentre várias a depressão, consumo de estupefacientes até crises políticas do país.
Elisio Nuvunga
Problemas passionais e envolvimento em jogos de fortuna ou azar são apontados como algumas das principais causas que têm levado muitos cidadãos, sobretudo adolescentes e jovens, a pôr termo às suas vidas. Estas situações, associadas à instabilidade emocional, frustrações afectivas e pressões financeiras, criam um ambiente de vulnerabilidade extrema.
Dados recentes revelam a gravidade do fenómeno em Moçambique. Segundo o Inquérito Nacional de Prevalência de Factores de Risco para Doenças Crónicas Não Transmissíveis (INCRÓNICA 2024), cerca de 7,3% dos adultos moçambicanos já contemplaram o suicídio como solução; 4,3 % chegaram a fazer um plano e 5,2% tentaram uma vez cometer o suicídio.
Na capital e noutras províncias, há relatos cada vez mais alarmantes de agentes da PRM, mas também de forma tímida nas fileiras da Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM) que tiram a própria vida de forma deliberada, muitas vezes usando armas de serviço.
“Os nossos colegas estão a viver com muitas pressões. Há salários baixos, falta de motivação e depois ainda enfrentam problemas pessoais agravados por vícios como o jogo de aviator”, revelou sob anonimato um agente da PRM em Maputo, acrescentado que “muitos recorrem aos jogos de azar com esperança de mudar de vida, mas acabam por cair num buraco mais fundo.
Sofia António, de 23 anos, licenciada em Administração Pública, é uma das muitas jovens moçambicanas que enfrentam o peso do desemprego e das expectativas sociais após a conclusão dos estudos. Residente em Maputo, viu-se mergulhada num ciclo de frustração e ansiedade ao perceber que a realidade profissional estava muito distante das promessas feitas durante a sua formação. Com os sonhos a desvanecer e a pressão a aumentar, começou a questionar o seu valor e a sentir-se isolada.
“Quando terminei a universidade, achei que a minha vida ia começar de verdade. Tinha sonhos, queria ajudar a minha família, ser independente. Mas passaram-se dois anos e ainda estou desempregada. Depois das entrevistas sem resposta, comecei a duvidar de mim. Via colegas nas redes sociais a ‘viverem bem’, a terem carros, casamentos… e eu aqui, parada. Senti que não havia espaço para mim nesta cidade. Já pensei em desistir. Foi só quando uma amiga percebeu que eu estava a isolar-me que consegui ajuda”, revelou.
“Somos treinados para proteger os outros, mas quem cuida de nós”
Quem também integra este universo é João da Silva (nome fictício), agente da Polícia da República de Moçambique (PRM), 27 anos e actua há mais de cinco anos na corporação. Jovem, pai de dois filhos e com grandes expectativas no início da carreira, viu-se rapidamente confrontado com a dura realidade das condições laborais: baixo salário, pressão social e diversos factores colocaram-no, assim como a muitos colegas, numa situação de desgaste emocional profundo.
“Ser Polícia era o meu orgulho. Achei que seria respeitado, que poderia crescer na carreira. Mas a realidade é outra. Recebo um salário que mal chega para pagar renda e sustentar os meus filhos. Muitos colegas entram em dívidas tentando manter uma aparência”, desabafou.
Os jogos de azar, sobretudo o famoso “aviator”, com campanhas de publicidade bastante agressivas, sobretudo pelos canais digitais, acabam sendo um dos poucos rastilhos de esperança para muitos agentes da lei e ordem.
“Alguns viram-se para jogos de azar. Já perdi dois colegas para o suicídio. O que mais dói é que ninguém fala disso. Somos treinados para proteger os outros, mas quem cuida de nós?”, disse visivelmente descontente.
Traumas, doenças graves, depressão… são algumas das causas
Segundo o psicólogo Bóia Júnior, as causas do suicídio são múltiplas e complexas, incluindo factores ambientais, socioculturais e existenciais. Contudo, alerta que os transtornos mentais são o factor de risco mais importante.
“Transtornos como a depressão, o alcoolismo e o uso abusivo de drogas são frequentemente encontrados entre aqueles que cometem suicídio. Além disso, traumas emocionais, o diagnóstico de doenças graves e situações como o bullying também têm forte impacto”, explica.
Bóia Júnior sublinha que o suicídio muitas vezes é um pedido de ajuda não “verbalizado”: “É a expressão extrema de uma dor interna considerada insuportável. Quando a pessoa sente que não tem mais alternativas para lidar com o sofrimento, acredita que, tirando a própria vida, conseguirá acabar com essa dor”, afirma.
O psicólogo destaca ainda que, em países com crises políticas, económicas e sociais, os jovens têm sido particularmente afectados.
“Eles vivem altos níveis de sofrimento psíquico, perdem a fé em si mesmos e no futuro. Começam a questionar o sentido da própria vida, o que pode levar ao pensamento suicida e até ao acto em si”.
Face a esta situação, Bóia Júnior sugere a necessidade urgente de pesquisas nacionais, para que se compreenda melhor a ligação entre o suicídio e factores como o desemprego, a pobreza e a instabilidade política.
“Neste momento, ainda não temos evidências directas desta correlação em Moçambique, mas seria importante investigar a fundo essa realidade”, defende.
Promessas não cumpridas e falta de políticas públicas agudizam o fenómeno
Segundo defende o sociólogo Lénio Lisboa, o suicídio é um fenómeno social e não apenas psicológico e por isso deve ser encarado sob uma “lente” sociológica, tendo em conta os factores estruturais e colectivos que o alimentam, sobretudo nas zonas urbanas.
Para Lénio Lisboa, o aumento de casos de suicídio no país está profundamente enraizado em processos de desintegração social e desregulamentação e, particularmente nas cidades, onde os indivíduos são mais susceptíveis a pressões sociais intensas, isolamento e o fracasso na integração social é bem mais visível.
“O suicídio não é só depressão ou ansiedade, como muitos dizem. É fruto da pressão social. É uma resposta a uma sociedade que deixou de oferecer sentido e pertença ao indivíduo”, afirma.
Segundo o sociólogo, jovens urbanos e agentes das forças de segurança, como os membros da Polícia da República de Moçambique (PRM), são grupos particularmente vulneráveis. No caso da juventude, destaca-se a ausência de perspectivas reais de mobilidade social, desemprego, frustração com promessas não cumpridas e um consumo impulsionado pelas redes sociais que impõe padrões inatingíveis.
“O jovem olha à sua volta e vê os seus pares a ter uma vida que ele não consegue alcançar. O capitalismo impõe um desejo de consumo que a realidade nega. Isso corrói a auto-estima e esgota emocionalmente”, explica Lisboa.
O sociólogo também chama atenção para a crise no sector da segurança. Muitos agentes da PRM, especialmente os mais jovens, sofrem com salários baixos, falta de reconhecimento e ausência de perspectivas de crescimento. Para alguns, o recurso a jogos de azar torna-se uma tentativa desesperada de valorizar-se socialmente. Quando esses mecanismos falham, o suicídio surge como saída trágica.
Neste contexto, Lisboa defende uma intervenção ampla que vá além da saúde mental individualizada, apelando ao reforço das políticas públicas, educação comunitária e criação de espaços juvenis de apoio e integração.
“Precisamos de psicólogos, sim, mas também de políticas públicas sólidas, mais estágios, empregos e centros juvenis. O Estado precisa deixar de alimentar expectativas ilusórias e começar a oferecer condições reais de desenvolvimento”, concluiu.



											
						
						
						
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