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Arão Valoi
Nos princípios do mês de Julho, um grupo de jornalistas, académicos e fazedores de opinião foi convidado pelo Ministério dos Recursos Minerais e Energia (MIREME) em coordenação com a empresa ENI, para visitar a plataforma flutuante Coral Sul FLNG, no alto mar, a cerca de 200 km da costa de Cabo Delgado — de resto, um marco tecnológico que simbolizou a entrada de Moçambique no selecto grupo de exportadores de gás natural liquefeito. A visita serviu para apresentar, com orgulho e optimismo, o complexo processo de extracção e liquefação do gás, que já está a ser exportado para os mercados internacionais. O gesto, que se apresenta como parte de uma política de comunicação transparente, remete-nos inevitavelmente à estratégia semelhante usada, anos atrás, pela mineradora Vale Moçambique. Trabalhei lá e, por isso, com algum conhecimento de causa.
Na altura, a Vale organizava visitas regulares aos seus corredores de operação em Tete e Nacala-a-Velha, promovia workshops com jornalistas e destacava o potencial transformador do carvão moçambicano. Poucos anos depois, sob críticas crescentes sobre impactos sociais e ambientais, e diante de um ambiente de negócios volátil, a Vale vendeu as suas operações a um grupo indiano, a Vulcan Minerals, por 270 milhões de dólares, deixando para trás dívidas sociais, comunidades reassentadas mal-integradas e uma sensação de promessas por cumprir.
A analogia não é casual: ela convida à reflexão sobre o presente e o futuro dos megaprojectos extractivos em Moçambique, particularmente os ligados ao gás natural.
Desde a descoberta das reservas na Bacia Sedimentar do Rovuma, por volta de 2010, Cabo Delgado passou a ocupar um papel central no imaginário do “desenvolvimento acelerado” de Moçambique.
Com investimentos bilionários de empresas como a TotalEnergies, ExxonMobil e Eni, criou-se a expectativa de que o gás natural liquefeito seria o novo motor da economia nacional. Contudo, essa narrativa desenvolvimentista rapidamente se confrontou com a dura realidade de um conflito armado na Província, iniciado em 2017, que expôs as fragilidades de um modelo económico centrado na extracção de recursos sem uma base sólida de inclusão social.
O discurso de que o gás é uma “energia de transição” — por ser menos poluente que o carvão — tem servido para justificar a sua exploração, mesmo num mundo cada vez mais orientado para fontes renováveis.
No entanto, na prática, as comunidades afectadas pouco beneficiam desta transição. Para muitos moçambicanos, sobretudo os que vivem nas zonas de influência dos projectos, o gás tornou-se sinónimo de deslocamento forçado, promessas adiadas e perda de autonomia sobre os seus territórios.
Este paradoxo é agravado pelo facto de, em Moçambique, apesar do rápido progresso no processo de electrificação, o acesso à energia continuar limitado, principalmente, em zonas rurais, onde o índice é dramaticamente mais baixo. Ou seja, enquanto a ENI celebra a exportação dos primeiros cargueiros de gás para a Europa, milhões de moçambicanos permanecem literalmente no escuro.
A visita à plataforma Coral Sul também acontece num momento em que o debate internacional sobre transição energética ganha força. Países e instituições financeiras estão cada vez mais relutantes em apoiar novos projectos fósseis, exigindo critérios mais rigorosos de sustentabilidade ambiental, inclusão social e governação transparente. A pressão global é legítima, mas não pode ignorar os dilemas dos países do Sul global, que historicamente contribuíram pouco para a crise climática, mas hoje enfrentam os seus efeitos mais severos — como mostram os ciclones Idai, Kenneth e Freddy.
No caso moçambicano, a exploração de gás natural em Cabo Delgado tem de ser repensada, não apenas do ponto de vista económico, mas também político e ético. A governação dos recursos naturais continua débil, a redistribuição das receitas é incerta, e o risco de repetir o “paradoxo da abundância” é real. A lição da Vale Moçambique deve servir de alerta: megaprojectos que ignoram a dimensão social e ambiental da sua presença são, mais cedo ou mais tarde, rejeitados pelas comunidades e confrontados pela realidade.
Moçambique precisa, urgentemente, de diversificar a sua matriz energética, investindo de forma estratégica em soluções renováveis, acessíveis e descentralizadas — como a energia solar — que respondam às necessidades imediatas da população. O gás pode fazer parte dessa matriz, mas não pode ser o seu pilar exclusivo. É necessário que os ganhos previstos com a exploração sejam canalizados de forma equitativa, transparente e com impactos reais na qualidade de vida das pessoas, especialmente nas zonas mais vulneráveis.
A experiência recente mostra que a riqueza natural, quando mal gerida, pode ser mais uma maldição do que uma bênção. Cabo Delgado simboliza esse risco: um território rico em recursos, mas devastado por conflitos, insegurança e frustração popular. A transição energética em Moçambique não deve reproduzir os erros do passado. Deve ser um caminho para restaurar a dignidade, ampliar o acesso à energia e reforçar a soberania nacional sobre os seus próprios recursos.
Numa altura em que o País se reposiciona no cenário energético global, é fundamental que o debate sobre o futuro do gás seja conduzido com lucidez, memória crítica e sentido de justiça. O desenvolvimento que não transforma vidas — e que não ouve as comunidades — é apenas uma fachada. Moçambique tem agora a oportunidade de trilhar um caminho diferente.

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