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- A nova aposta do Governo: Fundos locais e terras para empreender
- FDEL vai injectar até 20 milhões de meticais por distrito com foco em jovens
Melita chegou com o filho ao colo e uma pasta de plástico azul, desbotada pelo tempo. Caminhou descalça os últimos 200 metros, porque “na areia o chinelo enterra”. Quando a chamada pelo megafone ecoou: “Lote 223, Zona B”, ela apertou o menino contra o peito e começou a chorar. Era o seu nome. Pela primeira vez, ela pertencia a um pedaço de terra com papel, planta e água. Era a inauguração de um chão com dignidade.
Redacção
A felicidade no rosto de Melita multiplicou-se em outros 1200 moçambicanos que receberam igual número de talhões numa parcela devidamente infra-estruturados, no quadro de uma iniciativa do Presidente da República, Daniel Chapo, que acaba de inaugurar uma nova abordagem de ordenamento territorial que vai ser replicada um pouco por todo o País.
Ainda no distrito turístico de Vilankulo, província de Inhambane, o Presidente da República lançou o ambicioso programa de dinamização económica através do Fundo de Desenvolvimento Económico Local (FDEL), que visa injectar até 20 milhões de meticais por distrito para fomentar o empreendedorismo juvenil e comunitário.
O FDEL surge como instrumento de descentralização económica, promovendo acesso directo a financiamento por parte de cooperativas agrícolas, pequenas indústrias e jovens com projectos sustentáveis.
Durante a cerimónia oficial, Chapo afirmou que as duas iniciativas governamentais, nomeadamente: “Terra Infra-estruturada”, na sua fase piloto, e o Fundo de Desenvolvimento Económico Local, visam recolocar o distrito como produtor.
“Estamos a romper com a dependência assistencialista e a colocar os distritos a produzir riqueza”, sublinhou Chapo, numa declaração não só carregada de intenção política, como também reveladora do esforço do novo Governo em marcar uma distinção face à retórica de inclusão não concretizada de administrações anteriores.
Faiquete, que acolhe a fase piloto do Projecto de Terra Infra-estruturada, vai ser o laboratório para um plano nacional que visa urbanizar com planeamento, serviços e inclusão. Nesta primeira fase, 1.200 talhões foram entregues a jovens e famílias vulneráveis, com água canalizada, ruas definidas, luz prevista e zonas reservadas para escolas, mercados e lazer.
“Não é apenas a entrega de terra. É um novo modelo de País que queremos plantar aqui”, disse o Chefe de Estado, ao lado de uma placa recém-descerrada.
O investimento de 40 milhões de meticais foi canalizado através do Fundo para o Fomento da Habitação (FFH), que celebra 30 anos. Em vez de terrenos áridos e sem orientação, cada lote em Faiquete vem com delimitação legal, planta de construção aprovada e projecto de urbanização. Um detalhe simbólico fez a diferença: o Presidente abriu uma torneira no meio da areia seca e dela saiu água limpa.
Os primeiros 1.200 talhões infra-estruturados foram entregues a jovens seleccionados em diferentes localidades, parte de uma política que associa o direito à terra à responsabilidade de produzir. A nova abordagem será coordenada por uma unidade gestora central e supervisionada por comités locais, uma medida que, segundo o Presidente, garantirá “transparência, inclusão e foco nos resultados”.
A iniciativa, apesar de aplaudida por muitos, levanta questões: mecanismos de fiscalização estarão em vigor? Os comités locais terão independência suficiente? E como evitar que os fundos se transformem noutra oportunidade de captura local por elites distritais?
Em Vilankulo, algumas vozes no terreno mostram entusiasmo, mas também cautela. “Queremos acreditar, mas já vimos promessas que morrem na praia”, disse um jovem empreendedor que pediu anonimato.
O pano de fundo destas medidas é a tentativa de redefinir a juventude moçambicana não como massa desempregada e frustrada, mas como agente económico com potencial real. O Governo quer, nas palavras de Chapo, “uma juventude que empreende, não apenas que espera”. Resta saber se os instrumentos criados conseguirão transformar este desejo num processo estrutural e duradouro. Para já, os olhos estão voltados para a implementação, e Vilankulo torna-se o primeiro grande laboratório da nova promessa presidencial.
Com uma retórica renovada e um fundo robusto, o Presidente Chapo lança as bases para um novo ciclo de governação territorial. Mas, como dizem os habitantes de Vilankulo, é no cumprimento das promessas que se mede a coragem de um líder. O tempo dirá se este modelo se tornará referência ou mais uma esperança frustrada.
“Agora posso morrer tranquila”
À sombra de uma mangueira, Madalena Ussene, 61 anos, acompanhava a filha e os netos. “Nunca tive quintal próprio. Sempre fui pedinte de espaço. Hoje é a minha filha que vai construir casa aqui. Agora posso morrer tranquila.”
Ao lado, Naldo Cossa, 27 anos, com boné e luvas de pedreiro, sorria. “Comprei 10 blocos esta semana. Só para começar a marcar o espaço. Só o chão já muda a cabeça da gente”, disse, projectando o que poderá vir a ser a sua casa.
Contexto: o país, a juventude e a cidade que falta
Mais de 60% da população moçambicana é jovem. A taxa de crescimento urbano é de 2,5% ao ano. Entretanto, os bairros informais continuam a crescer sem água, sem luz, sem ruas. A urbanização, muitas vezes, chega depois da ocupação. Em Faiquete, pela primeira vez em anos, chega antes.
“Estamos a tentar inverter a lógica: urbanizar antes de ocupar. Planeamento antes da confusão. Estado antes do desespero”, afirmou Lourenço Matavele, técnico do FFH.
O Governo projecta mais de 49 mil talhões infra-estruturados até 2029, distribuídos por todos os distritos. A participação do sector privado é incentivada, mas sob regras públicas. Também se prevê o agravamento das taxas sobre a importação de materiais que podem ser produzidos localmente.
Urbanização que respeita a natureza
O local escolhido em Faiquete contempla lagoas naturais, zonas húmidas e árvores locais. O projecto urbanístico inclui soluções de drenagem, jardins comunitários, separação de resíduos e espaço público para convívio.
“Esta é uma terra que se regenera. Se tratarmos bem, dá sombra, saúde e dignidade”, disse o arquitecto Mateus Camacho, envolvido no projecto.
E depois da entrega?
O maior desafio será a sustentabilidade. Um terreno sem casa pode voltar ao abandono. A especulação ameaça. Os conflitos de posse também.
“O Governo deu o primeiro passo. Mas agora é preciso formação, acompanhamento, crédito acessível e fiscalização real”, defende Carla Jone, socióloga urbana da Universidade Pedagógica.
Em Faiquete, um grupo de jovens organizou já um “Comité de Vigilância do Bairro”. Vão ajudar a fiscalizar construções, evitar ocupações ilegais e promover campanhas de limpeza.
Faiquete como símbolo
No final da cerimónia, os beneficiários subiram ao palco para receber os seus documentos das mãos do Presidente. O gesto, simples, carregava o peso da história de um país onde, por décadas, terra com papel era privilégio de poucos. Agora, começa a ser direito de muitos. “Este projecto será replicado em todos os distritos”, garantiu Chapo. “Queremos que ninguém fique para trás.”
À saída, Melita apertava o filho no colo e o papel contra o peito. “O meu filho não vai crescer a dormir de favor na casa de ninguém”, disse. E ali, na poeira de Faiquete, nascia uma nova forma de cidadania: com planta, água, nome próprio e horizonte.
Beneficiários já fazem planos para o futuro
Para muitos beneficiários do projecto “Terra Infra-estruturada”, a entrega oficial dos talhões marcados e documentados representa mais do que um pedaço de chão: é o início de uma nova vida. Com o título de uso e aproveitamento da terra em mãos, famílias começam a sonhar alto e a fazer planos concretos para o futuro.
“Com esta planta já posso pedir crédito no banco. Antes, nem me deixavam entrar”, afirma Inácio Manuel, 32 anos, técnico de instalação de painéis solares, que vê agora a possibilidade de construir a sua própria casa.
Esther Jamal, mãe e professora primária, olha para a nova área com um plano colectivo: “Vamos fazer uma escola aqui. A de lá está longe. E os miúdos pequenos não aguentam caminhar tanto”.
Para Lúcia Tamele, 39 anos, viúva, a conquista tem um peso emocional ainda maior. “Meu marido morreu no ciclone. Nunca consegui recomeçar. Agora vou construir dois quartos. E recomeçar de novo”, disse determinada.

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